Barrens, pouco depois das oito horas de sábado, chega o mais perto que pode da agitação. Endireito o corpo quando passamos pelo Donut Hole: alguns manifestantes estão reunidos no estacionamento, segurando placas.
O QUE TEM NA SUA ÁGUA?
VENENOS OPTIMAL, SA.
Passamos pelo protesto quase antes de ter tempo de percebê-lo, mas ele me dá um leve surto de confiança. Pelo menos a Optimal não comprou todo mundo – ainda não.
O Mel’s e o bar VFW têm tantos clientes que eles ocupam o estacionamento e mantêm as portas abertas para que a música saia e a fumaça entre. Uma garota e seu namorado estão se agarrando no capô do carro. O short jeans dela puxado para cima, onde ele a agarra. Ela tem os braços no pescoço dele. Rindo como louca enquanto os amigos os bombardeiam com tampinhas de garrafa.
Se as coisas tivessem sido diferentes, eu podia estar de pé no bar ao lado de Kaycee Mitchell, reclamando do trabalho, dos filhos e dos maridos, metendo para dentro uns drinques de vodca e fumando um cigarro quando já estivéssemos bem bêbadas.
Onde quer que ela esteja agora, eu me pergunto, será que sente falta de Barrens? Será que se arrepende do que deixou para trás? De algum modo, duvido disso. Começo a pensar que Kaycee Mitchell pode, afinal, ter conseguido sua indenização. Talvez tenha adoecido. Talvez tenha sido paga para sumir, assim como a família dela – e até os amigos – foi paga para mentir sobre isso.
Deixando o VFW para trás, o silêncio parece entrar no carro como uma água escura. Sábado, oito da noite, e nenhum lugar aonde ir, nada para fazer, ninguém sente minha falta, nem em Chicago.
O carro de Condor está na entrada da sua casa, e as luzes estão acesas. Por um segundo pondero se devo bater em sua porta para me desculpar – mas pelo quê? E não posso me esquecer de seu rosto rígido de raiva e do salto repentino de terror em meu peito.
Uma corda de pular está enrolada no degrau da frente, e por algum motivo isso me enche de pavor. Como se Hannah tivesse sido abduzida no meio de sua brincadeira.
E então, Condor passa na frente da janela da cozinha e eu me viro rapidamente, percebendo que estive de olhos fixos ali.
Dentro de casa, ligo o ar-condicionado e ouço o aparelho ganhar vida no escuro.
A viagem de ida e volta a Indianápolis levou três horas, sem contar os quase quinze minutos que passei batendo papo com o cara do cavanhaque. A conta da Prestige fica perto de 250 dólares – quase três vezes minha conta de despesas semanal.
E cada dólar valeu.
Pego o cartão do Cavanhaque e faço uma busca por Byron Grafton.
Seu perfil no LinkedIn o relaciona como consultor, e o perfil no Facebook fala em gestão de investimentos e imóveis. Em nenhum lugar é dito que ele tem qualquer associação com a Clean Solutions, a Optimal ou a eliminação de resíduos.
Mas é a foto que quase soca meu coração pelo peito.
Byron Grafton tem o cabelo crespo e, nas poucas fotografias que aparecem no Google, veste o mesmo terno barato e chamativo que atraiu minha atenção para a foto que vi na casa de Brent. E agora eu me lembro – Brent me falou que tinha um primo, Byron, que tinha um amigo na Optimal que o apadrinhou.
Dou com uma imagem de Byron no jornal da Universidade de Indiana. Tendo terminado há muito a faculdade, ele ainda assim está vestido nas cores da universidade e acompanha, na frente de sua alma mater, um bando de outros garotos de fraternidade envelhecidos. De cinco a oito quilos mais gordos, o cabelo rareando, barrigudos de dinheiro, eles todos podiam ser gêmeos idênticos.
Só que um deles eu reconheço.
Digito o número de Joe, esquecendo-me completamente de nossa briga desta manhã, e solto uns palavrões quando cai direto na caixa postal.
– Me liga – digo. – Acho que encontrei alguma coisa.
Meu telefone toca praticamente assim que desligo, e atendo sem verificar o número.
– Espero não estar atrapalhando a noite de encontro – digo.
Há um silêncio.
– É Abby Williams? – Quem ligou tem o tom arrastado e rouco de quem fuma um maço por dia.
Endireito o corpo por instinto e fecho o meu laptop num estalo – como se alguém pudesse me ver pelas janelas.
– É ela mesma. Quem fala?
– Aqui é o xerife Khan. Falei com Joe Pabon esta manhã sobre o incêndio. Ele colocou você como contato. – O xerife Kahn está por aqui desde que eu era garotinha. Bigodão saído direto dos anos 1970, unhas amareladas, dentes de chiclete Adams. Kahn é o tipo de pessoa que você espera ver com botas de caubói e esporas, mas, em vez disso, todo dia de que me lembro, ele usou um par imaculado de tênis Nike de cano longo. – Quero que você saiba que fizemos uma prisão. Um garoto da cidade. Já se meteu em problemas. Fez umas ameaças a Gallagher no Dia das Bruxas passado. Mas duvido que ele pretendesse causar os danos que causou. Você sabe como são as crianças.
– Esse garoto tem nome? – Pego uma caneta e a primeira folha de papel em que consigo pôr as mãos: canhotos de cheque da Optimal, detalhados, cerca de dois mil deles, abertos em leque no chão de minha casa.
– Monty Devue – diz ele, e fico petrificada. Fui babá de Monty quando ele era um bobão magricela, só cotovelos e joelhos, que queria ser um operador de trem de carga ou Bill Gates quando crescesse. Um garoto bom, gentil, de coração manso. Lerdo para aprender, mas obstinado e curioso.
– Deve haver um engano – digo. Monty nunca atearia fogo no meio de uma seca na propriedade de Gallagher, pelo menos por causa dos animais. Monty sempre adorou animais, costumava resgatar lesmas e tartarugas da estrada.
– Não há – afirma Kahn e desliga.
Fico sentada ali por um bom tempo. Monty. O incêndio. Lilian McMann e sua filha naquelas meias com losangos, e Becky Sarinelli com a saia puxada para a cintura.
Abro novamente o computador. A página de resultados surge da tela escurecida.
Wallace Rush, diretor financeiro da Optimal, com Byron Grafton em um evento.
Wallace Rush e Byron Grafton, ainda universitários, sem camisa e pintados com o mesmo símbolo da fraternidade.
Wallace Rush e Byron Grafton, vestidos de terno em um jantar de ex-alunos de sua fraternidade. Com eles está Colin Danner.
E finalmente: uma censura formal a Wallace Rush, Byron Grafton e Colin Danner emitida pela Universidade de Indiana por “abusar da posição de poder que têm como representantes de sua fraternidade”.
Pelo visto, velhos hábitos custam a morrer.
NÃO VOU DORMIR, não sem beber, e, se eu o fizer, sei que ficarei tentada pela proximidade da casa de Condor, por suas janelas iluminadas contra a escuridão como uma espécie de placa.
Antes de me dar conta, estou em meu carro, indo para o guarda-móveis de Frank Mitchell, como que atraída para lá involuntariamente pela gravidade.
A segurança é ainda mais vagabunda do que da última vez: um portão secundário está escancarado, e assim passo de carro por ali até a unidade 34 sem nem mesmo mandar um beijo ao gerente recurvado sobre o telefone no escritório principal. Todo o lugar é um quebra-cabeça de celas trancadas, uma miniatura pós-apocalíptica de uma cidade em que não ficou ninguém.
Desta vez a tranca se abre um pouco mais fácil, e rolo a porta para cima, estremecendo com o barulho de ondas se quebrando no silêncio. Ainda assim, não vem ninguém, e lembro que estou aqui legalmente, mais ou menos, que recebi permissão para entrar legalmente, mesmo que tenha obtido a permissão mentindo. As luzes piscam depois de um curto intervalo, e baixo a porta depois de entrar, mais uma vez desejando que houvesse ventilação. Todo o lugar tem um leve cheiro de química que formiga em minhas narinas e deixa um gosto adocicado no fundo da garganta. Enquanto avanço para as obras de arte de Kaycee, imagino que as próprias pinturas transpiram acrílico, que a aparência molhada e escorregadia da tinta não é um truque da luz, mas porque ela esteve aqui recentemente.
ESTOU A POUCOS quilômetros de casa quando um SUV encosta atrás de mim e quase me deixa cega com os faróis altos. A luz rebate em meu para-brisa e devora a estrada à minha frente. Ponho a mão para fora da janela, sinalizando. Mas o motorista não sai de trás.
Frustrada, entro à direita em uma faixa de concreto que me levará de volta à County Route 12, do outro lado do posto de gasolina.
Um segundo depois, o SUV vira também.
Meu coração dispara. Piso no acelerador, e o SUV arranca para me acompanhar. Não pode ser coincidência.
Não há luzes por aqui, nada além de campos escuros se estendendo dos dois lados. Foi idiotice minha fazer a volta. O SUV chega mais perto. Eu mal consigo enxergar. O para-brisa é todo clarão. Meus pneus batem em um sulco, e o volante escapa de minhas mãos antes de eu perceber que vaguei para fora da estrada, e volto num solavanco.
Viro à direita em uma estrada de terra, e tenho um breve momento de alívio: o SUV perdeu essa entrada. Um segundo depois, porém, ele para cantando pneu, dá a ré e entra na estrada. Agora vem rapidamente.
Dez metros. Cinco. Um grito fecha minha garganta.
Assim que giro o volante, saio da vala e entro dando pancada em pés novos de milho, o SUV dá uma guinada à minha volta. Está fazendo 90, 100 quilômetros por hora, rápido demais para que eu consiga ver quem dirige. Piso fundo no freio. Folhas batem na grade de meu carro, no para-brisa, e eu quico em terreno acidentado.
Enfim, recoloco o carro na estrada. Nesse momento, o SUV não passa de um par de luzes traseiras tragadas pela noite.