Na segunda de manhã, Joe e eu montamos uma estratégia. Temos uma só chance em mil de que um tribunal regional aceite como provas nossas suspeitas frouxas, mas só precisamos entrar com o processo – e torcer para que a Optimal seja pressionada pelo susto e nos dê provas de verdade.
Só podemos marcar uma hora no tribunal na quarta-feira à tarde, o que me dá alguns dias para montar um quadro coeso e procurar o gabinete de um promotor disposto a trabalhar com o lado criminal da investigação.
Flora e Portland foram receber os técnicos de laboratório da LTA; eles chegaram a tirar amostras da represa e das instalações de filtragem que a alimentam, e quero ter certeza de que ninguém os incomode enquanto trabalham. Talvez seja paranoia minha, mas, como a Optimal tem tentáculos compridos e estes se agarram a Barrens, já posso ver alguns moradores tentando enxotá-los com forcados – ou, mais provavelmente, uma calibre 22.
Mandei uma mensagem ao gabinete do promotor do condado onde Aaron Pulaski trabalhou até recentemente, e gastei algumas horas pesquisando a bioacumulação de uma variedade de metais pesados, detalhando as evidências encontradas em plantas e mudas – pelo menos sabemos que a folhagem não pode ser paga para guardar silêncio.
Pouco antes do almoço, meu telefone tocou, e uma mulher com uma voz animada, que sugere de imediato que ela veste um terninho, se apresentou como Dani Briggs, assistente do promotor.
– Recebi sua mensagem – diz ela. – Mas infelizmente não podemos ajudar. Houve uma troca de pessoal depois da partida do sr. Pulaski.
Uma habilidade que aprendi como advogada: fazer de um não uma oportunidade.
– Por que tanta rotatividade?
Ela hesita só por uma fração de segundo.
– Quando o sr. Agerwal, novo procurador do condado, e membro do Conselho de Promotores de Indiana, assumiu o cargo, prometeu que eliminaria toda a política do sistema judiciário.
– O quê, por exemplo? Suborno? Corrupção? Isto é política.
Seu riso é surpreendente – grave, encorpado e tragado com a mesma rapidez com que surge.
– Talvez. Mas não o nosso tipo de política.
– Então, ele expurgou a velha guarda.
– Eu não diria que é um expurgo – diz ela. – Em vista de todas as investigações nos departamentos de polícia e escritórios de promotoria por todo o país, ele sentiu que a promotoria do condado precisava de um recomeço.
É assim que os advogados confessam: chegando perto o bastante da questão para que você possa dar sozinho um pulinho para a verdade.
– O caso é o seguinte: estou procurando uma doação para a campanha do legislativo estadual de Pulaski por uma empresa que ele ameaçou perseguir por violações trabalhistas. Isso parece o tipo de política dele?
Outra hesitação momentânea. Agora entendo que o silêncio dela é um código para sim.
– Sinceramente, não posso falar sobre isso – diz ela. – O que nossos antecessores fizeram, infelizmente, é uma espécie de caixa-preta. – Talvez ela sinta minha hesitação ao telefone, porque acrescenta: – Dê suas informações de contato. Vou conversar com o sr. Agerwal quando ele voltar.
Baixo a cabeça na mesa, encostando na madeira fria, controlando a pulsação de tantos tipos de informação até que enfim ela bate num ritmo que posso pegar. Será que algo disto me deixa mais perto de entender o que aconteceu com Kaycee? Será que algo disto me deixa mais perto de responder à pergunta que me levou para longe de Barrens, a Chicago, antes de tudo? Pensei que, se eu pudesse provar que a Optimal estava adoecendo as pessoas, poderia curar Barrens do que a envenenava – e então Barrens finalmente largaria de mim.
Mas agora não tenho tanta certeza.
– Srta. Williams?
Quase fui arrancada de minha pele: Portland voltou, sem fazer ruído nenhum.
– Mas que merda. Precisamos instalar uma campainha em você ou coisa assim. – Depois, noto que ele tem uma expressão muito estranha.
– Você disse que ela estava fingindo – diz ele.
Ele desliza uma foto pela mesa e fico chocada ao reconhecer Kaycee, pintada nas cores da escola. No dia da formatura.
São seus braços que me impressionam primeiro. Eles estão esqueléticos – como os de uma criança. Pode ser um efeito da tinta no corpo dela ou talvez do ângulo, mas as maçãs do rosto são grosseiras, como dois machados que se encontram no meio do rosto. Sua clavícula se destaca do decote. Ela parece... doente. Muito doente.
Pode ser a primeira vez que eu verdadeiramente sinto pena de Kaycee Mitchell. Quase estendo a mão para tocar seu rosto, e depois me lembro de que Portland me observa.
– Onde conseguiu isso? – pergunto-lhe.
– Fui à escola – diz ele, com tanta despreocupação que quase estremeço. Não sei por quê, mas me perturba pensar em Portland andando por aqueles corredores familiares demais, é uma prova a mais de que duas partes de minha vida estão desmoronando. – Imaginei que numa cidade pequena a enfermeira provavelmente seria a mesma de uma década atrás. Eu tinha razão.
Foi uma atitude genial. As enfermeiras das escolas públicas não são obrigadas a obedecer a leis de confidencialidade.
– Bem pensado – digo. – Mas como foi que não pensei nisso?
– Kaycee não estava mentindo – disse ele simplesmente.
– As meninas confessaram – digo, mas até eu ouço isto como uma pergunta.
– As outras meninas confessaram. – Ele fala na mesma cadência tranquila, como se soubesse que está dando uma notícia que não quero ouvir. – Mas ela estava doente. Você pode ver. A enfermeira viu.
Basta ouvir as palavras para ter a impressão do choque forte de uma onda que você esteve observando chegar cada vez mais perto. Tira meu fôlego por um momento. Neste instante eu sei que isto, esta fotografia bem aqui, é todo o motivo para eu ter voltado. Por isso não deixei tudo inteiramente para trás.
Outra Kaycee me vem à mente: a pele cremosa e impecável, a curva de sua boca se rearranjando em um sorriso agressivo – ou de escárnio. Perfeita. De repente, percebo afinal que não quero que isso seja verdade. Se for, significa que Kaycee é só outra pessoa que entendi muito mal. Não uma predadora – uma vítima.
FRANK MITCHELL DESISTIU do trailer em que Kaycee foi criada e agora mora a oitocentos metros de sua loja. Só Deus sabe por que me senti compelida a levar Portland – é muito duvidoso que Mitchell vá achar tranquilizadora a visão de um sujeito que parece vocalista de uma banda de indie rock. Talvez eu é que precise ser acalmada.
A porta da garagem do número 217 está entreaberta. Aposto que Frank é um daqueles caras que bebem das cinco à meia-noite. É apenas meio-dia, o que significa que ele pode estar sóbrio o bastante para ser racional, ou com ressaca suficiente para estar irritadiço.
Nós o encontramos recurvado sobre uma moto, as costas ossudas por baixo de uma camiseta branca manchada.
– Sr. Mitchell? – Quando ele se vira, vejo que envelheceu consideravelmente. Rugas amareladas rodeiam seu bigode grisalho. A camiseta é decorada com um rifle de caça e o slogan Armas não matam pessoas, quem mata sou eu. – Espero não pegarmos o senhor em uma hora ruim. Abby Williams. Nós conversamos brevemente ao telefone...?
– Eu me lembro. Lembro-me de você daquela época também. – Ele me avalia, corre os olhos por Portland e se volta para sua moto. – Pensei ter dito a você que não tenho nada para falar.
Os anos não abrandaram sua personalidade. Mas ele ainda não nos mandou embora daqui. Isso já é um começo.
– Ainda tenho dificuldades para localizar Kaycee – digo. – Sinceramente acho que seria útil conversar com ela. – A internet não está se mostrando de ajuda nenhuma. Até agora, só o que sei é que ela pode ter se instalado em Nova York ou San Francisco, ou qualquer lugar entre os dois.
– Como eu disse ao telefone, você está batendo na porta errada. Não falo com ela desde que ela fugiu... e ainda por cima, com quinhentos dólares do meu dinheiro. – Ele não levanta a cabeça, só continua trabalhando com o trapo.
– É chegado numa Harley, sr. Mitchell? – pergunta Portland, despreocupadamente estendendo a mão para o capacete preto e fosco que está na bancada ao lado de uma pilha de parafusos.
– Sou – Mitchell cospe. – Entende alguma coisa de moto? – Ele pergunta como se duvidasse muito disso.
Até eu fico surpresa quando Portland dá de ombros.
– Um pouco. Meu pai me ensinou a pilotar quando era criança. Eu tive uma Ultra Classic 2009 customizada. Vendi para ajudar a pagar a faculdade de direito.
Frank Mitchell consegue fazer uma imitação decente de um ser humano normal.
– Uma Ultra Classic, hein? – Ele me olha. – Essas são produzidas para viagens longas... nove, dez horas seguidas. Aposto que ele achou que ia atravessar o país.
Para meu completo choque, Portland concorda com a cabeça e baixa os olhos para o chão, tímido. Frank Mitchell ri.
– Estou trabalhando numa Fat Boy lá atrás. Se quiser, posso te mostrar.
Tomo nota mentalmente para dar um beijo em Portland assim que for possível.
– Posso usar seu banheiro? – solto, com um falso desespero. – Desculpe-me. Tomei dois cafés esta manhã...
Os olhos de Mitchell mal se voltam para o meu lado.
– Pela cozinha, nos fundos.
A porta dos fundos está atulhada de antigas peças de motor. O térreo é compacto e funcional, e contém um quarto pungente do cheiro de suor e álcool velhos; a cozinha zumbe de moscas; e há um banheiro sujo onde a tampa da privada veste uma capa felpuda e cor-de-rosa que combina com o tapete abaixo dela. Pergunto-me brevemente quem escolheu e quando. A voz do sr. Mitchell entra por uma janela parcialmente aberta – branda mas nítida, como se eu estivesse ouvindo um radioamador. Portland consegue que ele continue falando.
O último cômodo é uma espécie de escritório, ou talvez uma descrição melhor seja quarto de guardados. Além de uma mesa e um computador desktop relativamente novo, o cômodo está abarrotado de móveis aleatórios, um emaranhado de luzes de festa, aparelhos eletrônicos antigos, uma torradeira ainda na caixa, pilhas de antigas revistas de caça. Mas nenhum vestígio de Kaycee ali.
Vasculho uma pilha enorme de correspondência antiga que Frank Mitchell amarrou com barbante em um imenso cesto de vime, pensando que talvez ela seja do tipo de escrever cartas. Passo os dedos pelo acordeão de envelopes abertos: ofertas promocionais de revistas de pesca, encartes, páginas arrancadas e lisas com fotos acetinadas de iscas e equipamento de pesca, contas, extratos bancários desbotados e o que parece o cartão de visitas de um parente – o sobrenome “Mitchell” está escrito acima do endereço eviscerado do remetente. Dentro dele, uma saudação fria: OS MELHORES VOTOS EM SEU DIA ESPECIAL. Sem assinatura. Por que ele guardaria todas essas coisas? Propagandas de anos, contas pendentes, cupons promocionais que expiraram há muito tempo.
Talvez, depois de perder a filha, ele não suporte largar mais nada.
Talvez por isso ele odeie Kaycee. Ela não permitiu que ele a mantivesse ao seu lado.
Dou com um envelope liso, ainda fechado. O endereço do remetente é de um guarda-móveis local, a U-Pack. Com um dedo, abro o envelope e retiro uma única folha de papel, dobrada em três. Existe conforto em atravessar esta fronteira. Do lado de fora, um metal bate em um concreto – talvez de propósito, penso, um aviso de Portland.
Passos rangem na varanda. A porta de tela se abre. Minha mão começa a transpirar. Rapidamente localizo a data, e meu peito se aperta: a conta está ativa há exatamente dez anos.
O que quer dizer que Frank Mitchell alugou um depósito só por algumas semanas depois que Kaycee desapareceu.
Memorizo o número de associado e coloco a conta dobrada de volta na bagunça pouco antes de o sr. Mitchell abrir a porta com um empurrão.
– Mas que diabos pensa que está fazendo aqui? – Ele parece inchar. Ou talvez eu encolha, voltando à garotinha que era quando a simples visão dele me fazia atravessar a rua.
– Acho que peguei a porta errada. – Meu sorriso parece pegajoso, como se estivesse congelando pelas bordas.
– Fora daqui. – Sua voz é um rosnado. Agora sua camiseta parece uma ameaça direta. Armas não matam pessoas. Quem mata sou eu. – Agora.
Preciso esbarrar nele para passar, e por um segundo fica em meu caminho, e tenho um lampejo rápido do medo físico, o terror de que não me deixaria sair. Mas no último segundo ele se vira, girando o corpo, dando-me espaço para passar.
Praticamente corro até a porta; só depois de estar na varanda, tomando uma golfada de ar, percebo que estive prendendo a respiração. Como se um monstro estivesse a ponto de me pegar. Como se a casa fosse um cemitério.
Como se eu tivesse medo de despertar os mortos.