Quando Becky Sarinelli morreu, o xerife Khan foi falar com os alunos.
Lembro-me de que estávamos reunidos no ginásio e as janelas tinham gotas da condensação de todos aqueles corpos quentes; do lado de fora, fazia um outubro frio. Não sei por que pediram ao xerife Kahn para dar a notícia – até parece que algum de nós já não sabia.
– Algumas tragédias não podem ser explicadas – disse ele. Lembro-me disso porque era claramente uma mentira. Todos nós sabíamos por que Becky tinha se matado. Não era nada inexplicável. Foi por causa das fotos. – A srta. Sarinelli passou por muito sofrimento. Estou aqui para dizer que vocês têm opções. Se estiverem com problemas, podem conversar com seus pais. Podem conversar com os professores. – Eles o fizeram usar um microfone, e eu me lembro de que aquilo parecia errado. – Vocês podem ir até a Blyck Road e conversar comigo.
Manhã de domingo, era exatamente onde eu me encontrava. Depois, como agora, o xerife Kahn parecia a última pessoa no mundo com quem você iria querer conversar se estivesse com problemas. Toda sua boca caía junto com a linha do bigode, e o franzido brusco de sua testa parecia um cartaz que dizia Cale a boca e aguente. Ele está mais bronzeado do que me lembro, e mais cheio de joias também: além do anel de formatura grande, um colar de ouro está aninhado abaixo do uniforme, e ele olha um grosso relógio de ouro com frequência o suficiente para que eu saiba que ele me acha uma inconveniência.
– Vou te contar. – Ele fala com um forte suspiro, depois de gesticular para uma cadeira de frente para sua mesa. – Voltei para casa faz apenas alguns dias, e queria poder dar meia-volta direto para as férias.
– Onde vocês estavam? – pergunto.
– Sarasota. Dividi uma casa de veraneio lá. Um pântano dos infernos nessa época, mas gosto quando acaba a temporada de turismo. Além disso, só o que faço é ficar sentado na frente de uma piscina. – Seus dentes estão mais brancos do que me lembro também. Posso vê-lo em Sarasota, besuntado de óleo e com cor de mogno, o bronzeador tremendo em seu peito peludo. – E então, o que posso fazer por você?
– Vim falar de Monty Devue. – Pelo menos é uma meia verdade.
– Ah, claro. – A expressão do xerife Kahn fica ainda mais azeda. – Lamento, mas não posso ajudá-la nisso. A coisa toda foi entregue ao promotor do condado.
Penso em Monty quando ele tinha 6 ou 7 anos, recurvado para pegar uma lagarta no asfalto, segurando-a com cuidado na palma da mão.
– Acha que eles pretendem indiciá-lo?
Kahn se recosta na cadeira, cruzando as mãos na barriga, e assim seu relógio reflete a luz.
– Incêndio criminoso é uma coisa séria, em particular em época de seca.
Atrás dele, um quadro de avisos está repleto de recordações, antigas notificações municipais, recortes de jornal de cinco anos atrás sobre os últimos sucessos da polícia e um folheto anunciando a data do piquenique do Departamento de Polícia do Condado de Monroe. Sem surpreender em nada, a Optimal está na lista dos patrocinadores.
O ar no escritório é tão seco que é como tentar respirar serragem.
– Ele disse que não fez isso – observo.
– O que você espera que ele diga?
– Todas as provas são circunstanciais.
– Ele se gabou de que ia se vingar. O garoto também é piromaníaco. Tem todo tipo de problema disciplinar. – Kahn está perdendo a paciência. Ele se curva para frente de novo. – Escute aqui, Abigail...
– Srta. Williams. – Eu o corrijo, e ele sorri como se eu tivesse acabado de lhe dizer o nome de minha boneca em um chá festivo.
– Você conheceu Monty quando era criança. Mas as crianças mudam. E nem os pais sabem a diferença. – Ele se curva para a frente. – Sabia que Monty teve problemas em setembro passado por ameaçar uma colega de turma?
Ele sorri quando reajo.
– Você não sabia? Tatum Klauss. Cheerleader, uma aluna nota 10. Uma boa garota.
– Ele a ameaçou como? – pergunto.
– Ficando perto demais dela. Seguindo-a depois da aula. Aparecendo quando não era convidado. – O xerife Kahn obviamente está se divertindo. – Certa vez, ela chegou de uma festa e o encontrou esperando por ela.
Quero acreditar que não seja verdade. Ao mesmo tempo, conheço Monty e me lembro que ele ficava obcecado por algumas coisas. Certa vez passei 45 minutos tentando retirar uma tartaruga morta de seus braços. Ele simplesmente se agarrou a ela, queria fazer com que ressuscitasse.
– Eu nunca disse que ele não tinha problemas – respondo. – Mas isto não significa que ele começou o incêndio. Escute. Você mesmo disse. Monty esteve ameaçando se vingar de Gallagher desde o outono. Mas só recentemente chegamos para investigar a Optimal. Não acha que é coincidência demais? Talvez tenhamos perdido uma trilha importante de documentos.
Se ele entende o que estou insinuando, não aparenta – o que faz dele um sujeito ou muito burro, ou muito inteligente. Ele nem mesmo pisca.
– Então, justo você devia valorizar a seriedade disto.
Fico tentada a contar ao xerife Kahn sobre o carro que me seguiu ontem à noite, mas tenho certeza de que ele é do tipo que reduz tudo a hormônios femininos.
Mudo de tática.
– Você era xerife quando eu estava no colégio – digo –, na época em que Kaycee Mitchell desapareceu.
Desta vez, ele não é rápido o bastante para reprimir uma leve onda que altera sua expressão para o desprazer.
– Ah, claro. A maior comoção que esta cidade já teve. Histeria. Meninas adolescentes enlouquecendo. – Ele abre um leve sorriso. – Você não foi uma delas, foi? Uma das...? – E estende as mãos e imita um pequeno ataque, as mãos se agitando loucamente.
– Não. Não fui. – Eu vi como era a verdadeira doença. Sabia que adoecer não tornava ninguém especial. Só deixava a pessoa doente. – Só queria saber se algum dia você considerou a possibilidade de que ela não estivesse inventando.
– Não – diz ele rispidamente. – Foi tudo para chamar atenção. Todo mundo sabe disso. As outras meninas imitaram depois.
– Você falou em histeria. Isto se espalha por cópia, por imitação. Não quer dizer que não houvesse alguma verdade nisso.
Ele volta a sorrir.
– É típico de uma advogada. Sempre tentando complicar muito a simples realidade. Kaycee mentiu e ficou constrangida quando foi tudo revelado.
Cada pessoa com quem converso sobre Kaycee fala que ela era uma mentirosa. Mas se realmente adoeceu, foi a única que não mentiu. Pelo menos, não a respeito disso.
– Fugir porque não queria admitir que estava fingindo parece muito radical. Em particular se ela era uma boa mentirosa, como todo mundo diz.
Ele despreza a distinção com um gesto.
– Mas isso é uma história velha. Não entendo por que importa para você.
Uma lembrança me vem à tona: no segundo ano ou no primeiro, eu passava por Misha e Kaycee no corredor quando Misha começou a latir. Essa era sua mais nova crueldade – eu era feia como uma cadela, disse ela, que começara a rosnar sempre que eu passava.
Naquele dia, porém, Kaycee estava com ela. Virou-se para Misha e lhe deu um tapa forte, no rosto, com tal rapidez e tão inesperado que quase me passou despercebido. E, por um momento, ficamos nós três ali, petrificadas e espantadas – Kaycee, iluminada pela fúria e por outra coisa, algo que não consegui situar. Misha, em choque, seu rosto aos poucos se avermelhando.
Eu odeio cães, foi tudo o que disse Kaycee.
– Sabe onde ela está agora? – pergunto a ele.
– Não faço ideia. – Ele me observa atentamente. – Ela me telefonou, acho que algumas semanas depois de ir embora. Disse-me que estava em Chicago na época. Mas isso já faz dez anos.
– Ela ligou para você? Para cá? – Isto me surpreende. – Por quê?
Ele dá de ombros de novo.
– Deve ter ouvido falar que eu procurava por ela. A amiga Misha falou com ela algumas vezes.
Pergunto-me se existe uma possibilidade de que mesmo agora Misha esteja dando cobertura a Kaycee – e saiba exatamente onde ela está.
– O que ela disse?
– Isso já faz dez anos, srta. Williams. – Sua voz fica firme. – O que está morto e enterrado é melhor que fique assim. – Ele recua os lábios sobre os dentes compridos em um sorriso. – Não fica mais bonito quando sai da cova.