É setembro quando finalmente coloco no carro minha mala e a bolsa de viagem, a caixa de joias de minha mãe e uma caixa de papelão com os pertences de papai, que, afinal, decidi guardar.
Por que não? O passado é só uma história que contamos. E todas as histórias dependem do final.
E pela primeira vez na vida acredito verdadeiramente que o final será bom.
Hannah me dá um maço de desenhos reunidos em um fichário de três aros: uma super-heroína chamada Astrid que tem uma capa roxa e um par de botas de couro e anda por aí resgatando crianças do afogamento nas ondas do mar, ou aquelas presas por uma enchente nos telhados de suas casas.
– Tentei fazer parecida com você – ela me diz timidamente, antes de me apertar por um instante em um abraço, e depois se afastar correndo.
– Você não se despediu! – grita Condor para ela, mas Hannah já desapareceu, sumindo dentro da casa.
– Está tudo bem – digo. – Também não gosto de despedidas.
É um dia luminoso, repleto das cores clássicas de Indiana: ouro, verde e azul. O mês de agosto parecia decidido a compensar a seca, como se 12 meses de chuva estivessem se acumulando, esperando para estragar a última parte do verão de todos. Mas, quando as tempestades passaram, deixaram os campos indomados e exuberantes. A represa se aproxima dos níveis normais novamente, embora ainda esteja com altos níveis de chumbo e outros contaminantes segundo as análises, e o povo de Barrens ainda está usando para beber e lavar a água mineral trazida de caminhão à cidade pelo estado e por várias organizações filantrópicas. Os manifestantes até armaram um acampamento no parquinho que, por ironia, ainda recebe os visitantes com uma placa de A Optimal Cuida de Você!. (Mas depois de uma recente intervenção, agora diz A Optimal DesCuida de Você.)
Nunca descobri quem me mandou o envelope cheio de fotografias que finalmente me colocou no caminho para entender a verdade. Mas desconfio de que Misha teve algo a ver com isso, como desconfio de que foi Misha quem tentou me tirar da estrada, embora duvide que um dia vá saber se ela finalmente enjoou de dar cobertura a Brent, se simplesmente percebeu que ele jamais a amaria do jeito que ela sempre esperava, ou se simplesmente pensou que podia me tirar do caminho, mesmo que isto significasse implicar a si mesma. Só o que sei é que ela esteve cooperando com a investigação federal sobre a natureza do programa de bolsas da Optimal e dos maus-tratos perpetrados em nome deles. Talvez ela esteja colaborando numa tentativa de se redimir. Talvez seja só uma tentativa de reduzir sua sentença, embora, em vista do número de meninas afetadas, seja improvável que ela um dia saia da prisão.
E tem também, é claro, o assassinato de Kaycee e as acusações relacionadas com ele. Agora que Brent está morto, Misha vai a julgamento sozinha.
Eu quase – quase – sinto pena dela.
Um silêncio canhestro se estende entre mim e Condor – o que é pouco característico, porque passamos as semanas conversando, jantamos juntos quase todas as noites, uma amizade formada pela estranha e repentina bolha de publicidade que fez de nós uma família improvisada. É engraçado: durante tudo isso, caímos em uma intimidade tranquila, o tipo de amizade que sempre ansiei e só tive intermitentemente com Joe.
Não estou preparada para deixá-lo, nem Hannah, nem mesmo Barrens.
Mas preciso.
Nós dois sabemos que meu lugar não é em Barrens. Condor passou toda a sua vida aqui; tenho meu pequeno apartamento estéril esperando por mim em Chicago. Quem sabe? Talvez eu vá pendurar uma ou duas fotos. Talvez eu peça a Joe para me pagar ostras de um dólar. Talvez eu deixe que ele me pague ostras por um ano, acompanhadas de muita subserviência – ele prometeu que me deve um suprimento vitalício.
Talvez eu finalmente examine minha caixa de entrada e todas as novas queixas, relatórios ambientais e novos casos em potencial esperando por minha atenção. Se você quer um mundo limpo, alguém precisa filtrar o lixo.
Ainda bem que me acostumei a sujar as mãos.
Dou um pigarro.
– Ela parece muito melhor – digo.
Quando ele sorri, aparecem rugas nos cantos de seus olhos.
– As crianças são incríveis, não são? Muito resistentes.
Folheio novamente os cadernos de desenhos. Ela é mesmo muito boa – tem um talento que me lembra o de Kaycee na idade dela.
– Nem uma mancha de sangue – digo.
– Nem pedaços de corpos também – diz Condor com secura. Depois daquela noite na represa, Hannah não conseguiu parar de desenhar as coisas horríveis que havia visto: chamas e sangue, um corpo alquebrado no convés de um barco que afundava.
Foi Hannah que vi na mata, Hannah que, em minha exaustão e terror, confundi com a Kaycee criança. O estalo que ouvi pouco antes de afundar foi um tiro: um único disparo de rifle, apontado da margem a trinta metros a um alvo que se movia rapidamente em um barco a motor.
Condor nasceu e foi criado em Barrens, e esta cidade ensinou seus meninos a jogar futebol e a mirar uma arma. Só foi necessário um tiro.
Ele me contou a história toda no hospital no dia seguinte aos acontecimentos – que ele ficou cada vez mais preocupado depois de ver minhas ligações, e em particular quando não atendi a ligação dele. Que ele, depois de várias horas, ficou tão agitado que decidiu ir à casa de meu pai para saber se eu estava bem. Ele não queria deixar Hannah sozinha – mas ela tem o sono agitado, tende a ter pesadelos, e ele teve medo de que ela acordasse e descobrisse que ele saíra. Então, acordou-a e a colocou no banco traseiro do carro.
– Eu tinha certeza de que era só paranoia minha – disse-me ele. – Imaginei que encontraria você metida na cama, daria meia-volta e iria para casa.
– Então, por que levou sua espingarda? – perguntei a ele.
Ele simplesmente deu de ombros.
– Alguma vez você sai para acampar sem uma lanterna?
Balanço a cabeça em negativa.
Ele sorri.
– Eu também não.
Mais tarde, ouvi a história repetida pelos noticiários, na internet, em blogs, em segmentos de programas noturnos. Todos ficaram cativados pelo fato de eu ter escapado por pouco na represa – e mais do que um pouco enamorados de Condor, o pai solteiro abrutalhado e bonito que fez o papel do herói.
A história foi enfeitada, editada e exagerada, mas os fatos básicos ainda eram os mesmos: depois de chegar à casa de meu pai, ele encontrou o carro de Brent e o meu, mas a porta aberta e rastros na varanda dos fundos, atravessando a grama, sugeriam que algo – ou alguém – tinha sido arrastado para a mata.
Ele mandou que Hannah ficasse dentro do carro. Quase nunca dava ordens diretas, e a menina jamais lhes desobedecia.
Naquela noite, ela desobedeceu.
Quando saí do hospital, tentei voltar à casa de meu pai, que já havia perdido então a fita policial que durante dias a deixou cercada. Mas já estavam chegando turistas curiosos. Eu acordava no meio da noite com um clarão súbito, via um estranho na janela e era puxada para o poço de pânico, repassando mentalmente tudo o que aconteceu.
Quando Condor sugeriu que eu ficasse na casa dele, concordei prontamente. Eu preparava o café pela manhã. Ele fazia ovos. Dormi na cama dele. Ele ficou com o sofá-cama. Hannah e eu tomávamos leite morno à meia-noite, quando os pesadelos nos acordavam, assustadas. Condor e eu nos sentávamos no sofá, vendo antigos episódios de seriados sem prestar nenhuma atenção neles, depois de horas intermináveis dando provas, entrevistas, ajuda a um maremoto de investigadores e promotores federais, advogados de sobreviventes de agressão sexual, cães de guarda corporativos. Era como se expor a Optimal e sua economia de adolescentes usada para entretenimento, e quase ter sido morta no processo, fosse tudo parte de um grande plano para eu ter meus quinze minutos de fama. Barrens, e seus segredos sujos nada pequenos, de repente estava em toda a parte. A ruína de uma empresa multimilionária, a exploração, a corrupção, as meninas, o assassinato dez anos antes – era o grande prêmio da loteria em termos de audiência.
Mas a atenção acabaria por desbotar – já havia começado –, e assim também o que houve entre mim e Condor. Nunca foi para durar, pelo menos não desse jeito. Condor e eu tínhamos já criado uma vida em lugares diferentes. Isso é o que há de estranho na sua casa: você sempre chega assim que para de olhar a bússola.
– Vou sentir sua falta – diz Condor agora, a boca toda torcida, como sempre acontece quando ele precisa dizer alguma coisa séria.
Dou um abraço rápido nele. É quase um apertão – se fosse um pouco mais longo, um pouco mais, meus pensamentos rodariam a lugares tenebrosos e solitários demais para entender.
Ele levanta a mão. Emoldurada pelo imenso céu cheio de nuvens de Indiana, ele fica verdadeiramente bonito. Sempre me lembrarei deste momento, digo a mim mesma, mas já sei que não vou.
Ele se vira pouco antes de chegar à porta de entrada enquanto entro no carro.
– Procure ficar longe de barcos.
– Procure não atirar em ninguém – digo de volta. Ele me sopra um beijo.
Coloco a chave na ignição.
Antes de sair da cidade, faço uma volta conhecida para a casa de meu pai. À medida que me aproximo, vejo a mesma casa de dois andares ligeiramente torta e a entrada de cascalho, mas o quintal castanho e tomado de mato foi limpo. A casa, com ajuda de TJ, brilha com uma nova camada de tinta azul clara.
Quase não a reconheço.
Este não é mais um lar.
Uma placa de Vende-se se projeta da grama aparada, meio inclinada, otimista, e talvez de um otimismo absurdo.
Um dia uma nova família se mudará para esta casa; uma nova criança correrá por seus corredores, olhará a linha das árvores na floresta de seu quarto, vai pedalar a bicicleta pela trilha até a represa, pegará pequenos objetos que são importantes para ela e, talvez, se sentará para jantar de mãos dadas com os pais enquanto eles dizem as graças.
Ou talvez não vá haver graça nenhuma nesta casa novamente.
Abro a janela e respiro o cheiro da represa através da linha da mata pelo que sei que será a última vez.
Uma revoada de corvos gira em correntes invisíveis pelo céu. Juntos, formam uma flecha apontando para o norte.
Viro o carro para segui-los.
Barrens fica cada vez menor em meu retrovisor, até que, por fim, desaparece.