ESTHER CHÂTEAU, PARIS, 1 DE JANEIRO
Meia-noite e um minuto
Henri lia os jornais com uma frustração crescente, sem se aperceber do ano velho a partir e do novo a chegar. O governo queria que a Casa Goldbaum de Paris emitisse uma nova série de obrigações de guerra, mas queria as taxas de juro fixas e, com a inflação a subir a olhos vistos, Henri vira-se forçado a avisar o ministro das Finanças de que haveria poucos investidores. Teria preferido estar na América. Enquanto a Europa sangrava vidas e dinheiro, os lucros americanos com a exportação de cereais e armas crescia como o pé de feijão do conto de fadas. Os comerciantes de lá deviam pensar que tinham encontrado a galinha dos ovos de ouro, pensou Henri. Estava farto de cagar ovos de ouro e pô-los num navio para a América.
Bateram à porta. Um criado hesitava, à soleira. Não tinha a peruca limpa, nem direita, e coxeava um pouco. Os melhores criados tinham sido engolidos pelo exército, como peixinhos por uma baleia.
— Estão aqui um homem e uma mulher para o ver. Dizem que o professor os mandou.
Henri pôs os jornais de parte.
— Mande-os entrar.
O criado afastou-se e deixou entrar um homem de idade, de fato castanho, e uma jovem de vestido azul não muito limpo. Tinham os rostos marcados pela exaustão. A mulher parecia estar prestes a desmaiar.
— Traga um tabuleiro com comida e brandy — disse Henri, levantando-se.
O criado não se mexeu.
— Já acabou o que havia na copa — disse, baixinho.
— Então vá à cave — disse Henri, irritado.
O criado engoliu em seco e acenou com a cabeça, claramente aterrorizado com a ideia de ter de andar pelas caves enormes e escuras do château à luz de velas.
— Sentem-se, sentem-se — disse Henri, ajudando a jovem a acomodar-se no sofá.
— O meu nome é Voska — disse o homem. — Esta é a minha filha. Estamos a viajar há algum tempo.
Henri observou os seus convidados com interesse. Estas visitas ocasionais e furtivas dos nacionalistas checos intrigavam-no e inquietavam-no.
— De onde vieram? — perguntou Henri, por cortesia e para fazer conversa, esquecendo que não devia perguntar.
O homem fez uma pausa e lambeu os lábios, um pouco nervoso.
— Primeiro Viena. Depois Berlim. Muitos, muitos comboios.
O criado apareceu com um tabuleiro com pão, fruta, queijo e o brandy. Henri mandou-o sair e serviu os seus convidados. Comeram com uma avidez indecente.
— Em que vos posso ajudar, para além da refeição?
— Temos documentos que precisam de chegar a Inglaterra. Tem uma ligação, sim?
Henri acenou com a cabeça.
— O meu primo.
— Não podem ser enviados pela vossa rede de mensageiros; tem de levar isto a Beaurepair e entregá-lo em mãos a monsieur Goldbaum.
Henri sorriu e tirou uma uva.
— Monsieur Voska, lamento, mas estou bastante ocupado aqui em Paris. Eu não me envolvo nestes assuntos — fez uma pausa, à procura da palavra certa — clandestinos em pessoa.
Henri tinha dúvidas quanto à eficácia da Aliança Boémia. Eram austro-húngaros, nascidos cidadãos do império, mas que se consideravam patriotas checos. Queriam que os Aliados ganhassem a guerra e que o império austro-húngaro se fragmentasse, para que pudesse nascer uma nova nação checa. O seu nacionalismo ardente e o seu ódio ao império austríaco perturbavam Henri. A dinastia Goldbaum podia ter começado na Prússia, mas Henri considerava-se francês, e trair o seu país era tão impensável para ele como trair a família. Na verdade, não se atrevia a imaginar como Otto se sentiria magoado com a sua perfídia: o estranho casal agora sentado no seu sofá eram cidadãos da Áustria que Otto tanto amava e dedicavam-se a conspirar para a sua queda, enquanto ele, Henri — o primo preferido de Otto, seu amigo de infância —, os ajudava.
— É um documento importante — disse Voska em voz baixa.
— Sobre? — perguntou Henri, embaraçado pela posição em que se via colocado. Recusava-se a ser um agente passivo e a passar informação que não ajudasse a causa francesa.
Voska parecia embaraçado e, antes de conseguir falar, a rapariga levantou-se do sofá.
— O meu pai e eu passámos os últimos cinco dias a viajar por toda a Europa, sem parar para comer ou mudar de roupa, correndo o risco constante de ser apanhados, tudo para lhe trazer este documento. É um telegrama codificado. Não sabemos o que diz, mas sabemos que está escrito no código diplomático alemão. Os ingleses conseguem decifrá-lo.
— Ah, conseguem? — perguntou Henri.
— Acreditamos que sim — disse Voska, num tom lúgubre.
— Como o obtiveram? — perguntou Henri. — Desculpem, mas tenho de perguntar. Senão como conseguirei persuadir Albert, ou o seu contacto nos Serviços Secretos Navais, que o documento é autêntico?
Foi outra vez a rapariga a falar:
— Foi enviado de noite, de Berlim para o México. Um dos telegrafistas é membro da Aliança e copiou-o. Mas se os ingleses o revelarem, será uma sentença de morte para o nosso agente.
Henri observou-a atentamente por um momento, pensativo.
— Sim. Muito bem. Vou fazer o que me pedem. Deem-me o documento.
A rapariga sorriu, mostrando uma pequena fenda entre os dentes da frente.
— Preciso de um lugar para mudar de roupa. O telegrama está enrolado e escondido nas costuras do meu espartilho.
Henri tocou a sineta e mandou o criado acordar uma criada para ajudar a rapariga checa. Estranhou que o pai não tivesse acordado, com toda a agitação, mas Jacques estava a ficar surdo. Henri ficou com Voska. Nenhum deles falou. Henri esperou que não voltassem a encontrar-se. Quando olhou de novo para o relógio, viu que era quase uma da manhã.