LAR JUDAICO PARA MENINOS POBRES,
VIENA, MARÇO

Karl já não vivia no canal debaixo do palácio Goldbaum, mas vivia sob a generosidade dos Goldbaum. Há três meses que estava numa escola para meninos pobres sustentada por uma das obras de caridade da baronesa. Apanhara febre tifoide e, num dos hospitais para indigentes onde estivera, uma enfermeira reparara que era circuncidado e murmurou à enfermeira-chefe que o rapaz da cama 12 era judeu. Sendo um hospital Goldbaum, os meninos judeus sem um tostão recebiam tratamento especial. Karl aceitou o diagnóstico de judeu com a mesma resignação cansada com que recebera o da febre tifoide. Ambos pareciam ter as suas vantagens e desvantagens. A febre tifoide: dores e suores de febre, mas refeições regulares durante um generoso período de convalescença; ser judeu: Karl sabia que ninguém em Viena gostava muito de judeus, mas descobriu que eles tomavam bem conta uns dos outros. Quando já tinha recuperado o suficiente para ter alta, em vez de ir parar de volta às ruas, ou debaixo delas, encontraram uma vaga para ele num lar para meninos desaventurados e, pela primeira vez na vida, estava a aprender a ler. Karl decidiu conformar-se com o seu destino, pelo menos por enquanto. Se diziam que era judeu, seria judeu.

Teve a sua primeira Páscoa judaica, mas só comeu matzos depois de lhe garantirem que não tinha sangue de cristãos.

O único livro que tinham para ler no lar era a Torá, pragmaticamente disponível em hebraico e alemão e, por tédio mais do que por interesse, Karl começou a lê-la. Descobriu que gostava do Cântico dos Cânticos. Era o que menos falava de Deus — uma grande vantagem — e, embora não fizesse ideia do que tratava, gostava das descrições. Outros rapazes de quinze ou dezasseis anos, fartos das regras, escapuliam-se a meio da noite, na esperança de poderem alistar-se no exército ou de encontrar trabalho numa fábrica, mas Karl não tinha pressa nenhuma em deixar o lar. Comida e uma cama a sério, em troca de algumas tarefas e umas pitadas de Deus, era um belo negócio, e Karl era teimosamente enfezado, quase não crescia de ano para ano, por isso não corria risco de ser expulso e ter de encontrar trabalho.