A menos de um quilômetro e meio da casa de meu pai, a estrada se estreita e se transforma em um caminho de cascalho, tão familiar que de súbito modifica uma década em tempo nenhum. Pedras minúsculas batem no carro enquanto pássaros – desta vez, urubus-de-cabeça-vermelha – bicam uma carcaça na estrada. Buzino e eles levantam a cabeça com aqueles olhos caídos e obtusos antes de se erguerem no ar.
É só um jantar, lembro a mim mesma. Simples. Rápido. Meu pai não tem poder sobre mim. É só uma pessoa, mesmo que seja terrível. Existem pessoas ruins no mundo; às vezes, são parentes seus. Mas ele não pode ver meus pensamentos. Não pode ler meus pecados, como antigamente eu pensava que pudesse.
De todo modo, não posso evitá-lo.
Como muitos por aqui, meu lar de infância é uma modesta casa de dois andares jogada em um terreno no meio do nada. Não há nada de estranho nela, nenhuma escuridão em seu telhado de duas águas ou paredes de lambris, nada de peculiar na varanda de concreto ou no trecho de jardim acastanhando-se ao sol.
Ainda assim, a casa parece se precipitar na minha direção, e não o contrário. Como se estivesse ávida para me ter dentro dela. Como se esperasse.
Pela primeira vez em quase uma década, estou em casa.
Desligo o motor e mexo no cabelo, que está embaraçado no alto, matando tempo, ganhando mais alguns segundos. Quase nunca uso o cabelo solto, e agora ele chega à metade de minhas costas. De tempos em tempos, pego eu mesma a tesoura e aparo as pontas duplas. Sempre quis cortá-lo curto, sempre jurei que ia fazê-lo. Por várias vezes estive na cadeira de um cabeleireiro antes de entrar em pânico ao ver a tesoura. Meu pai sempre me disse que meu cabelo é minha única qualidade, e de algum modo essa ideia transformou-se no próprio cabelo – isto e a lembrança de minha mãe passando os dedos por ele, do couro cabeludo à ponta, enquanto o trançava para que mais tarde caísse em ondas. De algum modo tenho medo de ficar feia sem o cabelo comprido. Pior ainda, temo que, ao cortá-lo, eu vá eliminar esta recordação, uma das poucas lembranças boas que tenho. Terei que perdê-la novamente. Desta vez, porém, será por minha culpa.
Saio do carro e fico parada por um segundo, olhando fixamente a linha das árvores no bosque: hectares descendo até a represa, terras públicas, e meu oásis particular quando era pequena. Esforço-me para me lembrar da última vez em que vi meu pai, mas consigo um conjunto de imagens: sua mão em meu pescoço, a vez em que ele desencavou uma calcinha fio-dental em minha gaveta de roupas íntimas e me fez usar no pescoço durante o jantar por uma semana. Os momentos de gentileza, estranhos, alarmantes, e quase mais dolorosos do que os maus-tratos: flores colhidas para mim em uma xícara ao lado da cama, um passeio surpresa de aniversário a um parque de diversões em Indianápolis, a vez em que ele me ajudou a enterrar Chestnut depois que o encontrei rígido e frio na mata atrás da casa, suas gengivas com crostas de vômito.
Quando saí da cidade, quatro dias após fazer 18 anos e dois depois da formatura, fui de carro para o Oeste, para Chicago, com o coração na garganta e duas valises no porta-malas, certa por cada segundo longe da cidade de que Deus me mataria com um raio. Você só está segura em Barrens. Por mais da metade da minha vida pensei que seria mandada ao inferno se abandonasse o barco. Como se partir fosse o pecado definitivo. Depois percebi que o inferno ficava aqui mesmo, em Barrens, e que isso fazia valer o risco da partida.
O cascalho é esmagado por minhas botas quando sigo pelo caminho. Ali está o comedouro para pássaros que fiz quando tinha 8 anos. Tem um trecho de terra onde a grama nunca se recuperou da piscina infantil que ficou ali por tantas estações. Lá está o antigo sino de vento de minha mãe tilintando suavemente na varanda – sinto uma pontada com isso –, que ela própria fez, de latão e madeira pintada. O crucifixo lascado ainda está pregado na porta da frente.
O ar tem cheiro de lenha queimada, parece o verão. Mas por trás dos odores conhecidos de grama, terra e queimado, que sempre amei, existe outro cheiro, denso e pungente. Conheço esse cheiro. Juncos. Podridão.
O cheiro da seca. A represa fica a menos de oitocentos metros daqui, escondida de vista, pouco além das árvores.
Dentro da casa, encontro meu pai, na sala de estar pequena e de pé-direito baixo, banhado na luz azulada da TV, o que me faz lembrar da sensação de estar submersa.
Meu pai parece pequeno. Pequeno e velho. O choque de vê-lo quase me faz cambalear. Ele sempre foi um sujeito parrudo, não alto, mas o tipo de pessoa que engolia uma sala só de entrar nela, musculoso dos anos de trabalho ao ar livre: telhados, carpintaria, cavando, trabalhando nas fazendas locais. Nas poucas vezes em que nos falamos ao telefone em um ano, é este quem imaginei do outro lado da linha.
Agora seus músculos parecem ter derretido em dobras de uma pele cinzenta, fina e coberta como um lençol sobre os ossos. Ele parece um cadáver animado, e seus olhos, quando ele se vira para mim, levam um segundo para focalizar.
Por um momento, fico apavorada: ele também não me conhece.
E então, ele começa a se impelir para cima, agarrado aos braços da poltrona.
– Não se preocupe, pai. Sente-se. – Eu me curvo e deixo que ele me abrace. Não consigo me lembrar da última vez em que nos abraçamos.
– Minha querida. – Ele acaricia meu ombro e roça os lábios secos em minha face. Sua voz é fraca, e a saudação, minha querida, ele não costumava usar quando eu era pequena. – Eu torcia para que você ainda viesse.
– É claro, pai. Eu lhe disse que viria – respondi.
– Já faz tanto tempo... – Ele fecha os olhos, recostando-se na cadeira, como se até o pequeno esforço físico o tivesse exaurido.
Resisto ao impulso de me desculpar. Ele sabe por que não vim antes. Todo mundo sabe – de seu gênio ruim, seus acessos, de seus estados de humor sombrios. Durante semanas depois que minha mãe morreu, tudo o que fiz foi provocar explosões de fúria nele. E então, com igual rapidez, ele se retirava no silêncio, fingia que eu simplesmente não existia. Mas tudo o que ele fazia era válido, porque havia “encontrado o Senhor”. Na cidade, meu pai usava a religião como uma armadura, e isso de algum modo o manteve intocável. Em casa, ele a brandia como uma arma.
Todo mundo sabia e, ao mesmo tempo, ninguém via; ninguém dizia nada. Numa cidade maior, todo mundo é anônimo; mas, em uma cidade pequena onde todos se conhecem, é preciso uma verdadeira habilidade para virar a cara quando você olha um rosto que reconhece.
Nada mudou por aqui, além do acréscimo de uma única foto – que mandei, da formatura na faculdade – presa com tachas acima da moldura da lareira. A porcelana de minha mãe à mostra na cristaleira. Um antigo televisor de tubo com um videocassete – meu Deus, um videocassete – bem de frente para a poltrona de meu pai. Uma fina camada de poeira em tudo. E os chinelos de meu pai – os mesmos chinelos que ele usava dez anos atrás – quase completamente gastos. É como se o tempo tivesse parado quando fui embora.
Eu não sabia o que esperar vindo aqui. Minha tia Jen – irmã de meu pai, quatro anos mais velha do que ele – mandou-me um bilhete no último Natal, depois de fazer uma visita. Foi ela que me contou da decadência de papai. Alzheimer, pensava ela, embora naturalmente papai se recusasse a procurar o médico.
São pequenas coisas, dissera ela. Onde estão as chaves dele. Oscilações de humor. Ele cai muito. Mas ele ainda sabe quem somos nós.
– Como foi a viagem de carro? – Sua voz parece velha, fina de tão desgastada, e ergue uma onda inesperada de compaixão dentro de mim.
– Ótima. O trânsito empacou na 83, mas só por mais ou menos meia hora. – Dez anos, e estamos falando do trânsito. Há um longo silêncio canhestro e eu me atrapalho, procurando o que dizer. Sobre o que conversávamos? Nós conversávamos?
Por instinto, conto mentalmente os passos até a porta de entrada: 23. Treze até a porta da cozinha que leva ao quintal. Dezessete até a escada, caso eu precise fugir para o meu quarto.
Meu antigo quarto. Esta não é mais minha casa. Não é mais minha vida.
– Preparei o jantar – diz ele, quase com orgulho. Desta vez, ele consegue se impelir da cadeira e, apoiando-se muito numa das mãos, procura a bengala. – Agora eu preciso dessa coisa.
Sinceramente não sei o que dizer, então simplesmente lhe abro um meio sorriso de lábios rígidos e o acompanho à cozinha. Ele está lento, recurvado na bengala, e vê-lo desse jeito é mais do que perturbador. Aquele sentimento de novo – tristeza, pena, desejo de fazer melhor – inflama-se em mim, desenfreado. Eu estava preparada, mas não para isto. De súbito sinto um novo medo – de que terei que aprender de novo a sobreviver na presença deste homem, a encontrar a mim mesma. De que ele me fará amá-lo de novo e depois me decepcionará, e eu terei que aprender mais uma vez a deixar de amá-lo.
Meu pai fez lasanha – “caseira”, diz ele, “não daquelas congeladas” –, e sinto outra pontada quando o imagino andando com dificuldade pela cozinha, de bengala, cortando cebolas com uma só mão, dispondo as camadas de molho e queijo. E também é vegetariana. Embora os sinais da doença estejam presentes – ele se esquece das palavras para descanso de mesa, e menciona minha mãe uma vez no presente –, não se esqueceu de que não como carne.
De repente me pergunto se ele se lembra da noite em que ficamos sentados à mesa e perguntei se sabia o que tinha acontecido com Little Bubsy, o coelho de estimação que eu tinha quando criança. Eu devia ter 5 anos. Minha mãe olhou fixamente o próprio prato, com os olhos leitosos dos remédios e da doença.
– Você acabou de comê-lo – disse meu pai. Desde então, não tive mais estômago para carne.
Lavo as mãos numa água tão quente que forma ondas de vapor que sobem para o teto.
Comemos nossa lasanha quase em silêncio. É só depois do jantar, quando estou lavando os pratos na pia, que percebo que não fizemos uma oração em agradecimento pela refeição.
Será que ele esqueceu?
O suor se acumula em minhas axilas.
Ele adormece diante da TV enquanto lavo a louça. Pego uma manta – feita por minha mãe – e o cubro na cadeira. Ele se levanta um pouco e segura meu braço com tanta força que quase arquejo, irracionalmente – de medo.
– Estou feliz por você ter voltado – diz ele. – Estou feliz por estar aqui.
Tenho uma vontade súbita de chorar. Este é o pior truque de todos.
– É só uma visita, pai. – É um esforço impedir que minha voz falhe. Depois de tantos anos. Como ele se atreve? A raiva é a única coisa que tenho, a única de que sempre pude depender.
Como ele se atreve a tirar isso de mim também?