Se agora existem contaminantes químicos na água – que empolam a pele de Cooper Dawes e que fazem cheiros ruins exalarem das torneiras –, pode ter havido também dez anos atrás, quando Kaycee Mitchell começou a desmaiar em aula. Retorno à ideia de que talvez Kaycee Mitchell estivesse realmente doente. De que havia uma verdade enterrada no fundo daquelas mentiras.
Se for assim, posso usar o depoimento de Kaycee, em particular agora que os Davies e os Iocco estão dando para trás. Uma leve emoção passa por mim com a ideia de finalmente ter uma desculpa para procurá-la – mas não sei onde ela está.
E, pela primeira vez em uma década, toda a força da pergunta me volta: por que ela fugiu? Misha não fugiu. Assim como nenhuma das outras meninas. Será que Kaycee simplesmente procurava uma desculpa para desaparecer?
Já procurei por ela antes. Como poderia não procurar? Encontrei centenas de Kaycee Mitchell no Facebook, mas nunca a verdadeira. Certa vez, tarde da noite, minha companheira de apartamento da época bateu à porta, bêbada, e me pegou examinando fotos de louras desconhecidas. Quem é a gostosa que você está stalkeando?, perguntou ela. Fechei o computador numa pancada tão forte que quase arranquei suas unhas. Depois disso, ela nunca mais ficou só de toalha na minha frente; levava as roupas para o banheiro e se trocava logo depois de sair do banho.
Como eu poderia explicar a ela? Não conseguia nem explicar a mim mesma. Só o que sei é que Barrens rompeu algo dentro de mim. Empenou o ponteiro de minha bússola, transformou Sul em Norte e mentiras em verdade, e vice-versa. E o que aconteceu com Kaycee no último ano – o que aconteceu com todas as amigas dela quando começaram a cair, desmaiar e se esquecer – é o ímã central. Se tenho alguma esperança de me encontrar de novo, preciso entender para onde a verdade apontava esse tempo todo.
Para que lado você fugiu, Kaycee Mitchell?
EXISTEM QUATRO sex shops e seis boates de strip chamadas Temptations em Indiana, três delas só em Gary. Por sorte, só uma fica em Barrens.
Conto os toques pelos números primos. Um. Três. Cinco.
A mãe de Kaycee fugiu antes mesmo de nos tornarmos amigas, na primeira série – esta era uma época ruim para se drogar em Indiana, e a mãe dela era usuária. O pai, alcoólatra notório, era dono da loja de quinquilharias. Jamais gostei de ficar na casa de Kaycee quando o pai estava lá, e tenho a sensação de que ela também não gostava. Por isso éramos tão íntimas quando crianças: nós nos encontrávamos na mata e praticamente morávamos ali, tocando a beira da represa com o dedão do pé, fingindo que a água era um espelho que nos deslizaria para um mundo diferente.
Quando estávamos no ensino fundamental, Frank Mitchell abriu uma sex shop – a mesma por onde passei a caminho da cidade. Todo mundo tinha certeza de que ali ele também vendia maconha e engradados de cerveja de uma geladeira escondida atrás de uma parede de antigas revistas Playboy.
Estou prestes a desligar quando ele atende.
– Mitchell’s. – O site dá como nome oficial da loja “Temptations”, mas sempre chamamos de Mitchell’s, pura e simplesmente. Acho que ele pegou o hábito.
– Ah, sim, sr. Mitchell. – Aquela sensação desagradável me atinge em cheio no peito. Ele é um daqueles homens com cara de placa de Cuidado, sempre à beira do mau humor, como se pudesse estourar a qualquer momento.
Sua voz é ríspida ao telefone, como se ele tivesse acabado de engolir um punhado de cascalho. Ainda assim, mantenho meu tom animado.
– Meu nome é Abby, sou uma antiga amiga de Kaycee. – Assim que falo no nome, a respiração dele fica presa, depois recomeça. – Voltei à cidade por algum tempo, e estava me perguntando se o senhor saberia onde posso encontrá-la. Adoraria falar com ela.
– Não. – A palavra é um disparo explosivo e curto. Depois, faz-se um silêncio tão longo que procuro saber se ele desligou. – Não faço ideia de onde essa garota está. Não falo com ela há quase uma década.
– O senhor não teria um telefone? Um e-mail?
– Ela foi embora porque queria ficar em paz; então, eu a deixei em paz – ele fala rispidamente, como se me desafiasse a dizer que ele entendeu mal. – Se era tão amiga de Kaycee, por que você não sabe como encontrá-la?
– Sr. Mitchell, espere – digo, antes que ele possa desligar. Estreito os olhos para o sol poente. – Lembra quando Kaycee adoeceu, quando ela estava no ensino médio? Pode me falar um pouco dessa época?
Outra pausa, e minha pulsação começa a subir. Nada do outro lado da linha.
– O que você é – disse ele –, alguma jornalista?
– Não – respondo. – Só uma amiga.
– Qual é mesmo o seu nome?
– Abigail. – Não dou meu sobrenome. – Sou de Barrens, como disse. Só tenho algumas perguntas para Kaycee. Eu tinha esperança de que ela estivesse disposta a conversar comigo.
Outro longo silêncio.
– Sr. Mitchell? Ainda está aí?
– Estou aqui. – Ele dá um pigarro. – Por mim, Abigail, você pode conversar com Kaycee no inferno.