ATLÂNTICO NORTE, NOVEMBRO

Albert partiu para Inglaterra a bordo do Wentworth da P&O. Viajaram num comboio de quase 40 navios — de mercadorias, de passageiros e dois enormes navios americanos do exército — escoltados por um cruzador, seis contratorpedeiros, cinco traineiras navais armadas e dois torpedeiros. Era uma viagem tensa, mas os passageiros do Wentworth exibiam todos uma falsa alegria, como se, ao beber cocktails de gin e ao dançar desastradamente ao som de um swing tocado num piano de cauda, conseguissem afastar o perigo. Albert não participava.

A meio do Atlântico Norte, dois passageiros adoeceram com febre tifoide. O comissário de bordo pô-los rapidamente de quarentena. Mas, por precaução, o capitão proibiu os bailes e o piano. Não podia haver convívio desnecessário e as refeições eram servidas por turnos, para reduzir o número de ajuntamentos. Havia um horário para os passageiros estarem no convés e nunca podiam ser mais de dez ou quinze ao mesmo tempo. O resto do tempo tinham de o passar nas suas cabines. Todos, menos Albert, se queixaram com veemência. Ele sentiu-se aliviado.

O comandante convidava-o para jantar na mesa dele quase todas as noites, mas Albert não fazia ideia porquê. Quase não conversava. Na maior parte das vezes, ficava a beber um copo de borgonha e a pensar para si como haveria de enfrentar o pai. Finalmente, quando perguntou porque é que o tinha convidado, o comandante respondeu:

— Você é a pessoa mais calma e tranquila com quem partilhar uma refeição neste navio. E é o único que não se queixa.

Depois disso, tornaram-se uma espécie de amigos, e o comandante deixava-o subir à ponte de comando quase todas as noites, a seguir ao jantar. Albert gostava da tranquilidade. O imediato quase não falava, limitando-se a rever o diário de bordo, enquanto as pancadas constantes do operador do telégrafo se misturavam com o ritmo hipnótico das ondas na escuridão. Não havia qualquer outro som humano, apenas se ouvia o ruído dos motores e das ondas a bater no casco de metal. As janelas das cabines estavam isoladas com cortinas pesadas que bloqueavam a luz e a ponte em si estava iluminada com uma só lâmpada fraca, pintada de vermelho, para não ser vista do mar. Albert mal conseguia distinguir os outros navios da frota; sabia apenas que ali estavam, escondidos no negrume. Ficou a olhar para o mar, estranhamente reconfortado pelo brilho sangrento da lâmpada.

Um dos doentes de tifo recuperou e era visto ocasionalmente a beber caldo de carne na sala de jantar. Albert viu o outro ser silenciosa e discretamente lançado ao mar, enquanto o capelão do navio murmurava uma oração. O corpo deslizou para a água, com o ruído do embate abafado pelo som da água agitada à ré. Albert viu-o flutuar um momento, o linho que o envolvia pálido contra as ondas negras, e depois afundar-se.

— É muito triste para a família ele ter de ser enterrado no mar. Mas o risco da infeção… — comentou o comandante, que observava ao seu lado.

Albert tinha dificuldade em sentir empatia por quem quer que fosse. Estava demasiado imerso nos seus próprios pensamentos melancólicos. Ansiava por Greta. Ela tinha-lhe enviado o molde para um colete salva-vidas especial e tinha-o encorajado a usá-lo debaixo da camisa. Albert tinha-o mandado fazer, mas o tecido arranhava-o, por isso deixou-o pendurado na cabine. Ela escrevia-lhe a dar notícias dos filhos, dos pais e a contar que as abelhas tinham apanhado uma doença trazida da Ilha de Wight, mas não lhe contou que tinha mudado de ideias. Falou-lhe do amor que lhe tinha, mas não lhe disse que o queria ter dentro de si. Albert começava a pensar se vê-la e não lhe poder tocar não seria pior do que não a ver de todo.

O cofre-forte no fundo do porão estava vazio nesta viagem de regresso; a carga preciosa estava em segurança, depositada em bancos americanos, a acumular juros. O dinheiro é um íman que atrai mais dinheiro, pensou Albert. O ouro está todo nos EUA e chama a si todo o resto do ouro, lenta e inexoravelmente, através do Atlântico. Deu por si a pensar cada vez mais naquela sala vazia no coração do navio. A guerra chegaria ao fim, mas o que sobraria do Velho Mundo?

Depois do jantar, uma noite, Albert foi ter com o comandante à ponte, como já era habitual. O comandante apontou para uma pequena forma ondulante diante deles e passou os binóculos a Albert.

— O HMS Mimosa. Um draga-minas da classe Flower. Está a abrir caminho para nós.

O comandante olhou para as mãos e franziu o sobrolho de desagrado.

— Tenho de ir buscar um par de luvas limpas ao meu quarto. Pode ficar aqui a vê-lo, se quiser.

O comandante afastou-se e Albert procurou o navio. Pestanejou e esfregou os olhos e depois, pegando nos binóculos, voltou a focar uma pequena sombra, a umas centenas de metros de distância, no preciso momento em que explodiu num clarão de luz. Durante um momento viu todos os navios da frota, em silhueta, como sombras. Meteoros de chamas dispararam para o céu antes de caírem ao mar, onde criavam pequenas ilhas de fogo. Uns momentos mais tarde, outra explosão abalou o Wentworth. Albert caiu, atirado ao chão como uma saca de arroz, e bateu com a cabeça contra a perna de uma cadeira. Choveram estilhaços de vidro da janela sobre as suas costas e cobriram o chão como granizo. Levantou-se com esforço, instável, como se estivesse embriagado, e sentiu o navio inclinar-se horrivelmente.

Ouviu-se um rugido mecânico vindo da sala das máquinas e uma pletora de estrelas ardentes lançou-se pelos céus como um fogo de artifício macabro. O imediato gritou ao telegrafista para mandar um SOS, mas Albert viu-lhe as faces cortadas pelos estilhaços de vidro. O telégrafo fora esmagado; estava destruído. O comandante regressou, a segurar inutilmente umas luvas brancas impecáveis. Pegou no tubo de comunicação para mandar ordens para a sala de máquinas, mas viu que estava rasgado. Horrorizado, Albert viu a hélice de estibordo erguer-se das águas. O barco estava a afundar, o comandante não conseguia comunicar com a sala das máquinas e, com as hélices ainda a funcionar, o navio estava a impelir-se firmemente para debaixo de água.

Sem esperar pela ordem de abandonar o navio, Albert saiu a correr da ponte. O seu colete salva-vidas estava pendurado na cabine de primeira classe, no piso abaixo. As hipóteses de chegar a um barco salva-vidas eram escassas. Ouviu um grito vindo do convés e viu uma das amas da nursery do navio a gritar por ajuda. Correu para lá. Os bebés tinham caído dos berços e estavam no chão, a chorar, rodeados de pedaços de um cavalo de madeira despedaçado e de carvão da lareira. Albert pegou em dois deles e colocou-os num cesto ao qual estava já preso um flutuador. Pegou no cesto e esforçou-se por chegar de novo ao convés.

O navio estava agora num ângulo grotesco. Gritos e chamas enchiam o ar. O Wentworth estava a impelir-se cada vez mais para debaixo das ondas, com os próprios motores a arrastá-lo para o fundo do Atlântico. Águas negras entravam em torrentes pelos lados do navio, com um rugido. Albert agarrou-se com força à amurada, apavorado que os bebés caíssem do cesto para o mar. A água aproximava-se cada vez mais. Soltou uma boia e, pondo-a à cintura, passando-a por cima da cabeça, saltou a amurada, com o cesto nos braços. A água estava tão fria que lhe cortou a respiração; respirou fundo e piscou os olhos.

Em pânico, bateu as pernas, furiosamente, rapidamente; não sabia se o trovejar que ouvia era o bater do seu coração ou o ruído das ondas a bater contra o seu corpo. Obrigou-se a respirar lenta e profundamente. Bateu as pernas em movimentos curtos e fortes enquanto tentava impelir-se a si mesmo e ao cesto para o mais longe possível do navio. Não podiam ser arrastados quando ele finalmente afundasse. A espuma das ondas aspergia os bebés. Um pouco mais longe, parou, mantendo-se à tona. Não havia sinal do navio. Na escuridão, conseguia distinguir alguns volumes. Gritou desesperadamente por ajuda a um homem perto deles, até perceber, quando se aproximaram, que tinha estado a pedir ajuda a uma mala. Não sabia quanto tempo tinha passado — podiam ser minutos ou horas. Olhou para o relógio, mas estava embaciado e parara no momento em que entrara na água, pouco depois das dez e meia. O céu estava escuro e cheio de nuvens que cobriam as estrelas e a luz da lua. Não havia sequer um vislumbre da madrugada no horizonte. Tentou falar com os bebés para os acalmar mas, ao ficar sem fôlego, teve de parar. A melhor maneira de os ajudar era preservar as suas forças. Uma enfermeira poderia reconfortá-los mais tarde. Se ao menos não estivesse tanto frio. Se ao menos os cobertores deles não estivessem tão molhados. Os bebés choraram e depois ficaram em silêncio. Albert tinha os dentes a bater descontroladamente.

Um dos bebés gemeu e voltou a chorar, mas o outro estava tão silencioso que Albert temeu que tivesse caído. Olhou para dentro do cesto e viu, para seu alívio, que estava a dormir; aparentemente, o movimento das ondas embalara-o. Acariciou-lhe a bochecha fria. Ele não se mexeu, e Albert espantou-se como um bebé podia dormir tão tranquilamente numa altura daquelas.

Sentiu a maré virar. Pela primeira vez, viu de relance um barco salva-vidas, e depois outro, mas afastaram-se sem nunca chegarem suficientemente perto para o ver. Bateu as pernas, forçando-se a ficar acordado. Sabia que era muito importante ficar acordado. Começou a recitar o seu nome e os da sua família, uma oração contra a escuridão e o frio e a atração sumptuosa de fechar os olhos: O meu nome é Albert Haim Moses Goldbaum. A minha mulher é Greta Esther Goldbaum. Um cardume de peixes passou por ele e bateu-lhe no corpo; percebeu então que não eram peixes, mas sapatos de passageiros afogados. Pelo menos, tinha uma resposta à sua questão. Mesmo se Greta nunca o deixasse sequer beijar-lhe o cotovelo, sabia, sem qualquer dúvida, que queria voltar a vê-la.

Tinha tanto frio e estava tão cansado e a história estava toda errada. A Arca não se afunda no Atlântico e foi no Nilo que Moisés andou à deriva. Parou de estremecer e percebeu vagamente que já não tinha frio. Precisava de fazer um esforço enorme para pensar. Eu sou Albert. A minha mulher é Greta. Tenho dois filhos. A Celia tem três anos e o Benjamin é bebé. Era imensamente importante que se lembrasse. Bateu as pernas, mas elas não se mexeram. Eu sou Albert. A minha mulher é Greta. Tenho dois filhos. A Celia e um bebé. Ele chama-se… Albert tentava com todas as forças manter o queixo à tona de água, mas não se lembrava porquê. Estava tão cansado. Ninguém o poderia culpar se dormisse um bocadinho. Eu sou Albert. A minha mulher é. Eu sou. Eu sou. Eu sou.

Fechou os olhos e deslizou suavemente para debaixo de água.