HAMPSHIRE, NOVEMBRO

Ao ver os flocos de neve esvoaçar preguiçosamente pela janela da Galeria Oriental, depois de almoço, Greta teve uma recordação visceral de casa. Lembrou-se das tardes passadas com Otto, em pequena, à janela do quarto, a tentar ver os primeiros flocos de neve — aquela emoção de saber que no dia seguinte, quando acordassem, o mundo estaria transformado. Viena era uma cidade sempre à espera do inverno. O inverno em Viena tinha tanta elegância: o toque dos sinos das carruagens puxadas a cavalo, os candeeiros de rua acesos à tarde. Com a melancolia a assentar-lhe no peito, como uma tosse, Greta vestiu o casaco e foi dar um passeio. Recusou as ofertas de companhia. Tinham todos as melhores das intenções, mas ela só queria estar sozinha.

As sebes baixas e o jardim estavam cobertos de neve; as folhas dos cíclames retorcidas e cobertas de geada. As estátuas das fontes mantinham os gestos do ritual do banho, sem água; o mecanismo das fontes estava paralisado pelo gelo. Caminhou até ao arboreto, a passos largos, passando pelos imensos espécimes de coníferas com os ramos mergulhados na neve. Olhou através do verde das folhas até ao cinzento pesado do céu. Parou um pouco; a casa estava escondida entre as árvores e, no silêncio, quase se conseguia imaginar numa floresta algures, longe dali. Porém, erguendo-se por trás dos pinheiros, lá estava a familiar lama do Solent, dois mundos, o da floresta coberta pela neve e o do rio de Fontmell, comprimidos um contra o outro. Greta lera que os enlutados, no Japão, são muitas vezes assombrados pelos seus mortos; mas ao olhar em volta, na luz azul-esverdeada sob os abetos, Greta sentia apenas que estava só.

— Porque é que não me vêm assombrar? — gritou. — Porque é que me abandonaram?

Estava furiosa com os dois. Tinham-na deixado tão completamente só, privada até de fantasmas. Fechou os olhos e respirou fundo; sentiu a infelicidade encher-lhe o peito. Alojou-se lá como uma pepita, sólida. A minha dor é vulgar, é comum, pensou. Metade das mulheres aqui na propriedade estão de olhos rasos de tanto chorar, as ruas estão repletas de viúvas. Mas a ubiquidade da dor em nada diminuía a sua. Parecia-lhe mais cruel ainda que o mundo não parasse para reconhecer a injustiça e o horror da sua dupla perda. Greta tinha de se obrigar a dizer os seus nomes em voz alta: Otto. Albert. Parava sempre por um breve momento antes de os dizer, como quem hesita antes de rebentar uma bolha, antecipando a pontada de dor.

Estava a nevar mais, agora; pestanejou para tirar os flocos das sobrancelhas. Deixou as árvores e foi até às estufas de Lady Goldbaum, que brilhavam, no meio da neve, como uma frota de navios de vidro numa tempestade. As palmeiras e as orquídeas aveludadas brotavam alegremente, alheias ao inverno. Passou pelas estufas que abasteciam as cozinhas, cheias de árvores de fruto, e pensou, por um momento, que o telhado se tivesse partido, pois as árvores estavam cheias de neve. Depois percebeu que as cerejeiras estavam cobertas de flores, e não de neve. Não resistiu; abriu a porta e entrou. Abelhas voavam em liberdade; o seu silvo alto e insistente enchia o ar. No interior, estava um dia quente de primavera, e sentiu-se como Perséfone, libertada dos Infernos. Desabotoou o casaco e caminhou por entre as árvores. Na casca de uma cerejeira selvagem estava um lucano grande. Inclinou-se para examinar a casca polida, os cornos negros e peludos. A carapaça brilhante do lucano abriu-se e Greta teve um vislumbre indecoroso das suas delicadas asas interiores. Compreendeu, pela primeira vez, o fascínio de Albert; aquela criatura tinha realmente uma magnificência repelente.

Encostou a testa à janela, inspirando o odor floral da primavera e vendo a neve cair. O seu reflexo no vidro era pálido. Parecia magra e infeliz, como se quase não estivesse ali. Passou um momento até perceber que estava outro rosto a olhar para ela. Teria ele ouvido a sua oração e acedido a assombrá-la, por pura ternura? A ânsia por alguém é uma fome que nunca é saciada, pensou. Faz-nos imaginar coisas que não existem. Estou a ver o Albert porque quero. Ou então ele está morto, e estou a ver um fantasma em que não acredito. Pestanejou e, claro, o rosto desapareceu.

Não ouviu a porta da estufa a abrir. A mão que sentiu no ombro um momento depois não parecia de todo fantasmagórica; era quente e sólida e estava húmida da neve.

— Greta?

Albert estava diante dela, entre as cerejeiras. Mais magro, com a barba um pouco grisalha, mas era Albert. Ficaram parados um momento; nenhum deles se atrevia a tocar no outro, para que este glorioso fantasma não desaparecesse. O que disse ele? Tudo e nada. Pediu desculpa por não ter enviado um telegrama, mas queria ser ele a contar-lhe. Falou-lhe do bebé que tinha salvado. Não mencionou o outro que morrera.

Greta tentou falar, mas não conseguia. Estendeu o braço e pegou na mão dele; estava quente, a pele áspera e gretada. Passou as pontas dos dedos pelas articulações dos dedos dele.

Ela abanou a cabeça. Ele abraçou-a e ela respirou o odor de lã húmida e viagens.

Saiu dos seus braços e afastou-se um pouco para o poder comparar com a imagem que tinha dele na sua imaginação. O Albert verdadeiro, de carne e osso, sobrepôs-se rapidamente ao outro, mais efémero. Estava grisalho de fadiga e, agora que olhava com mais atenção, viu que tinha um corte profundo sob um olho. Parecia mais velho e mais triste; mas, na verdade, ela também.

Greta sentiu-se tonta, mas não sabia se era do alívio ou da humidade da estufa. Deu a mão a Albert e ele apertou-a tanto que ela sentiu os ossos dos dedos estalar. Caminharam juntos pelo pomar, escutando o zumbido das abelhas e os flocos de neve a bater contra o vidro. Greta sentia-se como se Albert e ela fossem bonecos dentro de um globo de neve de uma criança.

Pôs-se em bicos de pés para o beijar. O rosto dele estava áspero e mal barbeado e arranhou o dela. Isso fazia-o parecer ainda mais real. Passado algum tempo, com relutância, ela afastou-se. Pegou na mão dele e encostou-a, numa carícia, ao rosto. Sentia-se como se lhe tivessem amputado um membro e agora tivesse acordado para o encontrar subitamente cosido de volta ao corpo.

— Se eu fechar os olhos, vais desaparecer?

Albert negou com a cabeça. Greta mordeu o lábio para não chorar. Se começasse, podia nunca mais parar. Sentaram-se na terra húmida, sob uma árvore; as flores murchas que caíam prendiam-se ao cabelo dela, como confetes. O solo estava quente, aquecido por um labirinto de canos de água quente. Um dia, ela voltaria a saber sentir a felicidade. Isto era demasiado cru; o alívio era automático e assoberbante. Ela precisava de reaprender a tomar a presença de Albert como certa.

Deitaram-se, de mãos dadas, e Greta olhou para cima, através do entrelaçado de flores e de flocos de neve.

— Temos de voltar para casa. Contar aos outros que voltaste — disse ela.

— Ainda não — disse Albert. — Ainda não.

Uma hora mais tarde, voltariam a casa, para que o alívio do regresso de Albert pudesse ser partilhado, o champanhe aberto e lágrimas de alegria choradas. Quinze minutos depois, mensageiros e telegramas seriam enviados, para que a notícia da sobrevivência de Albert pudesse ser espalhada pelas Casas da Europa: o filho e herdeiro da Casa Goldbaum inglesa está vivo. Mas por um momento mais, pelo menos, um homem e uma mulher ficaram deitados, em silêncio, sob as cerejeiras. Os Goldbaum não tinham o poder de pôr fim à guerra, mas ainda eram capazes de fazer surgir a primavera no meio da neve.