No meu último ano do ensino médio, quando Kaycee Mitchell e as amigas dela adoeceram, meu pai teve um monte de teorias.
– Essas meninas não prestam – disse ele. – Só dão problema. – Ele tomou como questão de fé que elas estavam sendo castigadas. Para meu pai, elas mereciam.
Kaycee foi a primeira. Fez sentido. Ela foi a primeira a fazer tudo: perder a virgindade, experimentar um cigarro, dar uma festa.
Kaycee andava à frente das amigas como um lobo alfa liderando a alcateia. No refeitório, decidia onde se sentar, e as outras a seguiam; se ela comesse o almoço, as outras comiam também; se movesse a comida de um lado para outro na bandeja ou só almoçasse um saco de balas de goma Swedish Fish, as amigas faziam o mesmo.
Misha era a mais cruel e a mais barulhenta delas.
Mas Kaycee era a líder.
E então, quando ela adoeceu, nós, as veteranas da Barrens High, não ficamos apavoradas, nem perturbadas, nem preocupadas.
Só tivemos inveja.
No fundo, cada uma de nós torcia para ser a próxima.
Aconteceu pela primeira vez no debate do quarto tempo de aula. Todo mundo tinha de participar de eleições simuladas. Kaycee passou pelas três rodadas de eleições primárias. Era fácil acreditar nela no papel de política, convincente e de raciocínio rápido, uma mentirosa de talento; nem mesmo sei se Kaycee sabia quando estava dizendo a verdade e quando mentia.
Ela estava na frente da sala, fazendo um discurso de comício político, quando de repente foi como se tivessem cortado o fio que ligava a voz à garganta. A boca ainda se mexia, mas o volume fora desligado. Não saía palavra nenhuma.
Por alguns segundos, pensei que havia alguma coisa errada comigo.
E então, as mãos dela agarraram o púlpito, e seu maxilar ficou petrificado, aberto, como se ela estivesse entalada, gritando em silêncio. Eu me sentava na primeira fila – ninguém mais queria aqueles lugares, então eu podia ficar com eles –, e ela estava a pouca distância de mim. Nunca vou me esquecer dos olhos dela: como se de súbito fossem transformados em túneis.
Derrick Ellis gritou alguma coisa, mas Kaycee o ignorou. Eu podia ver sua língua por trás dos dentes, um pedaço de chiclete branco acomodado ali. Alguns riram – devem ter pensado que era uma brincadeira –, mas eu não.
Fui amiga de Kaycee, uma grande amiga, quando éramos mais novas. Aquela foi a segunda vez na vida em que a vi demonstrar medo.
As mãos dela começaram a tremer, e foi quando todo o riso parou. Todo mundo ficou em silêncio. Por um bom tempo, não houve som nenhum na sala, só o anel de prata que ela sempre usava batendo ruidosamente no púlpito.
E então, o tremor subiu por seus braços. Os olhos giraram para trás e ela caiu, derrubando o púlpito.
Lembro-me de ficar de pé. Lembro-me das pessoas gritando. Eu me lembro da sra. Cunningham de joelhos, levantando a cabeça de Kaycee, e alguém gritando que a impedissem de engolir a própria língua. Alguém correu para chamar a enfermeira. Outra pessoa chorava; não lembro quem, só me lembro do som, um lamento desesperado. Estranhamente, só consegui pensar em pegar as anotações dela, que tinham caído, e colocá-las em ordem, cuidando para alinhar os cantos.
Foi quando, repentinamente, passou. Parecia que o espasmo tinha saído de seu corpo, como uma maré baixando. Ela abriu os olhos. Piscou e se sentou, parecendo um tanto confusa, mas não contrariada, ao ver todos nós reunidos em volta dela. Quando a enfermeira chegou, ela parecia ter voltado ao normal. Insistiu que foi só uma fraqueza, porque não havia comido. A enfermeira retirou Kaycee da sala de aula, e o tempo todo ela olhou para nós por cima do ombro, como quem quer ter certeza de que todos a viam sair. E nós olhamos – é claro que sim. Ela era o tipo de pessoa que você não conseguia deixar de olhar.
Todos nós nos esquecemos disso. Ou fingimos esquecer.
E foi então, três dias depois, que aconteceu outra vez.