Mesmo antes de a Optimal chegar à cidade, havia um lugar em que nós nunca poupávamos: por mais de trinta anos, o Barrens Tigers sempre jogou em um estádio com capacidade para duas mil pessoas, doado pelo trineto do fundador da cidade. Barrens adora seu futebol americano. E o time sempre foi muito bom também, competia com escolas maiores do estado e colocava Barrens no mapa. Ia mais energia para o futebol e o time do que para qualquer outra coisa. De longe, parece uma nave espacial gigantesca pousada no meio de um campo arado. A escola ao lado fica mínima, e, às vezes, quando eu estudava lá, ele servia também de auditório para as assembleias.
Toda Barrens apareceu para o jogo PowerHouse do fim de ano, uma tradição que mistura o time juvenil e o time principal da escola, que competem entre si, e o jogo inclui toda a jactância, os palavrões e as dancinhas dos jogadores que, em geral, são proibidos nos jogos de verdade. Os times pintam a cara e usam fantasias por cima do uniforme. Uma pessoa, em geral o quarterback, usa asas encardidas de fada que são passadas de uma turma a outra.
Quando eu estava no ensino médio, teria matado para entrar no PowerHouse com Brent O’Connell. Agora fico quase sem graça – como se me espremesse em roupas que não cabem mais em mim.
Minhas mãos estão sensíveis por eu tê-las lavado com força demais antes de sair de casa.
Desde que voltei para Barrens, não consigo me livrar da sensação de sujeira incrustada por baixo das unhas. Lidar com os documentos da Optimal só piorou isso. É como se a empresa fosse coberta por um filme químico que me deixa com ardência e coceira.
Quando Brent tenta segurar minha mão, finjo não perceber, e meto os punhos no fundo dos bolsos.
Quinhentas pessoas, todas espremidas nos assentos do estádio, batendo os pés no ritmo da banda marcial – mas a loucura é que eu localizo Misha de imediato, ou ela nos vê primeiro, uma coisa ou outra. No exato segundo em que meus olhos a distinguem na multidão, ela levanta a mão para acenar – um espasmo rápido que pode ser ou um convite, ou um desejo de nos afugentar. Só quando vejo Annie Baum sentada ao lado dela percebo que Misha está exatamente onde sempre se sentou, quatro níveis acima, bem ao lado do corredor. Tem até um pequeno espaço, um intervalo no arranjo das pessoas, ao lado dela – como se uma Kaycee invisível ainda ocupasse seu lugar. Uma estranha assumiu o lugar de Cora Allen.
Por um segundo, olhamo-nos nos olhos. Ela me abre um leve sorriso estranho.
Tenho medo de que Brent vá querer se sentar com elas – Misha transforma seu aceno em um gesto frenético, com as mãos de venham para cá –, mas ele apenas levanta a mão e me conduz, colocando a outra na base de minhas costas, para uma parte inteiramente diferente da arquibancada. Sinto uma onda de alívio.
A partida começa: um borrão de jogadores de verde e branco se choca no campo. Encontro Monty e o perco novamente em um bolo de jogadores. Entendo pouco de futebol americano, exceto o que absorvi nos anos morando em Indiana e por assistir a Friday Night Lights, e ele me parece mais do que um jogador decente, embora depois se atrapalhe com um passe do quarterback e seu treinador o coloque no banco por um tempo. Cheerleaders do ensino médio balançam-se com seus pompons e, sempre que pulam ou dão saltos-mortais para trás, parecem ficar momentaneamente suspensas no ar, penduradas como enfeites de Natal em um céu que serve como pano de fundo escuro. Sempre penso no que pode acontecer se elas girarem alguns centímetros para o lado errado; vejo-as caindo por cima do pescoço, quebrando-se como bonecas de porcelana.
– Não éramos assim tão pequenos quando estávamos no colégio, éramos? – Brent se curva para falar comigo com o rugido da multidão e o bater de pés. – Acha que eles estão encolhendo? Definitivamente, eu acho que estão encolhendo.
Isso me faz rir. Eu nunca soube que Brent era engraçado, mas ele é. Ele me diz que, quando jogava futebol, inventou uma técnica para não ficar nervoso: escolhia um anjo da guarda qualquer na multidão, um desconhecido, e quanto mais esquisito, melhor, e lhe dava um nome. Se ele ficasse nervoso, simplesmente localizava o Anjo dos Chapéus Perdidos dos Anos 1990 ou o Santo Padroeiro dos Bigodes Espaguete e rezava rapidamente.
– Dava certo? – pergunto a ele.
Ele pisca para mim.
– Ficamos invictos no último ano.
Estranhamente, descubro que estou quase me divertindo. Com Brent. Com uma partida de futebol. Em Barrens.
Preciso lembrar a mim mesma sem parar que vim à procura de informações. Entretanto, o primeiro quarto passa, depois o segundo, e o terceiro, e embora a gente fique conversando quase continuamente, o mais perto que chegamos de discutir a investigação é debater o melhor lanche para dar energia a uma longa noite de trabalho. Brent fica com confeitos Skittles. Eu sou uma garota de M&M’s de amendoim. Proteína e cafeína – são invencíveis.
É só no último quarto de jogo, quando a conversa se volta para nossas famílias, que encontro uma abertura. E nesse momento quase lamento aproveitá-la.
– Você me disse que tem um primo na Optimal também, não é? – pergunto com a maior despreocupação que consigo. – Byron Grafton?
– Você é boa mesmo. – Brent me olha ou com admiração, ou exasperado, ou um pouco das duas coisas. – Mas Byron não é da Optimal. É terceirizado. Mas aposto que você sabe disso. Foi Byron que me colocou em contato com o diretor financeiro, Wally Rush. Eles foram colegas de faculdade.
É claro que eu sabia disso também.
– No fundo, Byron é um bom sujeito. Teve alguns problemas. Andou bebendo. Casou-se, se divorciou, casou novamente, tem um filho, tomou algumas decisões ruins nos negócios. É do tipo que dá o passo maior dos que as pernas, tem ambição demais e bom senso de menos. Wally ajudou a colocá-lo em um novo rumo.
E prometeu a ele um contrato gordo por serviços de descarte de resíduos que, até onde sei, jamais aconteceu: um arranjo confortável.
– Então, a Optimal funciona como uma empresa familiar de verdade, né?
Brent não responde de imediato, e sinto as engrenagens de seu cérebro girando. Depois, ele se inclina para mim, a voz aos sussurros:
– Estou começando a pensar que você tem razão sobre a Optimal. Não sobre os dejetos. Mas tem alguma coisa estranha acontecendo na contabilidade. Mas isto precisa ser confidencial...
– É claro – respondo.
– A Optimal anda pensando em abrir o capital. Isso pode ser importante. Estou confiando em você.
– Obrigada – digo, e sou sincera.
Se a Optimal vai abrir o capital, por que se arriscar a violar leis regulatórias, por que se arriscar à investigação e à censura? Deve haver alguma coisa maior em jogo. Cada vez mais, estou convencida de que a Optimal esteve usando seu poder e suas ligações para atormentar, silenciar e influenciar – e para manter todos que podem investigá-la fazendo vista grossa.
O trovão de gritos e bater de pés abala o estádio e manda uma vibração até o meu peito: é o fim de outro ano letivo, o começo de um verão longo e pardacento. Brent vira-se e me beija de repente. Hoje seus lábios estão quentes e o peito também, e ele tem cheiro de sabonete e aparas de grama: um cheiro limpo e esperançoso. Procuro encontrar em mim alguma sensação boa, mas a multidão é barulhenta demais.
DEPOIS DA PARTIDA, perco dez minutos com Brent, dando uma desculpa para não sair para uma bebida. Ele me beija de novo, mas desta vez cai no canto de minha boca, como se quisesse me fazer pensar que pode ter sido um acidente. Nessa hora, os jogadores desapareceram, e há um engarrafamento de carros que saem do estacionamento.
Volto ao ginásio e dirijo-me a uma mesa de piquenique marcada por décadas de pichações entalhadas. A garotada não tem pressa de ir para casa: dúzias circulam aos bandos, como animais selvagens, visíveis apenas pelo clarão e o piscar das telas de seus telefones no escuro. Um grupo de meninas relaxa na grama não muito longe de onde me sento, e um bando de garotos não as deixa sozinhas por muito tempo quando chega para acender um baseado e passar pela roda uma garrafa de água que deve conter outra coisa. Por fim, o trânsito para a County Route 12 diminui a um pinga-pinga, e o estacionamento se esvazia. Mas os garotos continuam ali, perturbando o silêncio com um código Morse de gritos e risos adolescentes.
Os jogadores de futebol, agora de banho tomado, vestidos e carregando bolsas esportivas, saem do vestiário aos pares. Mas Monty sai sozinho. Preciso gritar seu nome três ou quatro vezes antes de ele olhar, já carrancudo, como se ainda estivesse no campo e esperasse um golpe.
Mas então sua expressão se desanuvia e se abre no mesmíssimo sorriso de que me lembro quando ele era criança.
– Oi, Abby – diz ele timidamente, como costumava me cumprimentar quando garoto. Como se em todos aqueles anos só estivesse esperando que eu aparecesse.
Sinto-me sem jeito de lhe dar um abraço, aquele gigante meio crescido, e me lembro de que ele não gostava disso; então, me limito a um cutucão com o cotovelo.
– Você tem crescido mesmo – digo.
Ele dá de ombros, mas parece satisfeito.
– Futebol. O que está fazendo aqui?
– Vim ver você jogar. – Quando um sorriso cobre o seu rosto, desejo sinceramente que fosse verdade. – Boa partida.
– Você devia estar aqui na temporada de verdade – diz ele. Depois, sua expressão escurece. – Não tenho jogado muito. Não desde o... – Ele puxa de volta o que pretendia falar.
– Você se meteu em problemas, não foi? Com Walter Gallagher?
– Ouviu falar disso? – Ele me olha de lado e, depois, vendo minha expressão, diz: – Você falou com a minha mãe?
– É, eu liguei para ela. – Monty arrasta os pés. – O que aconteceu?
Por um longo minuto, ele apenas olha o espaço entre os tênis esfarrapados, de repente se metamorfoseando em uma criança.
– No Dia das Bruxas passado, eu e uns amigos invadimos a fazenda do Gallagher. – Ele me olha através dos cílios – escuros e longos para um garoto. – Meu amigo Hayes queria roubar um dos 4X4 de Gallagher. Não íamos realmente pegar um – Monty se apressa em explicar. – Era só papo. Só fingimos que íamos. Entende o que quero dizer? – Quando faço que sim com a cabeça, ele parece relaxar. – De qualquer modo, era meio uma tradição mexer com Gallagher no Dia das Bruxas, nem fomos os primeiros a fazer isso.
– E você foi apanhado – digo.
Monty assente, infeliz.
– Ele soltou os cachorros em cima da gente. Hayes quase teve a perna arrancada. Mas só estávamos zoando.
– E você ficou irritado. – Ele concorda. – Você disse umas coisas sobre Gallagher, ameaçou se vingar.
Ele assentiu novamente, tão caído, com uma infelicidade de tal maneira evidente que parece um sabujo de desenho animado.
– Mas não falei sério – diz ele.
– Foi você que começou aquele incêndio na fazenda de Gallagher? – pergunto a ele com a máxima gentileza possível.
– Não – responde ele de imediato. – Caramba, não. – E acredito nele. – O xerife Kahn sente rancor por mim – diz Monty, agora furioso, bufando de raiva. – Ele jamais gostou de mim, desde a sexta série, quando me pegou pichando aquele muro velho atrás da fábrica. Ninguém nunca ia lá atrás.
Respiro fundo.
– Olha, Monty, preciso te perguntar uma coisa. Preciso que você seja sincero, está bem? – Ele assente. Apesar de ter no mínimo 1,90m e ser largo como uma trave, seu rosto é doce como de um bebê. – O que aconteceu entre você e Tatum Klauss?
– Não aconteceu nada – diz ele. As palavras mal são pronunciadas. – Como você soube de Tatum?
Não respondo, mas também não deixo o fio se perder. Um de meus professores de direito certa vez me disse que você pode defender qualquer mentiroso do planeta, desde que ele não minta para você.
– Você ameaçou machucá-la?
– Eu nunca machucaria Tatum – diz ele rapidamente e estremece, como se a ideia fosse dolorosa.
– O xerife Kahn disse que Tatum deu queixa contra você – digo. Coitado do Monty. – De acordo com Tatum, você não a deixava em paz.
– É, bem, eu só tentei fazer com que ela me ouvisse. – Um uivo de risos do grupo de estudantes parece assustá-lo.
Conheço esse riso: como o piado de uma coruja vendo um camundongo. Agudo. Predatório.
– Escutasse o quê?
Ele vira a cara. Um músculo se retesa e se solta no maxilar.
– Não era nada. Uma brincadeira idiota com as amigas dela. Mas elas não são amigas de Tatum. Não davam a mínima para ela.
O Jogo. Uma sensação ruim arranha meu pescoço. Deve ser coincidência. Mas ainda...
– Que tipo de brincadeira?
Mas Monty sente a mudança na corrente. Apesar de seu tamanho, apesar da camisa de futebol, em Barrens, Monty não é um falcão, é um camundongo: e como todas as presas de toda parte, sabe quando há perigo no ar. A massa escura de estudantes está inquieta, remexendo-se, inchando com o som repentino.
– Olha – diz ele, e sei que agora está impaciente. – Foi só uma brincadeira imbecil com uns caras mais velhos, zés-ninguém idiotas. Mas o xerife Kahn não perguntou a eles, perguntou? Só porque eles têm carros chamativos e roupas elegantes. – Ele meneia a cabeça. – Eu só queria ajudá-la. Só queria...
Ele se interrompe de súbito, enquanto a massa de garotos lança uma única palavra para o nosso lado, sem parar. Monstro. Monstro. Monstro.
– Os amigos de Tatum – diz ele com a voz estrangulada. E depois: – Preciso ir.
Ele parte do estacionamento numa meia corrida, mantendo-se o mais próximo possível do ginásio, cabisbaixo, como se pudesse deslizar, invisível. Não é assim tão fácil. Nunca foi fácil: uma garrafa de água erra por pouco sua cabeça; depois, uma lata de cerveja vazia, que bate na lateral do ginásio assim que ele desaparece depois de virar uma esquina.