Pelo resto da semana, evitei Brent e Condor: Brent, porque não sabia se queria realmente revê-lo, embora eu dissesse que veria; Condor, porque eu não queria mais nada.
Mesmo quando garota, eu era atraída aos animais. Uma vez tentei salvar um guaxinim que, de algum jeito, conseguiu entrar em nosso porão, e ele quase me arrancou o dedo mínimo – ainda tenho a cicatriz. Mas, mesmo na época, eu chorei, não pelo sangue ou pelas injeções de antirrábica que vieram depois, chorei quando meu pai, ouvindo-me gritar, desceu correndo com um rifle e baleou o guaxinim entre os olhos.
Sempre quero as coisas que mais machucam.
Em vez disso, atiro-me de cabeça no caso. Do que realmente precisamos são dos livros contábeis da Optimal. Tudo sempre se resume a dinheiro: medidas de economia, canos inadequadamente mantidos, fraudes em testes depois que os resultados começam a chegar adulterados e gente sendo paga para calar a boca. Como a empresa tem incentivos do estado para manter os negócios em Indiana, os relatórios trimestrais da Optimal estão disponíveis para o público. Mas precisamos ir mais fundo. Precisamos de sua contabilidade geral, cheques recebidos e emitidos.
Alguns pagam. Outros recebem.
Faço o que faço melhor: examino papelada, números, padrões e rupturas que podem significar tudo ou nada. A prefeitura de Barrens tem testado a água todo ano – os resultados são divulgados, de acordo com a Lei de Acesso a Registros Públicos de Indiana –, o que me surpreende, em vista do fato de que grande parte da infraestrutura tem 75 anos.
Eles estão se esforçando demais para parecer limpos.
NOITE DE SEXTA-FEIRA, INDIANA, crepúsculo: o céu é azul e cor-de-rosa, e as chuvas do início da semana deixaram os campos com a aparência de frescor. Os corvos em silhueta nos fios telefônicos são numerosos demais para contar.
Estou a apenas oitocentos metros de minha casa alugada atrás do salão de beleza quando meu celular toca: código de área de Indiana, um número que não reconheço. Quase silencio o aparelho, mas, no último segundo, decido atender.
– Sim?
– É Abigail Williams? – Uma voz de homem, desconhecida.
– Ela mesma – digo, já encostando o carro, procurando um bloco e uma caneta. – Quem fala?
– Aqui é o xerife Kahn. Estamos com seu pai, aqui, na delegacia...
Meu estômago arria.
– ... Nós o pegamos na Main Street. Ele parece confuso, insiste que deve haver um bar com música por lá. Tinha seu número escrito na carteira. Soube que você estava na cidade, é verdade?
Fecho os olhos e vejo, no escuro atrás das pálpebras, o velho salão de dança Dusty Chap. A música country alta, o cheiro de batata frita e cerveja, minha mãe rebolando ao som de Wynonna ou Travis Tritt diante de mim com suas botas de caubói e o cabelo amontoado no alto da cabeça, preso com um elástico. Foi uma das coisas mais divertidas que fiz com minha mãe antes de ela morrer. O lugar fechou anos atrás, quando eu estava no ensino fundamental.
– Sim, estou. Já chegarei aí. – Faço a volta com o carro.
MEU PAI TINHA se acalmado quando cheguei lá, e não parecia entender por que estava sentado na sala do xerife.
– Que vergonha – diz ele ao xerife Kahn, mesmo enquanto luto para colocá-lo no banco do carona. De algum modo, ele perdeu a bengala. – Que vergonha, fazer essa grosseria com um velho desse jeito. Eu não estava fazendo nada, só cuidando da minha vida, e você aparece e fala absurdos do salão de dança...
– Esse lugar fechou, pai – digo, lançando um olhar de desculpas ao xerife Kahn.
– Sei disso, Abigail – vocifera ele, por um segundo parecendo mais o pai de que me lembro. Não responda aos mais velhos. Cuidado com essa sua boca suja. Sou seu pai, e você vai fazer o que eu mandar. – Fechou logo depois que sua mãe morreu.
Voltando a casa, encontro a bengala dele encostada perto da porta. Só Deus sabe como ele conseguiu ir a algum lugar sem ela. Desconfio que um dos vizinhos lhe deu uma carona, sem perceber o quanto meu pai estava mal. Ele afasta minha mão com uns tapas quando tento obrigá-lo a tomar seu remédio, mas por fim se acalma e deixa que eu coloque os comprimidos em sua língua, sentado ali, dócil, os olhos lacrimosos, como se, aprisionado por baixo da pele fina e manchada e do hálito viciado, fosse uma criança que precisa de atenção. Eu o deixo dormindo e prometo telefonar de manhã.
Fico destruída pela necessidade dele e por meu desejo de curá-lo. Devia ficar aliviada. Agora ele é digno de pena demais para odiar. Nunca pretendi verdadeiramente confrontá-lo. Jamais esperei me reconciliar com nada disso. Vendo esta versão dele, sei, com todo o meu corpo, que nenhuma dessas coisas jamais será uma opção. É demais.
No banheiro, lavo as mãos, jogo uma água na cara e lavo as mãos de novo. Abro o armário, virando na mão alguns comprimidos de Valium de um frasco com o nome dele. Mas ainda estou trêmula demais para dirigir, e, quando saio, o cheiro do fogo me alcança de longe e toca antigas lembranças: festas no lago que nunca me incluíam. A garotada arrastando isopores e toalhas de praia para a mata. Meu pai me batendo com força, com a mão aberta, na cara, na única vez em que tentei escapulir.
Ao longe, ouço os guinchos de riso e a batida da música. Conheço aquele som. Alguém está dando uma festa em volta da fogueira.
As lembranças são como fogo, e só precisam de algum oxigênio para crescer. Agora me lembro de que eu costumava ver a luz distante das fogueiras de um local pouco além de minha varanda dos fundos. Lembro que às vezes meu pai encontrava latas de cerveja amassadas na mata, perto do galpão de ferramentas, de onde os garotos mais corajosos chegavam perto o bastante para jogar latas vazias na casa – só porque podiam, pois a casa ficava ali –, até meu pai pegar o rifle e disparar às cegas no escuro.
Nunca fui convidada. As comemorações em volta da fogueira eram para a turma das festas – para a turma e ponto final. Ainda assim, às vezes eu ficava sentada do lado de fora, e jurava que a fumaça tocava o fundo de minha garganta, mesmo daquela distância toda.
Por impulso, aperto meu suéter e parto pelos campos até a floresta e, depois dela, a represa – a represa, o começo de tudo –, mesmo ansiando por Chicago e o abençoado anonimato do prédio onde morava. Sinto falta de estar a várias centenas de quilômetros de meu pai, de tudo isso.
A mata está fria e muito escura, e imediatamente me arrependo de não ter trazido uma lanterna. O sol vai se pôr a qualquer minuto. Mas logo posso ver o tremular distante da fogueira e o brilho prateado da represa. Foi aqui, nesta mata, que Brent me beijou.
Não conte a ninguém, sussurrou ele, tocando meu lábio inferior com o polegar. Lembro-me do cheiro de tinta e do barulho dos grilos.
E então, enquanto me aproximo da margem, passado e presente se fundem. Como sombras em silhueta pelo fogo, separando-se e se recompondo, o Brent de minhas lembranças se transforma no Brent verdadeiro, acenando para mim de longe.
– Abby! – Ele se afasta de um grupo de amigos. Olho nos olhos de Misha uma fração de segundo antes de ela também invocar um sorriso. Depois, Brent me engolfa num abraço, e eu a perco de vista. – Você parece uma surpresa caída do céu.
– Você evidentemente está bêbado – digo, afastando-me.
Ele ri.
– Só um pouco. – Depois: – É sério, eu estava justo pensando em você.
Enquanto todos perto da fogueira se viram para olhar, reconheço vários da escola que esperava nunca mais rever. Arrependo-me de ter vindo. Mas agora é tarde demais.
– Reunião da sociedade secreta? – pergunto.
– Não há nada de secreto nisso – diz Brent, sorrindo. Hoje ele está de camisa polo, calça cáqui e sapato social. Parece um anúncio da Ralph Lauren encarnado. – Tentei te convidar, mas você não retorna meus telefonemas.
– Desculpe. Semana movimentada.
Brent dá de ombros como se soubesse que isto é só uma desculpa.
– Não importa. Você veio mesmo assim. Está vendo? É um sinal. – Ele passa um braço por meus ombros. Sem dúvida nenhuma está de porre.
– Você está com o cheiro da praia – digo, embora o que eu queira dizer é que ele cheira a uma fábrica de bebida.
– Meu cheiro é ótimo. Só estive nadando.
– Na represa? Que homem de coragem.
– É totalmente segura. Você vai ver. Pura como a Islândia. – Ele me conduz até o fogo e começa a me guiar pelo grupo. – Vem, urbanoide. Vamos arrumar alguma coisa para você beber. Só trabalho e nenhuma diversão não pode ser bom.
Se não fosse pelos cabelos recuando na testa e as panças, eu poderia pensar ter voltado no tempo: reconheço todo mundo, jogadores de futebol e basquete, cheerleaders e meninas da equipe de dança, todos eles agora me olham com uma curiosidade e uma suspeita especiais. Não via nenhum deles desde a formatura.
Lembro-me de Kaycee pintada nas cores da escola, de pé e tremendo, piscando para o sol, enquanto as meninas começavam a cair como uma onda.
Ela deve ter ficado solitária, embora seja estranho pensar nela desse jeito. Kaycee sempre parecia ter tudo, mas, pensando bem agora, não tinha grande coisa: a mãe foi embora, não tinha dinheiro, e o pai em sua sex shop e passando o fim de semana inteiro no bar.
Era Kaycee que sonhava em fazer a escola de artes ou qualquer coisa além de se casar e ficar aqui para ter filhos e recomeçar o ciclo todo de novo. Mesmo quando criança, ela falava de todos os lugares a que um dia iria, inventando metade deles. De certo modo, o que surpreende não é ela ter fugido, mas talvez que tenha esperado tanto tempo.
– Eu não acredito. – Uma estranha sai do grupo aos empurrões, oscilando em saltos que já seriam perigosos se ela estivesse sóbria. – Abby. Merda. Williams. Puta merda. É sério, não acreditei quando Misha me contou que você havia voltado.
Ela oscila onde está, balançando a cabeça como se esperasse que isso ajudasse a focalizar. Mas seus olhos ficam escapando dos meus, caindo em algum lugar acima do meu ombro. E não tenho a menor ideia de quem ela seja.
– Você não se lembra de mim. – Suas palavras se arrastam para o riso. Ela oscila para Brent, derrama parte da bebida, e assim ele precisa recuar rapidamente para não se molhar. – Ela não se lembra de mim? É porque eu engordei. – Depois, volta a mim, roendo a borda do copo, de súbito parecendo uma criança. – Não é? É porque estou gorda.
– É claro que me lembro de você – digo rapidamente.
– Então, qual é o meu nome? – Ela cambaleia um pouco, recupera o equilíbrio e sorri vagamente para mim.
Brent se intromete antes que eu precise responder:
– Vamos lá, Annie. Vou pegar uma água para você.
Agora, enfim, reconheço Annie Baum. A antiga líder das animadoras de torcida, antes mignon e musculosa, está mole da bebida e da velhice precoce.
Ela se desvencilha de Brent assim que ele a segura pelo braço.
– Não toque em mim – diz rispidamente. Mas quando Brent levanta as mãos, em um pedido de desculpas mudo, ela volta a ficar animada. – É uma festa, não é? Então, vamos festejar.
Annie desperdiça mais álcool do que coloca no copo. Antes que eu consiga impedi-la, ela meteu uma dose em minha mão. O líquido já está transpirando pelo copo de papel fino, como aqueles que a gente vê em consultórios de dentistas.
– E você, Brent? Uma bebida, pelos velhos tempos? – Annie parece achar esta ideia hilariante e diz: – Velhos amigos, velhas lembranças, velhos. Agora nós somos velhos.
Antes que ela possa beber, Misha se materializa, quase arrancando o copo da mão de Annie.
– Você precisa pegar leve – diz ela suavemente. Por um segundo, Annie dá a impressão de que vai discutir.
Mas, no fim, limita-se a dar de ombros e se vira de novo para mim.
– Ela sempre pôde me dizer o que fazer – diz Annie. – As duas. – Suponho que ela esteja se referindo a Kaycee também. Depois, ela gira abruptamente para o grupo.
– Três vezes em uma semana! Mas não é muita sorte minha? – Misha consegue se equilibrar entre o sincero e o sarcástico. Bate seu copo no meu. – Saúde. Vamos lá. Você merece isso.
Merecer... talvez. Certamente preciso. Quase nunca tomo destilados puros, e fico agradecida, pelo menos, por Annie ter me servido uísque e não rum. Ainda assim, é bebida barata, e desce queimando.
Brent deve notar minha careta, porque ri.
– Vou preparar uma bebida de verdade para você. Não... não me diga. – Ele finge me avaliar. – Vejamos. Vodca com suco? Não. Doce demais. Não pode ser gim. Suburbano demais.
– Acha que pode adivinhar?
– Eu não acho. Sei que posso. – Ele sustenta meu olhar por um segundo a mais do que o necessário antes de se virar para Misha. – Quer alguma coisa? Uma gim-tônica?
O sorriso dela endurece.
– Gim com água com gás – ela o corrige.
– Já está saindo. Não tente competir com essa aqui. – Ele se vira para mim e aponta na direção de Misha com a cabeça. – Ela vai te afogar no copo. Ou na represa, já que estamos aqui.
Ele fala isso com leveza, mas, por algum motivo, Misha se retrai. Uma vez, eu disse à minha mãe que queria ser uma sereia, e ela me falou que as sereias de verdade eram as almas afogadas de mulheres de coração partido; não sei por que me lembro disso agora. Pisco como se isso me ajudasse a me livrar da lembrança.
Brent se vira e abre caminho para o bar improvisado: várias garrafas de bebida e coqueteleiras espalhadas em uma manta. Já posso sentir o uísque fazendo seu trabalho, espalhando o calor no meu peito, suavizando o brilho do fogo. Esta noite, Misha está mais parecida com a Misha de que me lembro, de jeans e uma camiseta dos Barrens Tigers.
– Brent ficou tão preocupado que você não viesse – diz ela animadamente, sem preâmbulos. – Eu disse a ele que você não perderia a oportunidade de reviver os dias de glória. Não é para isso que serve voltar para casa?
Sinto que ela me observa, procurando uma reação – mas que tipo de reação, não sei. Ocorre-me que Misha nunca teve namorado na escola. Tinha muitos casos – mas não um namorado. Pergunto-me se ela invejava o que tinha Kaycee. Outra pergunta que nunca farei a ela.
– Talvez para alguns. Em meus dias de glória, eu nunca teria sido convidada. E eles não foram tão gloriosos. Mas certamente você se lembra.
É um golpe baixo, mas, olha só, pelo menos agora estamos quites.
Mas quando Misha diz “Eu mereço essa” faz com que eu deseje não ter dito nada.
Passo os olhos pelo grupo, e me ocorre que não vejo Cora Allen. Antigamente, ela era grudada em Misha feito uma sombra.
– Você nunca mais viu Cora? – pergunto, em parte para mudar de assunto.
Misha tenta compor uma expressão preocupada. De algum modo, porém, não lhe cai muito bem.
– Ela não vem – diz ela de um jeito conciso. Depois: – Sinceramente, ela está toda ferrada. Drogas.
Antes que eu possa lhe perguntar mais alguma coisa, Brent retorna, equilibrando três copos. Passa um deles a Misha, e me oferece o meu com um floreio.
– Saúde.
Dou uma farejada experimental.
– Vodca com água gasosa?
– Adivinhei certo?
– Pergunta espinhosa. – Não posso deixar de sorrir. Ele parece tão satisfeito consigo mesmo. – Eu bebo de tudo.
– Melhor ainda. Desse jeito, eu sempre vou acertar. – Ele bate o copo no meu e sustenta meu olhar enquanto bebemos. Quando penso em incluir Misha, ela já desapareceu.
As coisas estão se toldando, e meu corpo parece aquecido e solto, como se a mola que o mantém reagindo a meu cérebro aos poucos começasse a se desenrolar.
– Epa, calma aí – diz Brent, e me segura quando tropeço em um tronco meio enterrado na relva.
– Não estou bêbada – digo.
– Não estou julgando – responde ele, e me puxa para mais perto. Percebo seu cinto em minha barriga. Afasto-me porque agora o mundo roda.
– Lembra-se de Dave Condor? – pergunto antes que possa pensar melhor.
– Claro – diz Brent, mas vira a cara. – Ele ainda está por aqui. Trabalha na loja de bebidas. Uma vez um doidão, sempre um doidão. – Ele puxa o colarinho da camisa. – Por quê?
– Só curiosidade – tento minimizar. – Eu me encontrei com ele, é só isso.
– Mantenha distância. – A voz de Brent parece vir de muito longe. – Ele não é um cara em quem você vai querer esbarrar.
– O que aconteceu com ele na escola? Por que você e seus amigos caíram em cima dele?
Os olhos azuis dele se fixam nos meus de novo, é difícil interpretar no escuro.
– Lembra-se de Becky Sarinelli? – pergunta ele. – É por isso.
De todas as coisas que ele podia ter dito, esta talvez seja a menos esperada.
– Foi Condor que distribuiu as fotos dela?
Brent negou com a cabeça.
– Foi ele quem as tirou.
O TEMPO SE RECORTA em farrapos. As horas se fragmentam em imagens de corte rápido:
Estou sentada no chão com os braços de Brent me envolvendo, de frente para o fogo, rindo sem saber por quê.
– Hoje você pegou pesado. – A voz de Brent chega sinuosa por minha névoa. – Gosto disso.
– Gosto disso – repito e rio. Estou ferrada. Fui longe demais para esconder. Encosto-me no peito de Brent, que é tão sólido e quente. E é confortável. Brent vira meu queixo para ele a fim de me perguntar alguma coisa; depois, estamos encostados um no outro. Nos beijando. Mas estou bêbada demais para saber se gosto ou não.
Eu me afasto. Os olhos de Brent têm uma expressão que não consigo entender.
– Não é estranho? – pergunto. – Estamos nos beijando. Pensei que nos beijamos na escola, e esse tempo todo não tive certeza, e estamos nos beijando agora, e nem mesmo sei se eu inventei.
– Eu queria. Queria muito beijar você na escola – sussurra Brent. Isso quer dizer que ele beijou ou não?
Minha mente desliza para Dave Condor, sua boca quente em minha pele...
Escuro. Luz. Escuro. Luz.
As coxas de Becky Sarinelli brilhando no flash.
O riso da multidão na arquibancada. Sua foto esvoaçando para mim.
Depois:
Os rostos em volta do fogo não são mais conhecidos: são enormes, inchados como balões. A voz de Brent, em algum lugar ao fundo, falando incessantemente. Ele não cala a boca.
Estou dormindo. Isto é um sonho. Deito-me, mas o chão não para de se mexer. É como se eu estivesse num barco. Tento abrir os olhos.
– Você está bem – diz a voz de Brent. – Está tudo bem. – Sua voz é uma coisa separada. Ouvi-la me deixa cansada. E sonolenta.
Não. Espere. Tem algo errado.
Tento me sentar. O tempo é espesso e lento, como um gel transparente. Pergunto-me se fui drogada, mas a ideia em si parece irreal, como algo que apenas sonhei. E então, me lembro: o Valium e tanta bebida que perdi a conta. Nem mesmo procurei ver quanto havia em cada comprimido.
A praia está vazia. A fogueira desapareceu. Não se apagou; sumiu. Não há vestígio dela na praia, nenhum monte de toras queimadas, nem fumaça.
E então: um grito. Olho em volta. Tem uma forma escura na água. Um barco a remo. Conheço essa voz.
Kaycee.
Levanto-me, trôpega. Minha cabeça parece uma bola de boliche prestes a rolar do pescoço.
Ela afundou, ela afundou.
Ela não vai ficar no fundo.
Fachos de lanterna entrecruzam a água e vejo Kaycee, seu lindo cabelo aberto em leque sobre a água, a boca distorcida em um grito.
Não. Espere. Kaycee, não. Kaycee fugiu.
Mas alguém está na água. Uma mulher. Não – mais de uma. Uma delas pede socorro aos gritos...
Tento gritar, mas não consigo. Minha visão se divide e se recompõe como um caleidoscópio.
Precisamos ter certeza...
Ela não está respirando...
Precisamos ter certeza de que ela não está respirando...
A confusão e o pavor entram em guerra dentro de mim. Oscilo, de pé. Meus braços e pernas parecem de chumbo. Tento gritar, mas minha voz lasca o crânio. Estou de joelhos de novo.
Os gritos da mulher ecoam pela represa. Ela vai se afogar.
Eles vão afogá-la.
A escuridão borbulha à minha volta, e quando abro a boca para gritar de novo, um terror molhado se precipita para meus pulmões como água e me puxa para baixo.