Adolpho Lutz e a micologia

Adolpho Lutz (1855-1940) teve grande participação no desenvolvimento da ciência no Brasil, especialmente na micologia médica, para a qual sua maior contribuição foi a descrição dos dois primeiros casos mundiais de paracoccidioidomicose em São Paulo, em 1908.

Micologia é a ciência que estuda os fungos, seres vivos de origem polifilética, situados entre plantas e animais, com organização celular e DNA limitados por membrana dupla (eucarióticos). Apresentam grande variabilidade de formas, funções e habitats. Os fungos têm extraordinária plasticidade, são cosmopolitas, heterótrofos (precisam de fontes de alimento, pois não sintetizam o seu próprio), e contam com representantes macroscópicos, como os cogumelos e orelhas de pau, e microscópicos, como as leveduras e os fungos filamentosos.

As funções que podem exercer nos diversos ambientes variam bastante: desempenham atividade sapróbia e atuam na degradação de matéria orgânica natural, garantindo, assim, a ciclagem de nutrientes nos solos e nas águas; participam de simbioses mutualistas (fungos micorrízicos associados a raízes de plantas) e comportam-se como parasitas, com diferentes graus de severidade e especificidade em relação a plantas, animais, ao homem e a outros hospedeiros.

A classificação desses organismos é bastante complexa e muitas vezes controversa. Há pesquisadores que os classificam num único reino, o Fungi;1 outros, com base em estudos filogenéticos, consideram que participam de três reinos: Fungi, Stramenopila e Protista.2

É interessante salientar que muitas potencialidades metabólicas dos fungos, tais como a produção de amplo espectro de enzimas e antibióticos, sua capacidade biodegradativa e resistência a estresses ambientais podem caracterizar os mesmos fungos como "heróis ou vilões", como mostrou Milanez.3

Compreende-se melhor a vital contribuição de Adolpho Lutz para a ciência se focalizarmos alguns trabalhos sobre esses intrigantes organismos no período de 1885 a 1920. Para isso, tomamos como base a extensa revisão da história da micologia geral publicada por Fidalgo, a revisão específica sobre a história da micologia médica de Lacaz e as valiosas informações contidas na obra de Almeida.4

A história da micologia no Brasil desenvolveu-se, em grande parte, graças à exploração da micota nativa por pesquisadores estrangeiros (Fidalgo, 1968). No final do século XVIII, a Europa começou a manifestar interesse crescente pela flora e fauna dos continentes não europeus, com especial ênfase para as Américas. Nessa época, foram financiadas diversas viagens, obtendo-se extraordinária quantidade e variedade de material biológico descrito, cata- logado, herborizado e prioritariamente conservado nos acervos dos locais de origem dos naturalistas. Fidalgo (1968) caracterizou a primeira etapa do estudo de fungos no Brasil como a dos "botânicos viajantes", que incluíam cientistas renomados como Link, Ehrenberg e von Martius, entre outros.

No reinado de D. Pedro II, em decorrência da falta de escolas superiores e de profissionais especializados, técnicos estrangeiros foram convidados a atuar no país, em diversas áreas do conhecimento, e assim, aos poucos, os saberes desses estrangeiros foram sendo transferidos para estudiosos, coletores e técnicos brasileiros. Exemplos disso são Glaziou e Juan Ignácio Puiggari, que não só coletaram muitos fungos macroscópicos como se dedicaram ao estudo da sua sistemática.

Entre 1883 e 1900, vários pesquisadores europeus interessaram-se pelo estudo de fungos macroscópicos brasileiros, destacando-se Georg Winter, Ernst Heinrich Ule e Pazschke, que coletaram, prepararam importantes coleções de exsicatas e publicaram quantidade substancial de artigos em revistas como Hedwigia e Annales Mycologici. O material coletado procedia de diversos estados, como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Amazonas, Goiás, Bahia, Piauí, Santa Catarina, Pernambuco, Pará e Mato Grosso.

O padre Johannes Rick (1896-1946) pode ser considerado o pai da micologia brasileira por haver organizado no Colégio Anchieta, em Porto Alegre (RS), uma coleção com 12 mil a 15 mil exsicatas de fungos, iniciando a publicação da sistemática das espécies em português (Fidalgo, 1968; Lacaz et al., 2002). Considera-se que a partir dessa etapa já se tem a preocupação de preservar os espécimes brasileiros no próprio país para fins de documentação da diversidade biológica.

A época em que Adolpho Lutz atuou foi marcada por fatos históricos importantes, como a abolição da escravatura (1888), o final do império e o início do período republicano (1889).

No ano de 1886, no artigo "Über die Ätiologie der Pityriasis", publicado no Monatshefte für Praktische Dermatologie, Lutz apresenta uma resenha sobre a comunicação de Primo Ferrari à Academia de Ciências da Catânia referente a diversos tipos de pitiríase, salientando o resenhista que esse pesquisador considerava idênticos os organismos descritos por Malassez, Bizzozero e Rivolta, os quais foram denominados Saccharomyces furfur. Produziam a pitiríase em partes do corpo humano como o couro cabeludo e onde havia pêlos, ao passo que o Mikrosporon anomaeon Vidal se distinguia dos demais por causar a dermatose em partes glabras.

Com relação à taxonomia desses organismos, Saccharomyces furfur e Saccharomyces sphaericus Bizzozero (1884) são atualmente considerados sinônimos da levedura lipolítica Malassezia furfur (Robin) Baillon (1889).

Ainda em 1886, Lutz descreve uma nova doença observada no Brasil, mais especificamente na região de Limeira, em São Paulo, atribuindo as suas causas ao possível consumo de milho estragado e à má nutrição dos doentes que apresentavam sintomas de acrodinia e pelagra. Nesse artigo não foram mencionados eventuais agentes etiológicos.

No artigo "Sobre um epífito esquizomiceto da pele humana" (Mikrosporon anomaeon Vidal), Lutz (1886) apresenta observações feitas juntamente com o dr. Unna sobre o isolamento de um fungo que considerou idêntico ao Mikrosporon anomoeon obtido pelo prof. Primo Ferrari, mencionado no artigo anterior. No entanto, o significado patológico dos microrganismos é colocado em dúvida diante dos resultados negativos das inoculações na pele realizadas por Lutz em sua própria pessoa.

As antigas literaturas citadas tornam difícil a comparação das espécies de leveduras, porém as informações fornecidas na descrição de Lutz são compatíveis com as da espécie M. furfur, como se vê em Lacaz et al. (2002).

Em 1887, Lutz publicou um artigo sobre Lichen ruber, obtusus e planus, descrevendo minuciosamente os primeiros casos ocorridos no Brasil.

Posteriormente, publicou artigos sobre a casuística do rinoscleroma (Lutz, 1890) e sobre o tratamento de ateromas (Lutz, 1891), sem haver detalhamento sobre eventuais microrganismos associados a esses problemas de saúde.

Nos artigos aqui mencionados, a riqueza de detalhes sobre os sintomas das doenças, as condições dos pacientes e as pormenorizadas descrições dos tratamentos impressionam o leitor. As abundantes informações fornecidas também sobre a composição e posologia dos medicamentos, naquela época à base de pomadas, soluções e ungüentos, assim como sobre as reações dos doentes a esses medicamentos devem ter sido de extrema importância para a comunidade médica.

Lacaz (1983), Lacaz et al. (2002) e Olympio da Fonseca5 consideram Silva Araújo como o pioneiro no estudo da micologia médica no Brasil. Citam também Pedro Severiano de Magalhães, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. As pesquisas realizadas por Adolpho Lutz, à mesma época, redundaram em avanço considerável nessa importante área da micologia.

O artigo "Über eine bei Menschen und Ratten beobachtete Mykose" representa um dos relatos mais interessantes e de maior valor histórico para a micologia. De autoria de Adolpho Lutz e Alfonso Splendore (1907), o artigo reporta uma micose observada em homens e ratos, denominada esporotricose. Os autores justificam a demora em publicar o trabalho pelos problemas ocorridos com a identificação do organismo causador da doença.

O artigo é riquíssimo em detalhes, e contém a primeira descrição de Sporotrichum no Brasil, fato esse de grande relevância para a micologia. A observação das estruturas microscópicas do Sporotrichum schenkii continua a ter grande valor taxonômico. Portanto, o detalhamento das características microscópicas feito pelos autores do artigo contribui significativamente para a certificação da linhagem brasileira desse fungo.

O trabalho de Lutz e Splendore foi bastante avançado para a época, pois quando o primeiro relatou seus casos na Europa, em 1905, com a ajuda de preparados e fotografias, nem o Instituto Pasteur nem renomados pesquisadores de outras instituições conheciam o fungo ou, detalhadamente, a doença.

Além da dificuldade de identificar o fungo, problema relevante deve ter sido, também, a escassez de literatura especializada e a ausência de coleções de culturas que pudessem fornecer material certificado para confirmação e identificação dos isolados obtidos.

É interessante lembrar que somente alguns anos antes (1885-1886), Pier Andrea Saccardo iniciara a publicação da grande obra Syllogue Fungorum: omnium hucusque cognitorum (Pádua, 1882-1931), que incluiu, aliás, a descrição de material brasileiro coletado em Santos e São Paulo por B. J. Balansa, e no Rio Grande do Sul pelo padre Rick. Esses fungos eram parasitas em folhas de orquídeas.

Uma das mais relevantes contribuições de Saccardo foi a proposta de classificação dos fungos imperfeitos (atualmente denominados anamórficos ou mitospóricos) por não apresentarem formas sexuadas conhecidas. Esse grupo de fungos, também conhecido por deuteromicetos, Deuteromycota ou Deuteromycotina, dependendo do sistema de classificação, abrange a maior quantidade e diversidade de fungos patogênicos para o homem. Em seus artigos, Adolpho Lutz chega a se basear no sistema de Saccardo quando tenta identificar os agentes etiológicos das micoses estudadas.

A partir do trabalho pioneiro de Lutz e Splendore sobre a esporotricose, diversos estudos foram relatados no Rio de Janeiro, em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e até por Oswaldo Cruz no Acre, mais especificamente na cidade de Rio Branco (Almeida, 1939).

No artigo originalmente publicado em português, "Uma micose pseudococcídica localizada na boca e observada no Brasil. Contribuição ao conhecimento das hifoblastomicoses americanas", Lutz (1908) trata com maior amplitude da classificação dos fungos, inclusive o agente da blastomicose. O autor denomina as micoses causadas por Pseudococcidia como Hifoblastomicoses. Novamente, apresenta descrições detalhadas dos fungos, dos sintomas das doenças e dos resultados obtidos com os tratamentos. Ressalta ainda a importância do modo de infecção, a forma de entrada do agente patógeno, sua virulência no organismo do paciente e a resistência deste, aspectos importantes para a compreensão da dinâmica das micoses sistêmicas.

Esse trabalho ilustra bem a importância dos conhecimentos não apenas sobre a sintomatologia como sobre as características taxonômicas dos agentes causadores de doenças. Como afirmou Almeida (1939): "Não só por ser o primeiro, é este trabalho de Lutz de grande valor cientifico, pois conhecedor que era dos casos de granuloma coccidioidico e blastomycose systemica, não hesitou em considerar seus casos como diferentes, em situação intermediária, como escreveu".

Em 1912, Alfonso Splendore (1871-1953) isolaria o mesmo fungo, classificando-o como Zymonema brasiliensis. Posteriormente, foi denominado Paracoccidioides brasiliensis.

Os trabalhos pioneiros aqui mencionados despertaram o interesse de diversos pesquisadores para o estudo dessa micose: J. Castro Carvalho, 1911; Pedro Dias da Silva, 1912, 1914; Gomes Cruz, 1913; Oswaldo Portugal, 1913; Renato Kehl, 1915 e Carini, 1915, são referências importantes encontradas em Almeida (1939).

Lacaz (1983) e Lacaz et al. (2002) consideram a descoberta por Adolpho Lutz (1908) da blastomicose sul-americana, atualmente conhecida como paracoccidioidomicose, como uma das mais importantes contribuições para a micologia médica, sem deixar de destacar a real importância do estudo da esporotricose, transmitida por mordida de ratos.

A contribuição  de Alfonso Splendore e os trabalhos de Ernesto de Souza Campos e Floriano Paulo de Almeida na diferenciação do Paracoccidioides e do Coccidioides immitis são ressaltados também por Lacaz et al. (2002).

No artigo "Contribuições à História da Medicina no Brasil. Reminiscências Dermatológicas", Lutz (1921) apresenta uma retrospectiva de quarenta anos de observação de doenças de pele, descrevendo de maneira soberba os casos analisados.

Lacaz (1983) referencia e reporta outros estudos da mesma época em que Lutz realizou suas pesquisas. Trata-se de estudos conduzidos por outros cientistas da Escola Micológica de Manguinhos, no Rio de Janeiro, entre os quais Ezequiel Caetano Dias (1914 a 1917), que se encontrava em Belo Horizonte, e que investigou a adenomicose endêmica, posteriormente reconhecida como forma ganglionar da paracoccidioidomicose.

Além dos grupos de micologistas nos estados do Sudeste, Lacaz menciona, na Bahia, Gonçalo Moniz e Prado Valladares, que estudavam a piedra ascospórica; Cerqueira Pinto, que finalizava sua tese sobre Tinea palmaris; Octavio Torres e seu trabalho sobre actinomicose; e, por fim, Pirajá da Silva, autor de tese sobre micetoma provocado por fungos.

Nesses trabalhos  algumas dúvidas foram expressas, especialmente com relação à identificação dos agentes causadores das doenças. Deve-se lembrar que, mesmo com o avanço das técnicas morfológicas, genéticas e bioquímicas, a sistemática de fungos ainda é bastante complexa nos dias atuais. Portanto, eram perfeitamente justificáveis as incertezas que a identificação desses microrganismos suscitava na época.

As pesquisas de Adolpho Lutz representaram um marco fundamental na história da micologia básica e médica. Seus trabalhos nortearam importantes linhas de pesquisa nessas áreas, e as descrições minuciosas dos fungos que observou contribuíram para ampliar a gama das espécies fúngicas, favorecendo seu rápido reconhecimento, estivessem ou não associadas a casos clínicos.

Iracema Helena Schoenlein-Crusius

Instituto de Botânica, Seção de Micologia e Liquenologia, São Paulo

Claudete Rodrigues de Paula

Universidade de São Paulo, Instituto de Ciências Biomédicas, Departamento de Microbiologia