Condor aparece na porta antes mesmo de eu ter batido.
– Meu Deus do céu! Entre, antes que você derrube minha porta.
Talvez eu tenha batido. Os nós de meus dedos estão vermelhos e sensíveis. Minha garganta está inchada, como se eu estivesse gritando. Sinto gosto de remédios. Vodca. Ou uísque.
Lembro-me de um bar, vagamente, mas não consigo colocar a imagem em foco.
As horas passam rapidamente, levadas pela escuridão.
Lembro-me de ver duas ligações de TJ, o amigo de meu pai. Lembro-me de deixar meu telefone tocando sem parar, de deixar o som ser tragado pelo barulho do bar.
– O que houve com você? – pergunta Condor.
O que está havendo comigo?
– Você mentiu para mim – digo a ele. Uso minha fala arrastada para contar os drinques que devo ter bebido. Quatro, talvez cinco, talvez seis.
– Sente-se. Você precisa de uma água. Sente-se. – Ele me conduz até uma poltrona, e a sala roda mais devagar, como um carrossel chegando no fim de seu ciclo. A sala de estar, aquecida e confortável, seu visual barato polido e retocado por detalhes por toda parte – fotos de Hannah, fotografias emolduradas tomando as paredes, livros antigos empilhados no alto das prateleiras –, me enche de uma súbita timidez. A sala de Condor parece um porto desgastado pelas intempéries, e eu sou um navio naufragado que encalhou ali.
Uma vitrine cheia de penas decoradas atrai minha atenção e a fixa ali; prata, dourado, roxo, azul. Enquanto volta com um copo de água e se certifica de que eu beba tudo, ele me pega olhando.
– Iscas para peixe. Sempre dá mais sorte se você faz as suas próprias.
A água clareou só um pouco minha cabeça.
– Obrigada. Onde está Hannah?
– Passando a semana com os avós. – Ele gesticula para o copo. – Vou pegar mais para você.
Agora consigo me lembrar de sair de Dougsville e encontrar um bar a caminho de casa. Lembro-me do primeiro drinque, mas não dos outros. Meu estômago desaba. Penso nos calçados cor-de-rosa de Misha e como acabaram no chão ao lado de minha cama depois da festa na mata. Uma náusea percorre meu corpo, como se o mundo estivesse inclinando.
– Algo mais forte – digo. – O que você tiver.
– Não acho que você precise disso.
– Estou dizendo que preciso. – Faço um esforço para afiar minhas palavras. – Vamos lá, Condor. Eu estou bem. Consigo dar uma cusparada daqui e acertar a minha varanda.
Ele primeiro me faz beber outra água e, depois, abre uma garrafa de vinho e me serve um pouco em um antigo copo de geleia. Senta-se de frente para mim. Ele se mexe como se sentisse dor no corpo.
– Bem, a que estamos brindando?
Não consigo pensar em absolutamente nada.
– À Optimal – digo, tentando fazer uma piada. Mas minha voz falha. – Àqueles filhos da puta.
– Àqueles filhos da puta – repete Condor solenemente, e bate seu copo no meu antes de beber.
Por um tempo, ficamos sentados em silêncio, enquanto a noite passa pela sala e faróis ocasionais da rua principal atravessam suas janelas.
– Meu pai está morrendo – solto depois de um tempo. Eu nem pretendia dizer isso. Não vim aqui para me confessar. Mas também não sei por que vim aqui.
A mão de Condor enrijece momentaneamente no copo.
– Que merda, Abby. Eu... – Ele se interrompe, e quando vira a cara, vejo um músculo se contraindo em seu maxilar. – Você teve uns dias bem ruins.
Baixo os olhos porque olhar para ele só me dá vontade de chorar, e a vontade de chorar me dá vontade de desaparecer.
– Eu devia ficar com meu pai – digo. – Mas não consigo. Não consegui.
Talvez eu tenha vindo aqui para me confessar, porque, de súbito, o impulso de ser compreendida é dominador.
– Eu odiava meu pai. Queria o tempo todo que ele morresse. Antigamente, eu rezava por isso. Ele me mandava para meu quarto durante horas para rezar. Às vezes me trancava em um armário, porque sabia que eu detestava o escuro, e me dizia que os pecadores viviam na escuridão para sempre. Em vez disso, eu rezava para que ele caísse morto de um ataque cardíaco ou de um telhado.
– Não é sua culpa, Abby – diz Condor.
– E como sabe disso? – Bebo um gole para não sufocar. – Talvez exista um deus. Talvez minhas orações tenham funcionado.
– Deus não responde a orações assim. Não é isso que ele ouve – diz Condor em voz baixa.
– Então, o que ele ouve?
Ele hesita com o copo nos lábios, observando-me por cima da borda.
– A garotinha, sozinha e assustada no escuro.
Ele faz a gentileza de virar a cara, fingindo não notar que estou à beira das lágrimas. Só fica sentado ali examinando o copo, as paredes e o teto, enquanto eu controlo, respirando, o impulso de chorar, como a garotinha que fui na época.
Quando me recomponho, não me arrisco a olhar para ele. Em vez disso, concentro-me no quadrado de tapete entre meus pés.
– A Optimal vem engordando o resultado financeiro despejando resíduos no abastecimento de água – digo. – Provavelmente faz isto há anos. Os testes chegaram e provaram.
Condor me olha fixamente.
– Todos eles disseram que a água era segura.
– Todos mentiram. – Lembro-me de que Kaycee e eu uma vez encontramos uma colmeia abandonada, jogada na mata. Ela a cutucou com uma vareta até que a colmeia cedeu. Kaycee disse que a rainha deixa a colmeia depois de botar os ovos, e os filhos se matam. Desta vez, ninguém venceu. – É um ninho. É tudo corrupto. A Optimal, as agências locais, e parte dos agentes federais também. Estão todos envolvidos nisso.
– Dinheiro? – pergunta Condor.
– E o que mais seria? – Mas não consigo me livrar da imagem mental de Lilian McMann e sua filha posando nua com aquelas meias feias.
Aquelas meninas gritando em uníssono, socorro, socorro, socorro. A palavra vazando dos cantos de suas bocas bonitas.
– Vamos voltar para Chicago – digo. – Faremos o resto do trabalho de lá. Agora que temos provas, teremos ajuda de outras firmas, outras agências, verbas mais gordas.
– Me parece uma boa notícia – diz Condor.
– É má notícia. – Eu praticamente grito. Condor se recosta na cadeira, olhando-me inexpressivamente. Outra lembrança vem à tona, de passar pela sala do diretor e ouvir a voz de Kaycee flutuando pela porta aberta. Não estou mentindo. Não estou inventando. Por que vocês não acreditam em mim? – Tem mais. Eu sei que tem mais. Se pelo menos pudéssemos continuar cavando informações.
– E depois? – Condor meneia a cabeça. – Não é tarefa sua consertar todos os males. Você fez seu trabalho.
– O mundo está cheio de gente que só faz o seu trabalho – disparo de volta –, e olha o que nos restou.
– Claro – diz Condor tranquilamente. – E se todos nós cavarmos, adivinha o que vai acontecer? Seremos todos enterrados.
Ele tem razão. Mas o que ele não sabe é que já estou enterrada. Não estou tentando cavar para baixo. Eu tento cavar para fora.
– Por que você mentiu? – pergunto, e ele me olha, surpreso enquanto enche o meu copo. – Por que você me disse que foi um dos que tiraram as fotos de Becky?
Ele termina de servir, cuidadosamente, passando o polegar na tampa da garrafa.
– Não fui eu que disse a você – ele fala. – Você é que disse isso.
– Você me deixou acreditar. Deixou que todos acreditassem nisso.
Por um bom tempo, ficamos sentados em silêncio, e a casa respira como todas as casas, em estalos, tinidos e rangidos.
– Ela me pediu para mentir – diz ele por fim. Não sei o que eu esperava, mas isto, com essa simplicidade, arranca o ar de meu peito. – Éramos amigos. Minha mãe trabalhou com a mãe dela na prisão antes de ela ser fechada. Elas continuaram próximas. – Ele verifica seu copo, como se pudesse encontrar algo diferente dentro dele, e depois toma um bom gole. – Acho que nos perdemos um do outro na escola. Eu tinha meus próprios problemas. Mas dava carona a ela às vezes, ficávamos juntos quando minha mãe vinha para fofocar. – Ele dá de ombros.
– Por que ela quis que você mentisse?
Condor solta um suspiro longo e forte, como se a verdade fosse algo pesado que ele carregasse.
– Ela entrou em pânico quando soube das fotos. Teve medo de que a mãe descobrisse e, então, queria só pagar e acabar com tudo. – Seus olhos se fixam nos meus. – Fui eu que a convenci a não fazer isso – continua ele. – Eu disse para ela conversar com a mãe. Para explicar. Concordamos que os pais dela pegariam mais leve se pensassem que o responsável era eu. Como se tivéssemos saído, tomado um porre, e eu tivesse feito isso de brincadeira para mostrar a ela depois. Agora parece idiotice. – Ele vira a cara. – Quando se soube no fim das contas que as fotos eram de uma festa com toda aquela gente parada em volta, ela simplesmente... não conseguiu suportar.
Imagino um círculo de garotos, rindo, a cara vermelha do álcool: em minha cabeça, são as pinturas de Kaycee que vejo, os sorrisos predatórios, uma garota em posição fetal no chão.
– Não pensei que eles realmente iam distribuir as fotos – diz Condor, e tenho certeza de que é a primeira vez que ele faz uma confissão em voz alta. – Pensei que estivessem blefando. Agora você já sabe. Do meu segredo sujo.
– Não tão sujo, afinal.
– O bastante. Ela morreu.
– A culpa não foi sua – digo, inconscientemente papagaiando o que ele havia me dito.
Ele me abre um sorriso estreito.
– Obrigado. Mas parece que foi. – Ele termina a bebida. A garrafa está vazia. Ele se levanta para pegar outra.
– Foda-se, né?
– Kaycee Mitchell morreu. – Não consigo mais segurar isso. – Tenho certeza.
Por um bom tempo, Condor não fala nada.
– Kaycee Mitchell fugiu – diz ele rapidamente.
– Não. Por isso não consegui encontrá-la em lugar nenhum. Ela nunca saiu daqui.
– Então, todos na cidade estão mentindo? – A voz de Condor é curiosamente monótona, como se ele na verdade não estivesse fazendo a pergunta. Serve outro copo e desliza-o para mim pela mesa.
– Só quem importa. Todos os outros acreditam no que ouviram. – Minha cabeça já está girando. – Ela foi assassinada.
Pronto. Falei.
Mas Condor não demonstra choque. Só cansaço.
– Ah, é? Então, quem a matou?
Vejo que não acredita em mim, e digo isso a ele.
Condor suspira. Passa os punhos com força nos olhos.
– Por que alguém mataria Kaycee?
– Eu... ainda não sei – admito. – Mas sei que teve alguma coisa a ver com a Optimal. E com o Jogo também.
– Acha que Kaycee foi morta por causa de uma tramoia praticada pelos alunos da escola?
– Não. Foi por algo maior do que isso. Acho que o pai dela estava vendendo as fotos que Kaycee e as amigas recolheram. Acho que ele encontrou um mercado novo. E acho que ele a matou quando ela ameaçou contar.
– Isso é loucura – diz Condor.
– Ele costumava machucá-la. – Quase imediatamente, fico com vergonha. Parece uma traição de um segredo que Kaycee teria me feito jurar não contar a ninguém.
– Não duvido disso. – O tom de Condor se abranda. – Estou lhe dizendo que é impossível. Não há como Frank Mitchell ter matado a filha.
– Então, agora você é telepata. – Não ligo para a impressão que dou. Estou enjoada de que duvidem de mim, de ser desacreditada, e de que me façam sentir que imagino coisas. – Tem algum diploma especial para isso?
As palavras pairam incisivamente entre nós. Condor não tem diploma nenhum, e ele sabe que eu sei.
– Olha, eu vi Frank todo dia durante meses depois que Kaycee desapareceu. Toda manhã, ele comprava um engradado de seis latas de cerveja e um quartilho de vodca. Por algum tempo, foram doze latas e um quartilho. Foi como assistir a alguém cometer suicídio em câmera lenta. Um dia, não consegui me segurar, e disse a ele que beber não o ajudaria a esquecer Kaycee.
Ele entrelaça os dedos, apertando com tanta força que os nós se destacam.
– Ele me olhou como se eu tivesse enlouquecido. Sabe o que ele me disse? “Não estou bebendo para esquecer. Estou bebendo para acreditar.” No início, não entendi o que ele quis dizer. “Acreditar no quê?”, perguntei a ele. “Até eu acreditar que ela fugiu, até eu acreditar que ela está em algum lugar, e está bem.” – Condor fica em silêncio por um segundo. – Não entendeu? Ele disse que ela fugiu porque queria acreditar nisso. Precisava acreditar. Mas ele não sabia. Morria de medo de não saber.
Levanto-me rapidamente. Meu corpo parece pertencer a outra pessoa.
– Esquece. – Eu não devia ter vindo. Por que eu vim? Tudo está desmoronando para onde quer que eu me vire. – Esquece que eu disse qualquer coisa.
Condor também se levanta.
– Estou tentando te ajudar...
Eu o interrompo antes que ele consiga terminar:
– Talvez eu esteja enganada a respeito de Frank Mitchell. Mas não estou enganada a respeito de Kaycee. Eles a queriam fora do caminho, sabia que ela podia expô-los...
– Quem são “eles”, Abby? – Ele me olha como se tivesse medo de mim. – A Optimal? – Em sua voz, ouço a impressão que isso dá. Nos olhos dele, sou um reflexo encolhido, desesperado e pequeno. – E o xerife Kahn? E Misha? E todas as amigas de Kaycee? E Brent? – Ele cospe o nome como se fosse uma maldição.
– Você não entende. Você não sabe... a Optimal é dona de tudo nesta cidade... está em todo o canto...
– Quem não entende é você. – Sua voz falha com uma nota de dor e toca um lugar no fundo de mim, e de repente percebo que a raiva é só tristeza, só medo, só preocupação. – Foda-se Kaycee Mitchell. Morta, viva, que arda no inferno, onde quer que esteja. Ela que se foda. Ela arruinou coisas o suficiente. Não deixe que acabe com você também. Não...
Eu o beijo. Tiro as palavras de sua língua com a força bruta. Derrubamos uma pilha de livros da mesa, caímos na poltrona e, depois, no chão. Viramos a luminária e ela se quebra no chão, escurecendo a sala.
– Você não pode me usar para se consertar – diz ele, abrindo o cinto. – Sabe disso, não é?
– Não vim aqui para me consertar – digo, puxando-o para mais perto.
Porque talvez não exista conserto nenhum para mim.