A porta de tela range quando é aberta. Um aviso, mas que chega tarde demais.
Os passos de Brent são pesados. Lentos. Decididos.
– Abby? – Ele diz meu nome despreocupadamente, descartando todo o choque e a raiva que fingiu. De algum modo, conseguiu entrar em meu antigo quarto. Estou me segurando na porta, tentando continuar de pé. Mas o chão não é um chão: é água, e se abre abaixo de mim.
Fuja. Penso na palavra. Penso na palavra e desato a correr. Deslizo pela casa, saio intempestivamente pela porta, faço brotar asas no ar e voo. Estou correndo, sei que estou correndo, ainda assim, quando ele anda pelo corredor e me vê oscilando ali, percebo que ainda seguro firme nas paredes, ainda presa dentro da casa.
– Você ainda está acordada – diz ele.
Vai se foder, tento dizer. Mas as palavras viram pedra; enquanto elas caem, meu corpo desaba.
Nem mesmo sinto quando bato a cabeça no piso de madeira. Só percebo a poeira agitada por minha respiração e os sapatos dele vindo a mim.
– Vai ser uma ressaca danada – diz ele.
Ele batizou minha bebida.
Estou em um mar escuro.
Estou no chão.
Pergunto onde ele conseguiu a corda de alpinismo e por que não consigo sentir meus braços.
E então, solto a corda, e solto meus braços, e solto todo meu corpo. Caio em um buraco, tão fundo que me engole completamente.
DESPERTO COM o marulho da água e a vibração firme de um motor. Estou em um barco.
O céu é pontilhado de estrelas. Uma lua alta arde através da cobertura de nuvens.
Brent pilota com lentidão, provavelmente para não fazermos barulho demais, e deixa como rastro o fedor de escapamento atrás de nós na água.
Ele cantarola.
O medo chocalha por mim, mas não consigo me mexer. Sinto uma dor gritante na cabeça e o vômito queimando na garganta. Minhas roupas estão ensopadas, e os pulsos, assados da corda de náilon passada por eles. Ele amarrou meus tornozelos também e me meteu entre os bancos.
Ao longe: a batida de música. O cheiro de fumaça de madeira chega a mim. Alguém está dando uma festa em volta de uma fogueira.
Preciso sair do barco. Mas nunca vou conseguir nadar de mãos amarradas. Nem mesmo sei se dá pé na água, mesmo que eu consiga me soltar – meu corpo parece um saco de areia.
Ainda assim, preciso tentar.
Brent se afasta da condução, desligando o motor. Não consigo alcançar a lateral do barco para rolar por cima. Miro um chute fraco com as pernas e erro inteiramente Brent. O esforço escurece minha visão. A batida da música, mesmo de longe, faz minha cabeça latejar.
– Isto teria sido muito mais fácil se você tivesse acabado sua bebida – diz ele.
– Por favor. – Minha voz me é estranha. Nem mesmo sei o que estou pedindo. – Por favor, não me machuque.
Fui tão idiota. Tinha a resposta o tempo todo: Kaycee me deu. Deixou para mim em meu armário.
A coleira de Chestnut, o coitado do Chestnut, o cachorro que ela envenenou. Ela não estava se gabando. Não foi para me magoar. Ela pedia a minha ajuda. Era um código.
Alguém a estava envenenando, e ela não sabia quem nem por quê, nem podia confiar em ninguém de quem era próxima.
Então, confiou em mim – porque eu não tinha amigos, porque eu era inocente, porque ela pensou que eu conseguiria ajudar se algo acontecesse com ela.
Brent meneia a cabeça. Desdenhoso. Irritado.
– Você não tinha nada de voltar para cá – diz ele. – Podia ter deixado isso em paz. Podia ter esquecido tudo sobre Barrens. Então, por que não esqueceu?
– Ela já foi minha amiga – digo com a voz rouca.
Brent fica de pé ali, olhando-me de cima.
– Você é uma imbecil. Ela não teria se dado o trabalho de te salvar. Sabe disso, não é? – Ele teve de elevar a voz com o barulho do motor, e tive uma esperança breve e estúpida de que as pessoas na festa em volta da fogueira nos ouvissem.
Por que ele não estava preocupado que nos ouvissem?
Mas de imediato entendi: ele deve ter armado a fogueira e aumentado ele mesmo a música. Não estava preocupado porque não havia ninguém lá para ouvir.
Ele se afasta de novo. O pânico me domina, trazendo uma onda feroz de náusea: não sei com o que me drogou, mas é forte. Preciso de tempo – para falar com ele, convencê-lo a me soltar, encontrar um jeito de escapar, livrar meu corpo da droga.
– Por que você fez isso?
– Você sabe por quê – diz ele. – Você me explicou esta noite. Só entendeu errado os detalhes. Mitchell nunca teve nada a ver com isso.
Então, afinal, Condor tinha razão. Eu deveria ter dado ouvidos a ele.
– Foi você quem propôs vender as fotos à Optimal, não foi?
– Errado de novo. Foram eles que fizeram a proposta a mim. – Ele sorri. Mas não é tão frio quanto parece; quando vira o rosto para a lua, praticamente posso ver a tensão emanando dele. – Todo mundo sabia que eu andava com todas as garotas mais bonitas da escola. Então, depois que consegui o estágio, um dos caras mais velhos me procurou querendo um pouco de ação. Todo mundo adora ficar com meninas bonitas, e elas ficam ainda mais divertidas quanto mais você as embriaga. Sempre acreditei em compartilhar.
Não acredito que eu o beijei. Não acredito que um dia o achei atraente. Pergunto-me quanto a Optimal tem dado a ele, tem prometido por sua lealdade contínua – que acordo de promoções, propinas e privilégios compensou tudo o que ele fez.
E enquanto penso nisso, outra peça do quebra-cabeça se encaixa. Deve ter sido por isso que Kaycee ameaçou procurar a polícia. Não porque se sentisse mal. Não porque tenha começado a se arrepender. Foi apenas outra coisa que entendi mal.
– Kaycee queria uma fatia maior, não foi? Ela e Misha estavam dividindo o risco, mas você era o único que levava todos os benefícios.
O sorriso de Brent parece o de um predador: brilha no escuro, todo dentes afiados e fome.
– Ela sempre foi uma piranhazinha gananciosa – diz ele. – Por isso eu gostava tanto dela.
Engulo o gosto de vômito.
– Foi você que a matou, ou foi Misha? – pergunto, embora pense já saber a resposta. Aposto que Misha nem piscou nos últimos dez anos sem se preocupar com o que Brent diria.
E agora me lembro de pensar que aquela filha de Misha, Kayla, era surpreendentemente loura. Quase tão loura, ocorre-me, quanto Brent.
Será que Misha realmente acredita que pode fazer Brent amá-la, obedecendo a tudo o que ele diz, colocando meninas em um programa doentio em que elas podem sofrer abusos e desmaiar, acobertando Brent? Será que ela pensa que ele é capaz de amar?
– Foi ideia de Misha colocar mercúrio na tinta de Kaycee – diz ele calmamente. – Ela achou que seria divertido convencer Kaycee de que ela estava enlouquecendo. E, como disse, ela sempre teve uma queda por mim.
Não admira que eu tenha ficado tão enjoada. As pinturas antigas de Kaycee têm vertido mercúrio o tempo todo, e eu o estive inalando.
– Mas na época não pensamos em matá-la. – Ele parece entediado. – Só queríamos fazê-la parecer uma louca, para evitar que procurasse a polícia, e cuidar para que eles não prestassem atenção, mesmo que ela falasse.
Sempre que ele vira a cara, mexo meus pulsos de um lado para outro, para afrouxar as amarras. Se conseguir soltar as mãos, poderei pular e me preocupar com os tornozelos quando estiver na água.
Quase consigo deslizar uma das mãos. Só preciso de mais um minuto.
– Então, por que matá-la, se você estava convencido de que ninguém daria ouvidos a ela?
– Você – diz ele, e eu quase me esqueço de onde estamos e do que ele veio fazer. – No último dia de aulas, lembra o que aconteceu? Kaycee colocou aquela coleira idiota de cachorro no seu armário.
Paro de me mexer. Jamais soube que ele sabia.
Ele me olha como se estivesse do outro lado de um telescópio.
– Você disse a Misha que Kaycee tinha colocado lá como uma pista.
– Eu não disse isso – sussurro.
Mas é claro que disse. Agora me lembro: voando para Misha, tentando bater nela, tentando arranhar minha fúria com Kaycee na cara de sua melhor amiga. Mas qual é o seu problema, merda? Um grupo de alunos reunido no corredor para olhar. Misha me empurrou na parede, eu não tinha forças para lutar com ela. Você é desequilibrada?
Eu gritava com ela. A centímetros de seu rosto. Tentava fazer as palavras se enterrarem em sua pele, tentava cortá-la com elas. Não bastou ela ter envenenado a droga do meu cachorro. Tinha de me deixar uma pista, para o caso de eu esquecer?
Lembro-me da expressão de choque brusco de Misha e de pensar, por um segundo, que finalmente eu a havia atingido.
Brent tem razão. Sou mesmo uma idiota.
Fecho os olhos. O barco se balança com uma onda, depois, volta a ficar parado. Sobe e desce. Kaycee tinha deixado a coleira como uma pista, ou como um grito de socorro – mas não para me provar que matara Chestnut. Agora vejo que era uma espécie de garantia. Se acontecesse alguma coisa ruim, ela podia se certificar de que eu me perguntaria sobre a coleira e por que ela a deixou para mim. Kaycee teve esperanças de que eu fizesse a ligação. O fator em comum – entre Chestnut e ela.
Ambos envenenados.
Naquele dia no corredor, porém, revelei sem querer a Misha que Kaycee começara a suspeitar de que alguém tentava matá-la como Chestnut foi morto – com veneno. Misha deve ter entrado em pânico. Se Kaycee deixou uma pista para mim, uma mané com quem ela não falava havia anos, a quem mais ela havia contado – e o que exatamente ela sabia?
– Naquela noite, na mata – falei, sufocada. – Quando você me beijou...
– Eu não podia deixar que você chegasse perto demais da água – disse ele categoricamente. – Ela fez muito barulho enquanto afundava. Eu podia jurar que estava morta antes de colocá-la no barco, mas acho que tive certa pressa.
Ela não fica no fundo.
Precisamos ter certeza de que ela não está respirando.
Agora eu lembro. Por que não consegui lembrar antes? Convenci a mim mesma de que minhas lembranças eram suspeitas. Eu me convenci a ignorar a suspeita terrível de que havia algo muito errado na mata naquela noite.
Ele avança para mim. Quando se curva, sinto o cheiro azedo de seu hálito. Por um segundo terrível, penso que ele vai me beijar de novo. E agora é tarde demais – tarde demais para me libertar, tarde demais para escapar, para sobreviver.
– Mas sempre te achei uma graça. De um jeito patético.
Ele segura meus pulsos e eu grito – um instinto, inútil.
Tarde demais, vejo que ele tem uma faca.
– Acho que sempre gostei das destroçadas. – Ele leva a faca a meus pulsos. Com um golpe limpo, Brent me solta.