É manhã de segunda-feira, e Flora vem me cumprimentar em nosso escritório novo em folha atrás do Sunny Jay’s, onde trabalha Condor. Agora, Condor não só está perto de mim em casa, como também no trabalho. Flora agita os braços no alto como um sinalizador de aeroporto, tentando me fazer manobrar para o lugar certo.
– O Laboratório de Testes Ambientais mandou os resultados – diz ela, antes mesmo que eu tenha entrado pela porta. – Tentamos ligar para você.
– Já? – pergunto. Normalmente, conseguir resultados do LTA é como esperar que alienígenas venham à Terra trazendo presentes.
– Chumbo – ela solta antes que eu consiga perguntar. – Chumbo, cinco vezes acima do limite permitido por lei.
– É verdade? – Viro-me para Joe.
Ele responde me passando o relatório sem dizer nada: a investigação preliminar da composição química e de metais pesados do abastecimento de água pública de Barrens, Indiana. O documento é breve, e vai direto ao ponto: a represa está poluída, contaminada não só por chumbo, mas por níveis vestigiais de mercúrio e poluentes industriais com nomes impronunciáveis. É claro que o relatório não menciona a fonte da poluição – será nossa tarefa ligá-la à Optimal –, mas isto nos dá mais do que o suficiente para entrar com uma queixa formal com o juiz.
Então, por que não tenho vontade de comemorar?
Esta prova é suficiente para justificar o fechamento do escritório e a volta para Chicago. Podemos muito bem fazer o resto de nosso trabalho lá, de nossas próprias casas e nossas camas. Eu podia dar o fora daqui. Ainda assim...
Só consigo pensar em Kaycee. Tossindo sangue. As fraquezas, o desmaio.
– Que saco você teve de puxar para conseguir o resultado com tanta rapidez? – pergunto. Esta é a verdade abstrata: documentos, números e teorias. E existe também a verdade real: as lavouras arruinadas de Gallagher, a ruína das economias de sua vida; o pequeno Grayson, com crânio mole e o cérebro malformado; Carolina Dawes e as erupções cutâneas que coçam de seu filho.
– Na verdade, não posso levar o crédito por essa – diz Joe. – Seu amigo, o promotor Agerwal, foi quem conseguiu. Ele estava falando sério sobre eliminar a corrupção do condado de Monroe.
– Um político honesto. Quem diria? – Todos me olham, esperando que eu pareça feliz. Continuo folheando a pilha de papéis, virando as palavras e gráficos de um lado para outro. – Quais são os sintomas de envenenamento por chumbo?
– Para começar, irritações cutâneas. Assaduras, como aquelas de que as pessoas reclamaram. – Joe vai marcando os sintomas com os dedos. – A exposição de longo prazo pode provocar anomalias congênitas, distúrbios cognitivos graves.
– E as queixas de Gallagher sobre sua produção correspondem aos efeitos na agricultura – acrescenta Flora. – Tudo se encaixa.
– Se encaixa com o que as pessoas estão relatando agora – Portland fala. Graças a Deus não sou a única que precisa dizer isso. – Mas não se encaixa com o que aconteceu com Kaycee Mitchell.
Joe franze a testa.
– Você também não – diz ele a Portland. E depois: – Gente, isto é moleza. A CTDA vai arrumar mais verba para outra rodada de testes. Nesse meio-tempo, podemos sair daqui. Nunca mais verei um milharal ou uma espingarda na vida.
– Esnobe. – Tento dar o tom de uma piada, mas nem mesmo consigo abrir um sorriso forçado. Minha boca está seca. A língua parece uma meia. Eu devia estar emocionada, mas tem coisas demais me atolando aqui, em Barrens: o estranho incêndio no celeiro e Monty, acredito, acusado injustamente. Meu pai definhando diante de meus olhos. Brent me beijando o tempo todo como se eu fosse sua namorada ou coisa assim. Misha. Condor, a filha e seu bambolê.
Shariah e a cabeça mínima de seu filho. A filha de Lilian McMann, com nada além das meias.
Os subornos.
O Jogo.
– E o caso de corrupção? – solto.
Joe me lança um olhar confuso.
– Por que acha que Agerwal se interessou? Ele já está cuidando disso. Falei com ele hoje de manhã e lhe passei suas anotações... sobre Pulaski e a ligação entre a Optimal e a Clean Solutions. A Clean Solutions parece ser o lugar para onde o dinheiro vai para ser lavado, como você disse. Com sorte, estaremos em Chicago bem a tempo de comer ostras a 1 dólar cada no Smith and Wollensky.
Dá para ouvir o quanto Joe está verdadeiramente animado em voltar para casa – voltar para sua vida em Chicago, onde um gay negro se mistura bem. Onde ele pode facilmente fazer malabarismos com um rodízio de sete namorados, e também ser visto com qualquer um deles em público. De volta à perfeição de seu apartamento, cheio de excentricidades fabulosas, o sistema de som de última geração, taças de vinho do mesmo conjunto e uma estranha “cascata artificial” que essencialmente não passa de uma fonte.
É outro lembrete de como ele e eu somos diferentes. A perspectiva de voltar a meu apartamento – novo, impecavelmente clean, moderno, e praticamente vazio – me enche de pavor.
Agora sei que existe um buraco dentro de mim. Um buraco que não pode ser remendado nem preenchido com processos, papelada ou casos judiciais, nem com roupas novas, milhagem, nem happy hours ou barmen.
Nunca se tratou da água. Nem mesmo de Kaycee, não de verdade.
Trata-se de mim.
– Isto é exatamente o que viemos fazer, Abby – acrescenta Joe, agora mais brando.
Mas é aí que ele se engana.
QUANDO EU ERA criança, a represa era a maior massa de água que eu tinha visto, e era o centro de todo o mundo. O lado sul sempre foi o lado bom, a área com pessoas cujos pais tinham empregos de eletricistas, em telemarketing e, posteriormente, na Optimal. O lado oeste é um ninho bravio de mata. Foi no lado leste que aos poucos se ergueu o esqueleto da Optimal, como um navio naufragado ao contrário.
E, ao norte, existe um antigo cortiço de casas decrépitas, muitas delas desocupadas, as árvores crescendo densas entre elas. Fica só a um quilômetro e meio de caminhada pelas árvores a partir da casa de meu pai. Um quilômetro e meio de mata onde eu brincava quando criança – sentava-me encostada em uma pedra, cercada de árvores, imaginando que podia viver ali para sempre, como uma fada, quando soube que minha mãe estava morrendo. Onde eu brincava de esconde-esconde com Kaycee, e onde enterramos Chestnut.
Pego as estradas de terra em vez da mata, estradas assadas pelo calor. Moscas zumbem sobre alguma coisa morta, e, pelas árvores, a represa cintila.
Quando saio do carro, sinto um pouco que estou do lado errado de um microscópio. Aqui também os moradores despejam seu esgoto diretamente na mata, morro abaixo. Uma conexão nova com a rede de abastecimento de água pode custar 4 mil dólares, e ninguém por aqui tem tanto dinheiro. Devem estar enchendo suas torneiras e chuveiros com a água da represa, como fazem todas as famílias mais pobres. Não admira que o filho de Shariah tenha nascido desfigurado.
Shariah Dobbs mora no número 12 da Tillsdale Road, difícil de encontrar porque essas estradas mais parecem trilhas, e nenhuma delas tem placa. Ela não está em casa; então, escrevo um bilhete em uma folha de papel que desencavo da bolsa e meto em sua caixa de correio junto com meu cartão de visitas.
De volta ao carro, meus olhos caem na casa térrea do outro lado de um quintal tomado de autopeças. Uma caixa de correio inclinada na porta de entrada tem a placa Allen. É um nome bem comum, eu sei, mas hesito, girando a chave na mão.
Cora Allen era uma das melhores amigas de Kaycee e Misha, que me contou que ela não estava indo muito bem, que as duas não tinham mais contato. É incrível como as meninas de ouro da Barrens High se deram mal.
Será coincidência? Ou aconteceu algo que explique a rapidez e a profundidade com que elas caíram?
Preciso saber.
Deixando a chave cair na bolsa, atravesso o gramado tomado de mato.
A casa mostra toda a sua idade e negligência: a pintura descascando, e até uma janela rachada que só não despenca graças a uma escora. Eu poderia pensar que estava abandonada se não fosse pela picape estacionada abaixo de uma cobertura de plástico.
Antes mesmo que eu consiga chegar à porta, ela se abre, e ali está ela. Cora Allen. Ou melhor, uma versão apodrecida dela, cheia de crostas, em tons de cinza. Só os olhos são os mesmos: grandes, castanhos e pensativos.
– Abby Williams – diz ela, antes mesmo que eu levante a mão. – Soube que você tinha voltado. – Ela coça a barriga, por baixo da camiseta. – Estive esperando você me encontrar.
– Oi, Cora.
Ela se vira e desaparece dentro da casa, e por um segundo fico parada ali, confusa, sem saber se quer que eu a acompanhe. Mas depois ela chega à porta e gesticula para mim.
– Bem, entre. Vamos acabar logo com isso.
Eu a acompanho para o interior da casa, que está enevoado de fumaça de cigarro antiga. A bancada da cozinha é abarrotada de garrafas de cerveja vazias, e ela pega uma nova na geladeira antes de se sentar. Não é a bebedeira de um dia de diversão. É algo muito mais sombrio. Dou uma olhada rápida dentro da geladeira: água, cerveja, suco de laranja e um pedaço mirrado de cheddar.
Sentamos na sala, e ela desliga a televisão. Apoia a cerveja na beira da mesa de centro, marcada de centenas de cervejas anteriores. E também não para de se coçar. Misha não estava mentido. Ela é viciada em drogas. É aflitivamente evidente.
– E aí? O que você quer saber?
Fico mais perplexa a cada minuto.
– Parece que é você que tem algo a me dizer, não?
– Você esteve perguntando por aí sobre Kaycee Mitchell, não foi? – Ela toma um gole da cerveja. – O que todos os outros disseram a você?
– Nada. E exatamente a mesma coisa. Que eles não têm notícia dela há anos. Que ela era uma mentirosa. Que eles ficaram felizes ao vê-la partir. – Cora se retrai só por um segundo. – E você?
Por um tempinho, Cora não fala nada. Ficamos nos olhando até que tenho de virar a cara.
– Não. Às vezes ela me assustava. Mas não. – Ela toma um longo gole da cerveja. – Nós a deixamos na mão, todos nós. Ela estava doente, sabia? – continua Cora. Depois, reagindo à minha expressão de surpresa: – Doente da cabeça. O pai gostava dela um pouco demais, se é que você me entende.
De repente, meu estômago desaba. Lembro-me de Kaycee na quarta série, mostrando orgulhosa tubos de maquiagem e batom metidos no fundo da mochila. Papai me deu, ela me disse. Ele falou que agora já sou grandinha, então, por que não?
Penso em Kaycee, acendendo um isqueiro Zippo prateado, chocando minha pele com o calor do aço. Você sabe que é amor porque começa a doer. Eu era nova demais para entender.
O ar é sufocante – o cheiro de cerveja choca recobre tudo. Parece que mal consigo respirar.
– Ela tentou nos contar também. O que você faz com uma coisa dessas? Misha a acusou de querer atenção. Misha acusava todo mundo de querer atenção.
Dou um pigarro.
– Isto se chama projeção – digo, e ela ri, um riso gutural e surpreendentemente encorpado.
– Eu diria que sim. – De súbito, ela se curva para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, os olhos lutando para acertar o foco. – Acho que ela adoeceu por causa disso. Nunca ouviu falar? Que a mente pode fazer você se sentir mal, mesmo quando você não está?
– Claro – digo com cautela. – Mas pensei que ela só estivesse fingindo.
Ela se recosta. De repente, parece completamente exausta.
– Não – diz ela em voz baixa. – Não foi fingimento. Ela estava doente de verdade. Todas nós estávamos. Não foi culpa de ninguém, só nossa. – Ela dirige as palavras para a cerveja, como se a bebida fosse prova disso.
Misha sempre disse que o que aconteceu no último ano foi uma pegadinha que rapidamente saiu de controle: à medida que mais meninas começavam a adoecer, ninguém sabia mais o que era real e o que era fingimento. A ideia de Cora é de que a doença foi uma espécie de castigo.
Mas pelo quê?
Ela evita meus olhos e fita a cerveja se esvair a cada gole, como se tentasse entender o que está acontecendo com a bebida. Não tem sentido eu me conter agora.
– Foi por causa do Jogo?
Na mosca. Ela levanta a cabeça de repente e me encara.
– Isso foi uma merda doentia. Lembro quando encontraram Becky Sarinelli enforcada. Achei que eu ia vomitar.
– Eu também.
– Foi ideia de Kaycee, sabia? – Ela usa o dedo indicador para dissipar um anel de fumaça. – Não o Jogo em si. Os meninos do último ano já competiam por nudes havia anos. Mas à parte do dinheiro.
A fumaça do cigarro me deixa nauseada.
– Isso era típico da Kaycee – diz ela. – Sempre armando algum esquema. – E sei que ela tem razão. Kaycee sempre estava tramando para conseguir dinheiro, mesmo quando éramos pequenas. A família dela vivia pior do que a minha ou até a de Cora. – Ela costumava roubar coisas sempre que podia. Todas nós roubávamos... cerveja, papel de seda para cigarro, chicletes, essas merdas. Mas parecia que ela não conseguia se conter. – Ela meneia a cabeça. – Então, Kaycee teve essa ideia, é, de que a gente podia pedir resgate pelas fotos que eles tiravam. Fazer as garotas pagarem, senão... Eu não quis. Mas você sabe como era a Kaycee... – Ela se interrompe e dá de ombros.
De todo modo, Cora não precisa terminar. Sei o que teria dito: era impossível dizer não a Kaycee. Ela podia convencer você a fazer qualquer coisa.
Cachorros assim deviam ser abatidos.
– O que ela fazia com as fotos depois que as pessoas pagavam? – pergunto. – Ela realmente as devolvia?
Cora franze a testa.
– O que você acha? – Ela se curva para apagar o cigarro. – Kaycee ficava com elas.