HAMPSHIRE, ABRIL

A casa estava a ser preparada para a chegada do Kaiser Guilherme. Tinha passado uma semana em visita de Estado com o seu primo, o rei Jorge, antes de fazer uma pequena viagem por Inglaterra. Hesitara quanto a visitar os Goldbaum, porque não gostava muito de judeus. Mas, ao que parece, a curiosidade foi mais forte do que a antipatia (talvez com a persuasão do seu embaixador, o príncipe Karl Max) e a visita foi confirmada. Em Temple Court, os tapetes foram enrolados e limpos por baixo, e o serviço de jantar e sobremesa Sèvres de duzentas e vinte e cinco peças, pintado à mão por Louis-Victor Gerverot, foi preparado para o banquete. Fora importada de Veneza uma frota de gondoleiros, para que Sua Majestade Real e Imperial pudesse desfrutar da vista de Temple Court do rio. Foram instaladas dez mil tochas no jardim, ao longo dos carreiros, e as estufas foram esvaziadas de rosas, lírios e crisântemos japoneses. Temendo que ainda assim não fossem suficientes, Lady Goldbaum encomendou rosas das Ilhas do Canal no valor de quinhentas libras. O par de tapeçarias Gobelins que tinham pertencido ao Rei-Sol foram cuidadosamente repostas no quarto real, enquanto a sanita da retrete do quarto ao lado recebeu um novo assento de madeira (o traseiro imperial não se poderia sentar num local onde outro traseiro nu se sentara antes). As preparações no espaço dos criados eram tão intensas como no resto da casa, pois os criados da casa tinham de passar a partilhar aposentos para haver espaço para o séquito do Kaiser.

Greta retirou-se para Fontmell para se vestir para jantar, aliviada por escapar ao frenesim. Subiu as escadas e parou a meio, como sempre, para admirar o Klimt. Encaixava perfeitamente, como se a escadaria tivesse sido construída para o receber, e a janela de vidro do telhado de colmo encomendada propositadamente para que a luz caísse no rosto da mulher iluminando-o na perfeição. Embora o quadro estivesse intimamente associado a Paris, não a deprimia. Em vez disso, fazia com que recordasse a natureza transitória da felicidade. Como a satisfação na vida de casados é uma questão de sorte, incerta e inconstante. Não precisava de passar cada momento com Albert para se sentir alegre; o facto de haver momentos, horas e dias em que gostava mais de estar com ele do que com qualquer outra pessoa era suficiente e ela estava feliz. Talvez fosse amor, talvez não fosse, mas, depois da catástrofe entre Claire e Henri, parecia insensato querer algo mais.

Greta escrevia a Henri, mas as cartas que recebia em resposta eram cheia de falsa bonomia e de relatos de idas ao teatro e a concertos, com comentários como «Que pena, a pobre Claire teria gostado tanto do espetáculo» ou «Se o nosso pequenino tivesse sobrevivido…», como se a mãe e o bebé tivessem morrido durante o parto. Greta não suportava esta súbita conversão da imagem de Claire em Virgem Maria e queixou-se disso a Otto, que a encorajou a ser paciente com Henri, argumentando que ele tivera de reimaginar Claire de forma a poder perdoar-lhe e encontrar alguma paz. Greta sentia apenas indignação com a mentira. No dia anterior, levantara-se antes de madrugada e, com um xaile de lã por cima da camisa de noite, caminhara até ao rio. Tinha na mão a pistola que Otto lhe dera. Na luz fraca do sol nascente, atirara a pistola para o rio. A arma deixara de ser uma piada e passara a ser uma obscenidade. Ficou aliviada por já não a ter na sua posse.

Albert ainda não regressara para se vestir e a porta do seu quarto estava entreaberta. Greta abriu-a e entrou no quarto dele. Era raro fazê-lo. Era sempre Albert que batia à porta dela de noite, a não ser que preferisse dormir sozinho no seu quarto. Era impensável ser ela a ir ter com ele, em bicos dos pés.

O armário de Albert era tão imaculado quanto ele: filas de calças perfeitamente engomadas e prateleiras cheias de chapéus escovados. Tinha o cheiro dele — cedro e o odor doce e distintivo do éter que ele usava nos seus jarros de amostras. Ela pegou num chapéu de coco e experimentou-o, inclinando a cabeça ao espelho para se ver melhor. A porta abriu-se e Albert entrou. Encostou-se à parede, observando a mulher, sem mostrar qualquer surpresa por a encontrar no seu quarto a mexer nos seus chapéus.

— Acho que fica muito bem — disse Greta, ajustando a aba.

— Pois fica.

— Quero ver-te enquanto te vestes — disse Greta, reclinando-se na cama de solteiro, apoiada no cotovelo.

Albert não se opôs e começou a tirar a gravata e os botões de punho, rapidamente e sem qualquer sinal de embaraço. Em menos de um minuto estava despido, mas, ao olhar para o pelo preto que lhe percorria o peito até abaixo do umbigo, Greta sentiu que era ela que estava em desvantagem. Mesmo descalço, ele era extremamente alto. Ele observou-a divertido.

— Se queres ter relações conjugais, Greta, basta pedir. Não tens de esperar que eu vá ter contigo, por assim dizer. Suponho que seja por isso que aqui estás.

— Sim, acho que é.

— Vais despir-te?

Greta hesitou.

— Não, acho que não.

— Muito bem; mas pode ser necessária a remoção de alguma roupa interior, por uma questão de conveniência.

Greta corou, embaraçada, e começou a tirar as cuecas.

— Por muito que goste do teu embaraço, não é preciso — disse Albert. — Sei que está na moda exprimir a ideia de que só os homens é que são regularmente atormentados por tentações sexuais, mas acho que é uma completa mentira. Na natureza, as fêmeas ficam muitas vezes ansiosas por copular. Especialmente entre os mamíferos.

— Por amor de Deus, Albert, para de falar, senão daqui a nada volto a vestir as cuecas.

— Perdão.

Pareceu, para variar, bastante envergonhado, e Greta aproveitou a vantagem.

— Deita-te na cama, Albert. E por favor não fales.

— Sim, senhora.

Ele obedeceu com entusiasmo.

Um pouco mais tarde, depois de Anna ter apertado os botões do vestido de noite de Greta e colocado a estola de pele sobre os seus ombros, ela lembrou-se do interlúdio indecente com alguma satisfação. Para sua surpresa, pedir a Albert para lhe dar prazer parecia aumentar a sua influência sobre ele, em vez de a diminuir. Nunca soubera que a entrega podia ser um ato de poder.

Desceram o rio numa flotilha de gôndolas, com as filas de tochas espalhadas na escuridão. Era um encontro pequeno e informal de apenas cinquenta convidados. O Kaiser estava a viajar descontraidamente, sem o seu séquito. Greta segurou o braço de Albert; sentia-se instável e enjoada. O ar estava carregado do odor de lariço, pinheiro e lama do rio. A orquestra da família tocava num barco ao lado do deles; o bater dos remos e da água contra o casco de madeira acrescentava uma nota à percussão. O Kaiser apontou para uns cedros que estavam a tapar a vista de Temple Court.

— Tem de se mandar cortar — disse, no seu inglês perfeito, sem sotaque.

— Infelizmente, Vossa Majestade Imperial e Real, não podemos — disse Lady Goldbaum. — Foram plantados por Agatha, a tia do meu marido, na forma de letras em hebraico. Seria um sacrilégio abatê-los.

— Não vejo letras nenhumas — objetou o Kaiser.

— Não, Vossa Majestade Imperial e Real, só podem ser vistas de cima, por Deus.

— Encantador, mas inútil — disse o Kaiser. — Precisam é de um avião; assim o homem pode partilhar a vista de Deus.

Depois da viagem pelo rio, regressaram à casa. Criados esperavam nas escadas do jardim com tabuleiros de champanhe e brandy para aquecer. Lord Goldbaum levou o Kaiser pela galeria oriental, onde a orquestra se tinha apressadamente reunido.

— A minha querida avó falava com admiração das coleções de Temple Court. Amanhã vamos levar isto tudo para a luz do sol, para as vermos — disse o Kaiser, levantando uma almofada de tapeçaria Beauvais do início do século XIX.

Lord Goldbaum tossiu.

— Infelizmente, Vossa Majestade Imperial e Real, não será possível. É altamente prejudicial para os têxteis, que são extremamente frágeis.

Fez-se uma pausa desagradável; todos sustiveram a respiração. Então o Kaiser atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

— Estava só a testar. Lembro-me de a minha avó dizer o mesmo. Tinha pedido para se abrir as cortinas e recusaram. O seu pai disse: «Nem sequer para Vossa Majestade.» Mas — continuou, apontando o dedo — se tivessem aberto as cortinas para o meu priminho, o rei Jorge, e não para mim, eu teria feito um pequeno escândalo.

O Kaiser fez um sorriso rasgado. Mais ninguém sorriu.

O Kaiser era uma presença perturbadora: quando falava em inglês, parecia quase um fidalgo rural perfeitamente inglês. Greta lembrou-se de que, afinal de contas, a sua mãe era inglesa e tinha passado os verões com os primos reais na ilha de Wight, não muito longe de Temple Court. Referia a sua falecida avó, a grande rainha Vitória, sempre que podia. Contudo, com o seu braço aleijado escondido, em estilo napoleónico, sob um sumptuoso casaco de pele de lince, aparentemente sem acusar o calor intenso da galeria oriental, com o seu extravagante bigode e os seus olhos perscrutantes e atentos, era também a epítome do príncipe prussiano. Talvez por isso fosse tão desconcertante: era ao mesmo tempo perfeitamente inglês e alemão. Estava constantemente a alternar entre os dois idiomas e os Goldbaum respondiam, sem esforço, em qualquer deles. Admirou com satisfação as joias da Renascença, maravilhado com a delicadeza das pérolas, e fingiu que ia deixar cair um copo de cristal do século XVII, o que produziu muito riso.

Passado algum tempo, anunciou que estava entediado, e Lady Goldbaum acompanhou-o à sala de jantar, para grande alívio de todos. Greta tomou o braço do embaixador alemão, o príncipe Karl Max von Lichnowsky, um anglófilo encantador. Ele deu-lhe umas palmadinhas no braço, num gesto conspiratório.

— Está a correr bem, senhora Goldbaum.

— Ah, está? — perguntou Greta. — Ainda bem que me conta.

Foi atribuído ao Kaiser o lugar à cabeceira da mesa, mas, quando o pajem afastou a cadeira para ele se sentar, hesitou.

— O trono de marfim do marajá de Travancore. Gostava de me sentar nele ao jantar. Parece o mais adequado. Uma cadeira digna de um rei. E — acrescentou, com um olhar para Lord Goldbaum — aqui está agradavelmente escuro e eu vou tentar não entornar nada.

Lord Goldbaum fez um gesto a Stanton e o mordomo saiu apressadamente da sala. Os convidados ficaram de pé, embaraçados; ninguém se podia sentar antes do Kaiser. O príncipe Karl Max estava a conversar amistosa e corajosamente: como se pescava bem no rio, como admirava os rododendros de Lady Goldbaum.

— Não quero ouvir falar de flores. Não são divertidas — interrompeu o Kaiser.

Sem pestanejar, o príncipe Karl começou a falar de como era fácil e agradável navegar entre Temple Court e a ilha de Wight.

— Passei lá uns verões agradáveis em criança — disse o Kaiser. — Aprendi os meus dons de marinheiro no Solent. Sou um marinheiro de muito talento. O que é muito conveniente, já que sou almirante da frota imperial.

Todos sorriram de embaraço com esta referência indelicada à corrida naval entre a Alemanha e Inglaterra. O príncipe Karl ia começar a dirigir a conversa para águas mais seguras, mas foi demasiado lento. Já não conseguia falar sem estar a interromper o Kaiser, que lhe lançou um resmungo impaciente.

— Vocês, os ingleses, tremem todos quando falo da frota alemã. Mas aqueles que estão empenhados em criar uma marinha poderosa não têm a Inglaterra em mente. A Alemanha é um império jovem e em crescimento, e temos interesse nos mares distantes. Há a questão do Japão e do problema do Pacífico. A minha frota não existe para criar atritos com os britânicos, mas para servir de aviso aos japoneses. Vocês deviam estar mais preocupados com o Perigo Amarelo.

Greta viu o príncipe Karl Max empalidecer, horrorizado. No frenesim de negar as suas ambições perante os interesses dos ingleses, o Kaiser estava a provocar os japoneses. Mas ainda não acabara de falar, e ninguém podia ter a ousadia de interromper o imperador.

— Vocês, os ingleses — disse —, são loucos, loucos, loucos como a Lebre de Março.

Lord Goldbaum tossiu e corou com a ofensa. Olhando do rubor do sogro para a palidez do embaixador, Greta imaginou que todo o sangue de um tinha ido para o rosto do outro.

Indiferente ou inconsciente da torrente de insultos que estava a proferir, o Kaiser continuou:

— O que se passa convosco para estarem entregues tão completamente a suspeitas que são indignas de uma grande nação? Desejo de todo o coração manter a paz e uma das coisas que mais quero é ter a melhor das relações com Inglaterra. A falsidade e a hesitação são contrárias à minha natureza. Os meus atos falam por si, mas vocês preferem não os ouvir e dar antes ouvidos àqueles que os distorcem e deturpam. É uma afronta pessoal que me magoa profundamente e de que me ressinto.

Os convidados olhavam-no fixamente, em silêncio e em choque, mas o Kaiser estava entusiasmado com o tema e não conseguia parar.

— A França e a Rússia fizeram-me um apelo para eu me juntar a elas para humilhar a Inglaterra e reduzi-la a pó. Recusei-me a fazê-lo! Podem ler tudo, está nos arquivos do castelo de Windsor o telegrama em que informei o soberano de Inglaterra da minha decisão. Não tenho qualquer desejo de ver a Inglaterra cair.

— É claro que Vossa Majestade Imperial e Real não está a sugerir que os aliados da Inglaterra estão a conspirar contra ela — disse o príncipe Karl Max, com um breve riso desesperado, tentando fazer passar a invetiva por uma piada.

O Kaiser lançou um olhar de absoluto desprezo ao embaixador.

— Estou a afirmá-lo. Vocês, os ingleses, preferem rebolar pela valeta com quem vos despreza.

O príncipe Karl Max estava tão pálido que Greta pensou se não deveria mandar servir-lhe um brandy, mas, felizmente, foram salvos de mais desastres diplomáticos pelo regresso de Stanton e do trono de ouro e marfim do marajá, carregado por onze criados, todos a debater-se com o peso imenso. O Kaiser bateu palmas de alegria ao vê-lo. Com alguma ajuda, subiu ao trono e sentou-se.

— Não vale a pena — disse. — Não chego ao copo. Levem-no daqui.

Quando o jantar foi servido, Greta olhou para Otto e Albert e viu que nenhum deles estava com muito apetite pela dauphinoise de trufa.

Na tarde seguinte, depois de o Kaiser ter sido metido em segurança no seu Rolls-Royce e levado para um castelo na Escócia, os homens da família Goldbaum reuniram-se na biblioteca com o príncipe Karl Max. Stanton trouxe-lhes café, mas Lord Goldbaum pegou na garrafa de uísque.

— Parece-me que o momento pede algo mais forte.

— É claro que seremos discretos — disse Otto. — Ninguém vai repetir uma palavra do que foi dito. Ninguém vai ouvir falar dos insultos.

O príncipe Karl ficou em silêncio, limitando-se a fazer um gesto a recusar o uísque que lhe era oferecido e a beber o seu café. Lord Goldbaum olhou atentamente para o embaixador e franziu o sobrolho.

— Talvez Sua Excelência não acredite que a discrição total seja desejável?

O príncipe Karl respondeu, num tom decisivo:

— Meus senhores, se me derem licença, gostaria muito de ver a extraordinária estufa de Lady Goldbaum.

Saiu da sala. Otto e Albert voltaram-se para Lord Goldbaum.

— Porque é que ele quer que a idiotice do Kaiser seja publicitada? O objetivo desta visita era melhorar as relações com a Inglaterra — perguntou Otto.

— O Kaiser é vaidoso, volátil e estranho. Como já vimos, é um perigo para a diplomacia internacional. Antes de a mousse de salmão ser servida, ele já tinha conseguido insultar os ingleses, prever uma guerra com o Japão e tentado minar as relações entre a Inglaterra e os seus aliados franceses e russos. Se o Reichstag tivesse alguma justificação para o controlar…

— … seria o melhor para a paz na Europa — disse Albert.

— O príncipe Karl é um patriota, sem dúvida — disse Lord Goldbaum. — Quer o melhor para a Alemanha, e isso significa, como podem ver, limitar a influência do Kaiser. Por vezes surgem oportunidades inesperadas e é preciso aproveitá-las.

Albert pegou no telefone.

— Que jornal?

— O Telegraph — disse Lord Goldbaum.

Lord Goldbaum trouxe os jornais para o quarto da mulher enquanto ela tomava o pequeno-almoço na cama. A secção das cartas ao editor ocupava uma página inteira de fúria, indignação e diversão.

— Nem sei quem está mais ofendido — disse Lord Goldbaum, servindo-se de uma fatia de torrada com marmelada e dando uma ligeira cotovelada à mulher para lhe dar espaço debaixo dos cobertores. — Se os japoneses, os ingleses, os franceses ou o seu próprio povo.

— Era uma conversa privada, Robert. Por muito terrível que fosse, não devia ter sido tornada pública.

— Ele é imperador! Até os peidos que dá são públicos!

Vendo a mulher retrair-se, Lord Goldbaum inclinou-se e beijou-lhe o nariz.

— Peço desculpa, Adelheid. Mas o homem devia ter mais juízo. E, já que não tem, o melhor é que o seu poder seja limitado. O Reichstag vai obrigá-lo a assinar uma declaração a reconhecer o seu respeito pela constituição.

Lady Goldbaum suspirou.

— Já é alguma coisa, imagino. Mas não acha que o artigo também confirmou ao público inglês os seus piores medos? Que o imperador é um déspota e um idiota, sedento por construir um império. E que o povo alemão encara os ingleses com desprezo. — Pousou a sua chávena de chá e olhou para o marido. — Meu querido, parece que às vezes se esquece de que eu nasci na Alemanha.

— Não me atreveria.

E beijou-lhe o rosto.