A caminho da casa de Monty naquela tarde, recebo dois telefonemas do mesmo código de área de Indiana – Shariah, suponho, encontrou meu bilhete. A cara de Joe aparece como um desenho animado em minha cabeça, dizendo foco, dizendo que isso se trata do que está acontecendo agora, mas, em vez disso, envio as chamadas para a caixa postal.
Os resultados da água nos deram todo o tempo do mundo. Agora não temos nada além de tempo: anos de litígio, de trabalho repetitivo, de correções, culpabilizações e burocracia.
Mas já deixei Kaycee desaparecer antes. Não posso deixar que desapareça de novo – não quando estou mais perto do que nunca de descobrir a verdade.
As palavras de Cora se repetem sem parar em minha cabeça.
O pai gostava dela um pouco demais, se é que você me entende.
Sempre armando um esquema.
Ela tem razão em parte. Mesmo quando criança, Kaycee roubava coisas – coisas pequenas, quinquilharias da casa dos outros, coisas dos escaninhos da escola. Nunca se arrependia disso depois. Lembro-me de quando Morgan Crawley chorou até o nariz fazer bolhas de muco por um par de luvas que a avó havia tricotado para ela – luvas que Kaycee me mostrara, gabando-se, no fundo de sua mochila no dia anterior.
– Então, ela não devia ser tão descuidada com elas – disse ela quando a confrontei. – Se você adora uma coisa, tem de cuidar dela e mantê-la em segurança. – Ela ficou com tanta raiva de mim que pegou as luvas e jogou em um bueiro, e nunca vou me esquecer de como a vi naquele dia, parada na rua enquanto uma rajada de água da chuva levava rugindo as luvas esgoto abaixo. – Olha. Agora elas não são mais roubadas. Agora não são de ninguém. – Como se tivesse sido minha culpa o tempo todo.
Nada nunca era culpa dela. Ela era imune à culpa, e sua memória funcionava como uma daquelas antigas peneiras de garimpo, sacudindo toda a poeira para fora, todas as coisas ruins, deixando intactas apenas as coisas que ela realmente queria recordar, aquilo que a fazia parecer boa.
Foi por isso que a história da coleira de Chestnut sempre me deixou confusa também. O que a fez guardar a coleira e, tantos anos depois, devolvê-la? Por que isso foi tão importante para ela? Era como se a morte de Chestnut não fosse prova de algo horrível feito por ela, mas prova de algo horrível feito a ela.
Mas o quê? Isso não fazia sentido nenhum.
Seu problema, Abby, é que você não sabe desenhar. É que você não consegue ver.
SIGO O ÔNIBUS escolar até a entrada da casa de Monty, na expectativa de vê-lo sair pela porta aberta, todo o 1,80m dele. Mas só desembarca uma garota, recurvada quase totalmente com o peso de uma mochila enorme, e anda com dificuldade por um jardim castanho até uma casa vizinha.
Talvez Monty tenha apanhado uma carona para casa com a mãe: ela trabalha no refeitório da escola e, em meio período, em uma das cabines de pedágio da Interestate 70, que corre entre Columbus e St. Louis. Uma vez ela me disse que gostava de usar sua rede de cabelo lá também, tentava se vestir mal e parecer o mais simples possível, assim os motoristas da noite ficavam menos tentados a acariciar a palma de sua mão quando ela lhes entregava o troco, nem sussurravam obscenidades para ela.
Monty mora em uma estranha colcha de retalhos que dá a impressão de que duas casas de fazenda se chocaram e nunca conseguiram se desgrudar. Há uma bandeira americana pendurada acima da porta.
A casa, por dentro, está às escuras. Mas a mãe dele, May, vem à porta assim que bato, ainda usando sua rede de cabelo.
– Abigail – diz ela, e me dá um abraço enorme. Ela tem cheiro de desodorizador de canela. Eu sempre achei que May era como uma colcha preferida, colorida e reconfortante, macia ao toque. O tipo de mãe que de pronto faz você se sentir em casa. Minha mãe era igualzinha.
“É bom ver seu rosto.” Ela segura minhas faces brevemente entre as mãos. “Outro dia apareci para visitar seu pai, mas ele disse que você está se hospedando em outra casa...?”
Faço que sim com a cabeça.
– Sim, aluguei uma casa atrás do salão de beleza – digo. Sentindo-me subitamente julgada, acrescento: – Eu simplesmente não queria deslocar o meu pai. E agora me acostumei com minha privacidade, morando em Chicago.
– Para mim, parece solitário – responde ela, e não sei se May pretende que seja uma crítica. Um segundo depois, porém, ela sorri.
– Entre, entre. – Ela me conduz para uma área de estar apertada e instável com troféus esportivos balançando e as fotos de família em porta-retratos: ela deve ter triplicado sua coleção desde que estive aqui, anos e anos atrás. – Sente-se. Fique à vontade. Quer beber alguma coisa? Uma água? Refrigerante? Tem um pouco do meu chá especial!
– Claro, chá está ótimo – digo, enquanto ela caminha até a cozinha esbarrando nas coisas. Sento-me ao lado de um santuário ao crescimento progressivo de Monty, da criança sorridente e banguela ao homem musculoso e enorme.
Ela volta um instante depois com um copo alto de chá tilintando com gelo.
– Monty me contou que viu você ontem à noite, no jogo. – Ela coloca um descanso na mesa e se senta de frente para mim, suspirando enquanto relaxa os pés. – Sabia que metade das crianças apareceram na escola hoje ainda cheirando a cerveja? Zona sem álcool, uma ova. Na última semana de aulas também. Alguns nem se dão mais o trabalho de levar livros para a sala.
– Você não foi?
Ela nega com a cabeça.
– Futebol e mais futebol. Parece que é a única coisa com que todos conseguem concordar.
– Ele está em casa? – pergunto. Mas antes que ela possa responder tenho minha resposta: do fundo da casa, o barulho de algo pesado batendo no chão.
– Só um minutinho – diz ela, rigidamente, e se impele do sofá. Desaparece, e ouço um diálogo abafado, o bate e rebate rápido da teimosia adolescente. Ela volta parecendo não zangada, só cansada.
– Querida, ele não quer conversar – diz ela num tom baixo. – Tive de buscá-lo na escola hoje. Ele virou sua carteira, entrou em uma competição de gritos com o diretor. – Por um segundo, ela parece que vai desmoronar. – Estou nos meus limites com ele. Mas o que eles esperam, dando uma notícia daquelas na assembleia?
– Que notícia? – pergunto, e ela me encara.
– Meu Deus, pensei que você tivesse vindo por isso. – Ela chega para a frente do sofá e baixa a voz, lançando um olhar nervoso ao quarto de Monty, como se ele pudesse entreouvir. – Uma coisa horrível, horrível. Mas ela vai sair bem dessa. Ainda assim, uma menina tão nova... boa aluna também...
– Que menina? O que houve?
– Tatum Klauss – diz ela, e meu coração para. A menina que acusou Monty de assédio, de acordo com o xerife Kahn. – Monty tem uma queda por ela há séculos... desde que eles eram calouros e costumavam pegar o mesmo ônibus, antes dos pais dela se divorciarem. Um doce de menina, e sempre muito educada quando me vê na fila. Não é como a maioria das crianças. Olham para você como se fosse lixo. Uma aluna brilhante também.
Falar com May sempre foi como tentar separar fios de espaguete que esfriaram em um escorredor. Cada ideia leva a outras dez.
– O que aconteceu com Tatum?
– Pegou um monte de remédios para transtorno de atenção do irmão e tomou todos de uma vez... ontem à noite, quando todos estavam na partida de futebol. – May faz o sinal da cruz. – Graças a Deus a mãe dela não estava se sentindo bem e chegou em casa cedo. Encontrou a filha botando as tripas para fora, quase inconsciente. Levou-a correndo à emergência em Dougsville. – A mesma clínica para a qual levei meu pai às pressas, depois de sua queda. – Dizem que ela vai ficar bem. Dá para imaginar? E ela também é uma aluna nota 10. Conseguiu uma das bolsas da Optimal. Achamos que ia para a faculdade no outono... – May diz “faculdade” como alguém pode dizer “paraíso”. De certo modo, isso não surpreende. Por essas bandas, é igualmente difícil entrar nas duas coisas.
Tomo um longo gole de chá, na esperança de que lave o gosto amargo e repentino que sinto.
– Eles sabem por quê?
May balança a cabeça.
– O xerife Kahn estava na assembleia, e foi tudo o que ele disse.
Uma imagem pisca em minha mente, centenas de mãos passando fotografias pelos assentos. E Becky Sarinelli descendo apressada da arquibancada, tentando fugir – mas não com rapidez o suficiente.
Nem perto disso.
Algumas coisas são inexplicáveis, disse o xerife Kahn naquele dia. Parece que há muitas coisas que ele não vem conseguindo explicar.
May acrescenta com uma ferocidade súbita:
– Bem, ele não vai atribuir os comprimidos a Monty, vai? Não quer dizer que ele não vá tentar. Eu juro que se o sol ficasse verde amanhã, ele diria que foi por culpa de Monty.
– O xerife Kahn disse a você se Gallagher vai dar queixa?
– Não é Gallagher – diz ela. – Até aquele velho maluco tem mais bom senso do que isso. O xerife Kahn insiste em dizer que eles precisam fazer dele um exemplo!
– Vou conversar com o xerife Kahn de novo. – Digo isso automaticamente, embora saiba que a promessa é vã. Se Gallagher não deu queixa, não há motivos para perseguir Monty. A não ser que Kahn esteja tentando acobertar alguém.
– Ele se recusa a comer – diz May. – A escola está dizendo que pode impedir que ele participe da formatura. Se ele se formar. – Os olhos de May lacrimejam, e ela os enxuga com as costas da mão. – Olhe só para mim, chorando sobre o leite derramado. Só fico pensando na mãe de Tatum...
– Pode avisar ao Monty que vim aqui? – De repente só preciso sair desta casa. Cem Montys sorriem para mim de cem passados diferentes: cem sorrisos idiotas, alegremente inconscientes do que vem pela frente. – Diga a ele para me telefonar, se ele quiser. Tome.
Ela segura meu cartão pela ponta, como se tivesse medo de sujar. Quando ergue os olhos, vejo a incerteza viajar da testa ao queixo.
– Por que você veio aqui, então, se não foi pelo que aconteceu com Tatum?
– Por motivo nenhum. – Levanto-me, alarmada por uma nuvem negra que temporariamente obscurece minha visão. Eu me firmo, encostada na parede. – Para dar um alô, é só isso.
Ela assente. Mas sei que não está convencida.
Já estou no carro quando ela põe a cabeça para fora de novo e grita:
– Dê lembranças a seu pai por mim, está bem?
Parece que diz mais alguma coisa, porém o motor engole o que quer que seja.
Meninas, jogos, venenos – o passado se repete, jogando marolas como a superfície da represa.
OUTRA CHAMADA PERDIDA para mim – desta vez não é um número local. Encosto em uma das estradas de terra sem nome, tão estreita que os campos batem nos retrovisores laterais. Desligo o motor e ouço um vento fraco levantar as folhas. Daqui, a estrada não faz nada além de sumir em pés de milho, e imagino que, se eu continuar dirigindo, vou sumir também, simplesmente me apagar do mundo. Como fez Kaycee.
A primeira mensagem de voz é de Shariah, que parece hesitante. Ao fundo, um bebê chora.
Olá, srta. Williams. Recebi seu bilhete. Eu... bem, estou ligando, como você me disse para fazer. Ligue para mim a qualquer hora neste número. Se eu não atender, provavelmente estou colocando Grayson para dormir. Tudo bem. Tchau.
A mensagem seguinte é de um homem que não reconheço: ele explica que está telefonando para Abby Williams numa voz com uma calma de arrepiar.
Aqui é o dr. Chun, ligando do Lincoln Memorial, em Indianápolis.
Inconscientemente, endireito um pouco o corpo, olho pelo retrovisor, como se algo pudesse vir de trás.
O dr. Aster me mandou os resultados de uma ressonância magnética recente de seu pai e indicou você como contato. Por favor, me ligue assim que for conveniente.
Engraçada a rapidez com que o mundo todo se encolhe e se resume ao interior de um carro, ao espaço entre toques de telefone. Vejo passarinhos riscarem um céu azul-claro. Seis deles. Depois um sétimo, atrasado.
Aperto o telefone até que ele fica quente embaixo dos meus dedos.
Um para a tristeza, dois para a alegria, três para uma menina, quatro para um menino, cinco para o prateado, seis para o dourado, sete para um segredo, jamais a ser revelado.
Procuro uma recepcionista. Possivelmente, é a mesma recepcionista do consultório de cada médico, locadora de automóveis e escritório de seguradora a quem já telefonei. Possivelmente, só existe uma em todo o mundo, e ela passa a sua entonação entediada de uma mesa a outra, como um Papai Noel que não traz nada, mas que não está nem aí. Ela me informa que o dr. Chun me telefonará quando puder, de um jeito que sugere que terei muita sorte se isso acontecer antes do Natal.
Mas ele me liga de volta quase imediatamente.
– Abby? É o dr. Chun, da neurologia do Lincoln Memorial. Obrigado por retornar meu telefonema. O dr. Aster mandou alguns exames para que eu visse – diz ele.
Enfim encontro minha voz.
– Desculpe-me. Qual é a sua especialidade?
– Neurologia – diz ele, e eu quase, quase relaxo. Os neurologistas olham exames do cérebro. Normal. Mas, então, ele continua: – Na verdade, minha especialidade é patologias neurológicas. E oncologia – acrescenta, quase como quem se desculpa.
Fecho os olhos e me lembro de todas as vezes que desejei que meu pai morresse. Abro os olhos. O mundo ainda está ali. Uma picape passa, a caçamba cheia de adolescentes queimados de sol.
Isso me traz uma lembrança que devo ter enterrado há muito tempo: eu e Kaycee, talvez na terceira série, quando minha mãe ainda estava viva, a primeira e única vez que tive permissão para ir à Festa do Terror no Dias das Bruxas.
Fiquei morta de medo na casa mal-assombrada. Não por causa de todos os monstros que apareciam com máscaras e motosserras, mas porque Kaycee tinha corrido na frente, pensando que seria divertido fingir desaparecer. Corri de um cômodo a outro, apavorada, procurando por ela. Havia caixões em toda parte, e sangue falso, até um manequim de cabelo loiro e de pescoço frouxo em um nó de forca. Nem mesmo tinha o rosto, só olhos desenhados e uma boca de batom – mas, em meu pânico, no escuro, pensei que fosse ela.
Depois, pegamos carona na caçamba de uma picape. Estávamos na traseira, só nós duas, pois o pai de Kaycee tinha pegado o carro para tomar outra cerveja. Kaycee estava amuada porque eu não havia entendido a brincadeira.
Eu te deixei assustada, não foi?, ela dizia sem parar. É uma casa mal-assombrada. Entendeu? Eu assustei você.
E então, de repente, estávamos na mata. No gotejamento tranquilo dos galhos pendentes, com fantasmas de papel pregados nas árvores, ela se virou para mim.
– Não tenho medo de morrer – disse ela. – Nem um pouco. E você?
Para falar a verdade, eu nunca havia pensado nisso. Minha mãe estava morrendo, e era o bastante para pensar.
– Não – menti.
Ela segurou minhas mãos.
– Quando eu morrer, vou virar um anjo, assim posso cuidar de você o tempo todo. – Depois, ela apertou com tanta força que chegou a doer. – Mas primeiro vou me vingar de todo mundo que merece. Vou matar todo mundo de susto, um por um.
UM SEGUNDO, DOIS segundos, três: abro os olhos e o mundo ainda está ali. Ainda estou segurando o telefone em minha face suada. Kaycee ainda está desaparecida.
– Acha que pode trazer seu pai aqui para me ver? – diz o dr. Chun.
– Quando? – pergunto em voz rouca. Rezo para ele dizer: quando você puder. Rezo para ele dizer que não há pressa. Rezo para ele dizer: daqui a algumas semanas.
– Ficarei aqui até as sete da noite.