Voltamos para casa de carro, em silêncio na maior parte do tempo. Estou cheia de um ardor terrível, um impulso frenético de explodir alguma coisa.
Um mês. Seis meses. É difícil saber. Mas, a partir daqui, será rápido.
Meu pai não pode estar morrendo. Meu pai é indestrutível. Ele é a regra. Ele é lei.
Ele é tudo o que tenho.
Ele cochila com a cabeça encostada na janela. Seu hálito cheira a velho. Tem algo branco incrustado no canto da boca.
O clima está mudando. Uma melancólica cobertura de nuvens rola pelo céu, mas o calor ainda crepita, é elétrico, e o ar que se agita pela ventilação do carro tem cheiro de borracha queimada.
Quando meu telefone toca – Joe de novo –, meu pai acorda sobressaltado. Coloco o aparelho no silencioso. Depois de uma pausa, desligo completamente.
– Quem era? – interroga papai. Tendo visto o nome na tela, ele pergunta: – Joe? É seu namorado?
– Não tenho namorado, pai – digo a ele pela nonagésima vez. Desde que voltei para cá, meu pai tem encontrado formas criativas de falar da minha vida amorosa em quase todas as conversas. Seu namorado não se importa de você trabalhar tanto? Por que você não pede a seu namorado para ajudar com esse problema na direção? Não sei dizer se ele faz isso de propósito, se está jogando verde, ou se realmente se esquece, repetidas vezes, de que não tenho namorado nenhum. Joe é o mais próximo que tenho de um relacionamento funcional – e ele é gay, e quase sempre fica irritado comigo.
– Uma garota precisa de um namorado – resmunga ele, virando-se para a janela.
Penso no que disse o dr. Chun, e imagino o tumor de meu pai como um naco de metal duro, um resíduo de dejetos químicos.
– Já te contei como conheci sua mãe? – Meu pai declara para a janela.
– Contou, pai. Pelo menos umas cem vezes.
– ... Em 1980. Os anos Reagan.
– Eu sei – digo. Pergunta e resposta. – E ela trabalhava na fila dos bêbados no sopão, e você a viu do outro lado da rua. – Amém.
– Não. Isso foi no meio do inverno. Ela estava na cozinha, mexendo a sopa. O cabelo dela estava solto, e perguntei se tinha caído algum fio na minha comida; ela riu e disse: nós temos problemas maiores, você e eu.
Nunca ouvi nada disso antes. Espero que ele se corrija. Segundo reza a lenda, meu pai viu algum alcoólatra destruído, cujas mãos tremiam tanto que mal conseguiam segurar a caneca, dando em cima da minha mãe no abrigo, elogiando o cabelo dela. Meu pai viu a santa que ela era e partiu em seu resgate.
Mas ele continua com esta nova versão:
– Ela deve ter visto alguma coisa em mim, porque pôs a mão na minha e me disse que ia ficar tudo bem comigo.
É o contrário. Foi meu pai, movido por uma mensagem divina mandada diretamente para seu coração, que atravessou a rua até ela.
Só que de repente entendo que esta história é a verdadeira. Aquela que ouvi a vida toda era uma inversão. Ele era o alcoólatra. Era ele que precisava ser salvo.
– Sabia que nunca mais toquei numa bebida depois que ela pôs a mão em mim daquele jeito? Foi Deus tocando em mim também. Eu senti. Parecia que a mão dela pesava cinquenta toneladas, mas não pesou nem uma pluma.
Giro por cem perguntas diferentes, tentando encontrar alguma que faça sentido. Estou transpirando e morta de frio ao mesmo tempo, como se até meu corpo não soubesse o que é real.
Meu pai é o bêbado sem nome e abatido de suas próprias histórias.
Não sei o que isto muda exatamente, e ao mesmo tempo tudo parece diferente. Sinto-me como quando descobri que sempre que brincávamos cantando Ring Around the Rosie invocávamos uma peste de cólera e imitávamos as pessoas se afogando no próprio sangue, cantando pelo cheiro de suas cinzas. Tive medo de meu pai e o odiei e, só recentemente, passei a ter pena dele.
Mas nunca, antes disso, tive solidariedade por ele.
Penso que talvez esteja dormindo de novo. Tem os olhos fechados, e sua cabeça oscila no ritmo do carro. Mas, então, ele fala:
– Não tenho medo de morrer, sabia?
Isso me lembra de Kaycee.
– E não diga que não estou morrendo – acrescenta ele, antes que eu possa falar. – Ouvi o que o médico disse.
– Não existe morte – digo. – Só Deus. – É uma frase que ele costumava me dizer.
Ele fica sentado ali, balançando-se, de olhos fechados. Como se ouvisse uma música que não consigo escutar.
– Dois setembros atrás, encontrei uma gata no antigo galpão. Prenhe a ponto de explodir. Ela estava péssima. Pus um cobertor nela, dei água e um pouco de leite. Os gatinhos nasceram... seis deles, as menores coisinhas que já vi. Alguns podiam passar por insetos, se não fosse o pelo. – Ele balança a cabeça. Ainda de olhos bem fechados. – Preparei um ninho para eles, somente um pouco de papelão e cobertores velhos.
Espero que ele termine, mas ele fica em silêncio. Agora estamos entrando em Barrens. E, mesmo daqui, do outro lado da cidade, a fumaça das chaminés da Optimal é visível, como dedos abertos em um gesto, mas não sei o que significa.
– O que aconteceu com eles? – pergunto por fim.
Ele abre os olhos.
– Teve uma tempestade feia. Durante a noite, a temperatura caiu a 5 graus. Foi de repente, não deu nada no noticiário. Só uma mudança no vento, e um ar gelado derrubou todas as folhas das árvores, e da noite para o dia era inverno. – Ele leva a mão à janela e a pressiona no vidro; depois, afasta para ver as digitais desaparecerem. – Estavam todos mortos pela manhã, cada um deles, seis gatinhos mínimos, e a mãe também.
– Eu sinto muito – digo, e sinto de verdade, mas também fico confusa: por aqui, você se acostuma com coisas morrendo. Existem fazendas zumbindo de moscas; vacas, porcos e galinhas abatidos para encher freezers. Cervos caçados no inverno, gatos mortos na estrada e aves caídas do céu.
– Não sei se existe um Deus – diz ele. Ainda estamos em movimento, perfurando um quadro grandioso e pendurado na direção do nada. – Antigamente eu achava que havia um plano. E até o que acontecia de ruim, sua mãe adoecendo, uma criança triturada pelo aparador de grama, tudo fazia parte do plano. Mas que plano existe para filhotes de gato congelarem daquele jeito? Eles não significavam nada para ninguém. Que Deus faria isso? Por que não os deixou sem nascer, então? – Por um segundo, a raiva endurece seu rosto, e ele parece o homem de que me lembro. – Existe maldade neste mundo, Abby. Lembre-se disso. Procure por ela. Procure tanto que ela não consiga procurar por você.
O mundo expira. Este parece o pai que eu conheço. Fumaça se desenrosca nas nuvens.
– Vou me lembrar.
Ele se recosta no banco, satisfeito. Ao passarmos pelo grupo de borracharias, lanchonetes e novos restaurantes, a Optimal aparece de longe novamente, alastrada e feia entre as árvores.
– Olhe só isso – diz ele. – Toda essa fumaça. Vômito químico. É nojento. – Ele balança a cabeça. – Eles a mataram, sabia? – continua ele. – Ah, eu sei que todo mundo diz que não foi. Mas eles mataram. Eles a mataram com toda a sujeira deles. Veneno e ganância, e nada mais.
Minha mãe morreu pouco antes de a Optimal terminar a construção. No dia em que a enterramos, o primeiro filete de fumaça saiu das chaminés, e me lembro de pensar no início que era uma espécie de celebração.
– Eles não a mataram, pai – digo, embora não saiba por que isto importa. – Mamãe teve câncer antes.
– Não estou falando de sua mãe. – Ele se recosta no banco e volta a fechar os olhos. – Estou falando daquela garota, aquela de que todo mundo sempre fez estardalhaço. Kaycee Mitchell.