Capítulo desenterrado
O céu dos pardais, estúpido!
Assim que o mar arredou, Marcolino sugeriu fazerem logo ali o baptizado de Pancrácia. Tanta extrema-unção, tanto rogo para parar tempestade, tanto orai por nós, agora era de vida que se tratava, de alguma coisa que se inaugurava. Lamentava não ter ali o cabeção, para dar mais solenidade ao momento, aprontaram a menina no fatinho de baptismo, cravaram os espetos da santa na areia, e em redor da poça, todos de cabeça baixa, ouviram um latinório comprido do padre. Maria Clara, por ter trajes mais conformes, foi escolhida para madrinha, e sorria com seus dentes rasos. Algum alento nasceu naquela praia, junto com Pancrácia, Emina parecia outra, já falava, tomava decisões, fazia pedidos o todo o tempo a Julien, que precisava de mais água, que tinha fome, que sentia calor, exigia, mandava, punha a praia inteira a seu mando. Até Nunzio se sentia mais reanimado, a perna dava-lhe tréguas. Num fim de tarde, encontrando-se a sós com Julien, confessou-lhe tudo, os seus planos para quando fossem salvos daquela praia. Iria casar-se com Emina, assumiria a paternidade da criança, não queria saber do passado, todos os infortúnios seriam sarados, como o mar lhes ensinara a dar sempre uma segunda oportunidade ao dia. Esta era a sua segunda oportunidade, e a de Emina também. Ele tinha posses, poderia garantir-lhe, e à menina, um futuro digno, estabelecer-se-iam numa linda casa no Rio de Janeiro, de onde não se ouvisse o rugido do mar. Claro que, pela dedicação que Julien mostrava à sua futura esposa, podia contar com ele para o apoiar nos primeiros tempos, pelo menos até ele tomar um rumo na vida. Se ele concordasse, teriam muito gosto, decerto que Emina teria tanto quanto ele, que Julien aceitasse um trabalho de criado na nova família, a seguir deste filho viriam outros, e ambos estavam tão impressionados pela forma como Julien se lhes tinha afeiçoado, e ele bem percebia o carinho que nutria pela pequena Pancrácia. Julien deixava-o falar, ouvia tudo com a cara de paisagem que todos os escravos aprendem a fazer e que muito agrada aos brancos. E não lhe disse nada. Não lhe contou que sabia desde o início da gravidez de Emina, não lhe contou sequer que ele era a única pessoa a quem Emina acedera a fazer confidências. Nem lhe contou as noites em que ela, sozinha no escuro, ouvia a maçaneta a rodar, e já meio perdida no sono se sobressaltava, pensava que era bicho, ladrão ou outra danação, e muito se animava quando reconhecia o pai. Que lhe fazia tantos carinhos, que a achava bonita e lhe alisava o cabelo, dizendo palavras mansas ao seu ouvido. E ela lhe pedia para ele ficar só mais um pouquinho, que a mãe sempre lhe recusara um afago, nem uma festa, olhava para ela com olhos de reparar, nas feições que não se tornavam mais atraentes, na cor da pele amarelada, no porte encolhido e tímido, metida para dentro, e sempre fazia um esgar de desagrado, como é que ela sempre tão cobiçada fora ter a filha mais desengraçada que não ficava bem a seu lado, nem nos chás das amigas nem nos salões? E o pai salvava-a deste desgosto, desta malquerença, com ele sentia-se bonita todas as noites, apreciada a cada gesto, ele nunca mostrava vergonha ou embaraço dela. E apertava-a com o corpo todo. Julien também não contou a Nunzio que o pai de Emina vinha às noites, às escondidas, quando toda a casa adormecia, e ela esperava ansiosa que a maçaneta rodasse, e sentia as suas passadas hesitantes pela casa, às vezes paravam à frente da porta do seu quarto e ficavam, indecisas, muito tempo antes de entrar, ouvia-lhe a respiração do outro lado e o seu coração batia de expectativa, e, quando a maçaneta não rodava, quando as passadas não atravessavam a ombreira, desfazia-se em infelicidade, sentia-se repudiada também pelo pai, feia e desengraçada outra vez, e no dia seguinte a mãe repreendia-a por estar olheirenta e mal-encarada. Mas, quando o pai vinha, também no dia seguinte a mãe a repreendia por estar anémica e sempre ensonada. Só a ama do menino sabia destes encontros furtivos, muitas vezes ia buscá-lo adormecido e bêbado à cama da filha, e Emina zangava-se com ela, zaragatas mudas, querelas de besouro, por lhe levar o pai, viciara-se naquele cheiro a cachaça, era cheiro do amor que o pai lhe tinha, mais forte do que a dor, o ardor, o pudor. Por isso andavam as duas desavindas pela casa, a ama sempre a lançar-lhe olhares censuradores porque sabia, Emina a ruminar a sua raiva, a ser implicativa e desagradável porque sabia que a ama sabia. E lhe subtraía o único ser que lhe dava atenção. E nisto aparecia Teresa, a mandar, a criticar, a averiguar, a sua atenção virada para minudências, envolvida em mil contendas, a postura de Emina, os vestidos que nunca lhe caíam bem e a culpa não era das costureiras, a sua total falta de vocação para os bordados, para o piano e para o francês em que tanto investira com aquele professor afectado, que lhe invadia a casa de colónia e exibia sem decoro o desagrado pela deselegância e mau gosto daquela filha, daquela mãe, daquela casa. E a patroa o tempo todo a questionar a ama, se o menino estava ou não a engordar, se ela engolia as mezinhas feitas de cana-de-açúcar e jacuraba para lhe engrossar o leite, e a arreliar-se com aquele riso escancarado da preta que ela não conseguia exactamente decifrar.
Teresa cheia de vanglória das suas ignorâncias.
E depois era o falatório das amigas, o soalho que não estava bem encerado, a criadagem que lhe atacava a despensa, como roedores daninhos, dava conta da falta de nacos no pão, fazia um traço no frasco da xarope de papaia, deixava marcas na saca de farinha de jacuticaba, inspeccionava por dentro as galinhas poedeiras da chácara para garantir que não lhe subtraíam nem um ovo. E clamava contra todos, e mais ainda contra aquele marido, que acordava já com os pés virados para a porta de saída e só chegava pela madrugada, quando ela já dormia. Antes bêbado que se arrastasse,
e lhe deixasse o dinheiro para o governo da casa, que ela bem se arranjaria,
do que lúcido e prepotente que a derrubasse,
e tomasse as rédeas da família.
E quem só dá conta de pequenos males, enche-se tanto deles que acaba por não sobejar espaço para o mal grande.
A ama sentia até desprezo por esta mulher que tanta argúcia mostrava para coisas pequenininhas. Sem cuidar do que toda a gente sabe ou adivinha.
Que o carneiro come sempre perto de onde está amarrado.
E chegou o dia em que Emina menstruou, não teria mais de 12 anos, e a ama encostou o patrão à parede. Ela própria contaria à patroa se aquela infâmia continuasse. Que ela podia ter sido escrava, mulher sempre subjugada e sem conhecimento, mas era crente, sabia que, mais cedo ou mais tarde, a desgraça se abateria sobre aquela família e não quereria estar sob os escombros. Mal sabia ela quão proféticos eram os seus ameaços, os seus temores… Havia de estar em cima dos escombros, sim, lançada junto com eles ao fundo, muito fundo. Afundar-se-ia pelos pecados alheios, mas não iria só. Era a única certeza e consolo a que se conseguiria agarrar. E, uma noite, o pai veio menos bêbado do que o costume, o cheiro a álcool, esse, estava-lhe entranhado nos poros. A maçaneta rodou, mas o pai não se deitou com Emina. Entregou-lhe a chave do quarto. A partir desse momento, se ela quisesse fechar a porta, ele aceitava e compreendia. E foi uma noite de muito choro e muita saliva, e lá foi a ama acudir a acordar o homem adormecido na cama da filha, para o deitar na cama nupcial. Tinha de acudir ao sono do patrão, ao sono do menino e finalmente zelar para que, no meio de tudo isso, Teresa mantivesse o seu intacto. Quantas vezes, sentia ela rumores e chamava pelo marido, e a ama lhe respondia que ele não tinha chegado, ou vinha abrir a porta da rua, para simular uma entrada tardia, e fazia-o caminhar pelo corredor para sossegar Teresa, que adormecia a tartamudear insultos contra aquele marido inútil e ausente. Sentia o linho fino dos lençóis, as almofadas de penugem, e reconfortava-se por seus pais lhe terem segurado tão pródigo partido. Já com Emina se desconsolava. Como iria uma criatura tão insípida e baça algum dia arranjar um marido em condições?… Mas para ela não havia males sem solução, qualquer coisa se arranjaria, entre as aulas de francês e os vestidos de modelos importados… Amanhã logo se via,
e era da maneira que dormia melhor.
Emina guardou a chave debaixo do colchão, mas nunca a rodou na fechadura. E a maçaneta havia de girar muitas e muitas vezes, debaixo da fúria muda da ama, que ameaçava contar tudo, fazer um escândalo, falar com o padre e com as vizinhas, e mais intimações ferozes que ela própria sabia que nunca iria cumprir. Quando o inevitável sucedeu,
sucede sempre, na vida e nas histórias irreais,
a ama não se compadeceu do martírio daqueles dois condenados, o pai com uma repulsa da filha, dos seus seios, outrora tenros de menina, e agora duros e embotados, quase obscenos, a barriga empinada parecia apontar a sua culpa, e ia afogar as mágoas,
a sua repugnância,
noutras cachaças e noutras mulheres. E foi aí que Emina se estatelou no chão, não com aparato ou estrondo, aconteceu sem alarde, tal como a folha que se desprende e vai vogando, vogando, ainda com esperança de que o vento a sustente durante uns instantes, depois, sempre em ritmo descendente, até não mais se levantar do chão e ficar aí apodrecida, roída por vermes, sorvida a sua seiva, em todas as suas nervuras, até estalar de secura debaixo do pé de quem passa. Porque a ama não lhe jogou a mão, cansada que estava de a avisar, e com a mãe Emina não podia contar.
Com o pai, que nunca mais rodou a maçaneta, que não conseguia sequer sentir a presença da filha na mesma divisão da casa, vinham-lhe náuseas, um nojo irreprimível, Emina sempre manteve uma dolorosa e ressentida lealdade. Nunca o denunciou, mesmo quando a mãe a espancava, a supliciava com o cinto de arames à frente do marido, sem que este metesse um dedo para a deter. Pelo contrário, o pai esgueirava-se assim que podia, e foi com um enorme alívio, e uma diligência que até espantou Teresa pela prontidão, com que ele preparou, quase de um dia para o outro, a partida das duas, mais o filhinho e a ama, e a conveniência de não fazer perguntas nem interrogações, aceitando delas sem mais os propósitos súbitos da viagem num navio negreiro clandestino da sua frota. Talvez até com a secreta esperança de que fosse tudo por água abaixo, aquela carga purulenta de escravos, a ama abelhuda, aquela mulher adunca de quem se desgostara logo no dia a seguir ao casamento, a filha com seu monstro dentro, aquele segredo medonho, e ainda aquele empregado capitão, inglês empertigado, que desprezava os brasileiros e seu tráfico da liberdade e suor alheios, apesar de fazer fortuna à conta deles.
Nada disto Julien contou a Nunzio. Nem que era ao pai que Emina rabiscava, febril, súplicas de amor, nos papéis que lançava à água no navio, ou com penas de gaivota, na areia molhada, até a espuma das ondas apagar tudo.
Nem lhe contou porque tivera aquele gesto súbito e inusitado quando a menina nascera, ainda de cordão amarrado, de lhe contar os dedos dos pés e das mãos, a ver se estavam separados, e de lhe enfiar o dedo para verificar o céu-da-boca. Só então sugara Julien os líquidos presos no nariz da menina e assim, desimpedida, a fizera chorar. Sabia que, quando os sangues já previamente misturados se voltavam a misturar, embaralhava-se também o arbítrio da natureza, e as crianças nasciam com defeito.
Também, por sua vez, não lhe contou Nunzio que fora ele quem salvara Emina e Pancrácia, desbloqueara o parto quando já tudo lhes parecia perdido ao retirar o rosário, que estrangulava o útero e não deixava a bebé passar. Queria encontrar a altura propícia para o contar a Emina, e pedi-la em casamento na mesma ocasião. Teria de reunir a mãe e o padre para formalizar o noivado, ali mesmo naquela praia. E continuava a não contar a Julien, mas retinha na sua cabeça, a ideia de que todas as histórias do mundo avançam, de facto, em espiral, e a redenção que perdera ao não tirar o cordão de enforcado à cadela Anastácia viera ganhá-la aqui, quando cumprira o acto que tanto lhe carcomia a consciência. As contas acertavam-se agora, são caminhos circulares, sobretudo conduzem sempre ao mesmo lugar.
Nunzio tagarelava insignificâncias e Julien consentia. Imaginava-se quando o pesadelo do naufrágio terminasse, porque, explicava-lhe Nunzio, o naufrágio ainda estava em curso, a tragédia ainda só ia no adro, mas, quando se vissem a salvo, ele tomaria conta de todos.
Julien continuava a ouvi-lo falar e continuava a não lhe contar. Que jamais voltaria a albergar-se dentro de pele largada de cobra. Também não lhe contou da abjecção que sentia pelas famílias de brancos, sacos de jararacas malévolas, tóxicos lares onde vira acontecer atrocidades cruéis, bem piores do que nas senzalas. Porque, pensava, os brancos não magoavam apenas aqueles que eram da mesma cor, mas aqueles que eram do mesmo sangue, da mesma família. Também não lhe contou da repulsa que sentia por brancos,
Emina era a excepção,
que ele iria, se tudo corresse bem, resgatar dessa escória de gente selvagem, de hábitos crus e capazes até de se comerem uns aos outros. Não, não lhe ia contar o nojo que sentia dos brancos e de toda a pestilência que desde pequeno os vira fazendo. Às vezes até atentando contra si próprios, sem prestar contas ao Criador. Não lhe contou dos anos de escravatura num engenho de açúcar. Não lhe contou, porque não se lembrava, da travessia que fizera, primeiro através da savana, de colo em colo, numa coluna que deixava atrás de si rastros de sangue e muita perplexidade, atados os escravos uns aos outros, com gargantilhas de ferro no pescoço, trem macabro, e da outra travessia por barco, em cima de corpos já mortos. Também não lhe contou da fome, da desnutrição que era tanta que ele e os outros meninos lambiam o barro das paredes no instinto de buscar o cálcio que o seu corpo exigia e eram castigados por isso. Da dúzia de meninos pretos que andavam lá pelo engenho, a fugir das vergastadas, a comer dos restos, a capinar no jardim da casa grande, sobraram três, os outros morreram de cólera, em dois dias, numa papa de diarreias. A velha senhora achou muita graça aos três sobreviventes, como sofria de melancolia trouxe-os para junto de si, na cozinha engordavam-nos, davam-lhe dormida nos cantos, acarinhados pelas criadas. Talvez tenha sido a fase mais feliz destes três meninos órfãos, tão pequenos e tão sabidos da ciência de sobreviver. Corriam os três pela casa, desabitada de crianças, que os filhos da família, já crescidos, tinham partido para estudar na cidade, faziam tropelias, e a senhora baptizou-os com os nomes dos heróis dos romances franceses que lia: Julien, Sébastien e Aurélien. O dono da fazenda, sempre que chegava da cidade, de seis em seis meses, não gostava de ver aqueles moços ociosos, já de olhar insolente e sem temor, queria-os dali para fora, mas a mulher desatava em prantos e recriminações, que era a única alegria da vida dela, para ali naquela terra de selvagens, esquecida de filhos e marido, porque é que ele a castigava, retirando-lhe tudo o que lhe dava prazer, não lhe bastava a humilhação de botar casa para outra mulher, não?, e aparecer só para cumprir a obrigação duas vezes por ano, colocar em ordem as contas da fazenda? E o homem, já com ensejos de se ir no dia seguinte, lá consentia na permanência daqueles três, não sem antes lhes dar uns bons pontapés de raiva, sempre que a mulher se retirava ou se ocultava na capelinha da casa, em lamentações. Era o que mais irritava o dono da fazenda, os moços não ganiam de dor como os outros, não baixavam os olhos, não se acocoravam, não protegiam a cara das suas botas esporeadas. A forma de o enfrentar – e de o enervar ainda mais – consistia em permanecerem passivos e manterem, assim, alguma altivez. O dono da fazenda mandava refazer as malas ainda mais depressa, com ânsias de abandonar a fazenda, não eram só os nervos da mulher que o punham fora de si. Os três meninos negros davam-lhe uma sensação de desconforto, medo, até. Como dava medo, dantes, a toda a família, na senzala, noite escurecida, a batucada. E lhes parecia que a noite toda conspirava contra eles, que a qualquer momento rebentava a ventania, levantavam-se areias, derrubavam-se as árvores por cima dos telhados, saíam em estardalhaço os bandos de araras, voava rente a morcegada, rugiam as onças no mato e as cobras deslizavam por baixo das portas. A mulher e os meninos gelavam, o marido fazia que não tinha os pêlos por baixo da roupa todos arrepiados, mandava o capataz estalar o chicote para ver se se conseguia dormir em paz naquela casa…
Que a superioridade numérica é esmagadora.
E debaixo dos dedos do patriarca da família dobravam-se os talheres às refeições. Havia qualquer coisa que ele precisava de esmagar, e os dentes iam ficando oscilantes de estarem sempre os maxilares apertados. E a tensão era tal que acordava quase todas as noites a sufocar, com uma tarântula que descia da parede da cabeceira da cama e vinha instalar-se na sua garganta a apertar-lhe lentamente a glote com as suas patas, como dedos de ferro.
Luvas de ferro da armadura medieval.
Era a mulher quem o despertava, e massajava-lhe o pescoço arquejante com colónia, garantindo-lhe, carinhosa, como se fala a um menino, que não estava ali nenhuma viúva negra, a aranha que se aproveita do cadáver do amante para repor a energia gasta na cópula. Foi a conselho médico para a cidade de Diamantina, onde tinha familiares, numa casa de altitude, banhada pelo rio Jequitinhonha. Abriu filial, montou negócio de escritório e, a cada viagem à fazenda, ia trazendo um filho de ao pé da esposa, para um lugar mais aliviado da pretalhada. A mulher sempre se recusou a abandonar a casa de família, e a fazenda no meio da mata que, a tanto custo, desbravaram.
Mas, enquanto estivessem os escravos vergados aos castigos e ao medo, podiam folgar os patrões, mesmo tendo trezentos maxilares rangendo de raiva contra eles. E muita batucada pela noite fora. Julien, Aurélien e Sébastien formavam uma tríade indomável
e inexpugnável.
Agiam em bloco. Aurélien era o mais ardiloso, conspirava, manipulava, usava da astúcia para conceber os planos, as partidas, os assaltos às roças, à cozinha, as ciladas às meninas e, para congeminar as fugas, as retiradas, abrindo caminho ao retrocesso. E todas as manhas e malícias para obter o perdão da senhora. Era o seu preferido. Ela desvanecia-se com os seus olhos de ciganinho preto e dissimulado.
Julien e Sébastien acatavam o programa de cada dia, que havia de ter muito risco e muito gozo, e seguiam Aurélien, cheios de sedução e da exaltação do poder.
Protegiam-se mutuamente, dominavam os outros criados, influenciavam a patroa, faziam-se de sonsos, cínicos, quebravam xícaras de propósito só para testarem aquela indulgência maternal, roçavam as suas saias, chorosos, e ela apiedava-se, transbordante da ternura que não tinha por quem distribuir a não ser por aqueles pobres incréus, Julien até as marcas tribais trazia na cara,
Deus lhes valesse.
E mandou vir um padre para lhes dar catequese, mas eles trocavam-lhe as voltas, o catequista acabou saindo a correr lá de casa, com as saias a arder pelas velas do altar, o diabo dos moços,
sanguessugas pretas e insidiosas,
enchiam o ouvido da sua protectora de mentiras, de queixumes, cheios de manhas e falsidades, domavam o seu nervo já de si amolecido, e não tardou tornaram-se os donos do império. Julien, Aurélien e Sébastien dominavam no seu castelo, dentro da casa grande mandavam, impunham castigos aos outros escravos, praticavam crueldades sem remorsos, escorraçavam quem lhes fazia frente, escolhiam as escravinhas mais bonitas, as mães vinham rogar que lhas devolvessem, e eles faziam pouco, exigiam resgate a quem apenas podia apresentar uma palma vazia, delinquentes dentro de um palácio, crueldade infantil de rédea solta e com poder, fazendo-se de meninos dóceis e submissos na presença da senhora, escondiam-lhe os gatos para depois os irem entregar e gozar das recompensas, e ela, reconhecida, descarregava neles todas as suas carências. Mantinham-se discretos sempre que o patrão vinha a casa, mas assim que ele partia, sempre apressado, de desconforto e desconfiança, a pressentir uma presença que crescia como trepadeira infestante das paredes e lhe deixava os pêlos eriçados como dantes a batucada, os três moços mais do que travessos tomavam novamente os seus postos e engendravam esquemas, comiam até abarrotar, retaliavam, extorquiam, faziam guerras e aliados. E a senhora alheada, sempre com o sentido nos seus afagos, nas suas caras de anjinhos negros.
Enfiada na sua capela, onde se reconfortava com a santa,
Nossa Senhora de Todas as Angústias,
que ganhara de herança de uma tia-avó,
beleza de santa, com vestes nupciais,
uns lindos cabelos, escorridos e negros de escalpe de índia, que ela mesma se encarregava de pentear e olear com unguentos cheirosos, e um vestido cheio de pedraria preciosa. Os seus três meninos não gostavam de lá entrar,
a santa fitava-os e adivinhava-lhes os desaires do dia, pensavam,
e a senhora compreendia e tolerava aos pretinhos o que nunca admitira aos filhos. E eles colhiam com esmero as flores mais extravagantes para colocar no altar, e ela mostrava-se tão grata que se lhe humedeciam os olhos e dava-lhes beijos arrebatados de devoção. Aurélien, o seu preferido, por isso tão acariciado pela mulher, os seus lábios cheios de saliva morna permaneciam mais tempo sobre a sua testa.
Não durou muito este domínio. O patrão quando chegou certa vez, ouvidos cheios das queixas dos feitores e dos fazendeiros vizinhos, trouxe reforços. Os cinco filhos, três rapazes e duas raparigas, e elas logo se agarraram à mãe, como se esta fosse refém daqueles demónios. A mãe ficou perdida, gritou desvairada que não lhe levassem os pretinhos, que a partir daqui não os deixaria sair da copa e da cozinha e dos pátios das traseiras. Que tivessem dó, que ainda eram meninos, a alegria dos seus dias de desterro e solidão. Que fossem para as cavalariças, assentiu, em estado muito lacrimoso, e as pernas a falharem-lhe,
mas para o engenho é que não.
Aurélien e os outros dois já se escapuliam pelo telhado, mas os três filhos fizeram-lhes uma caçada e deram-lhes uma valente coça, de biqueiradas dos sapatos, eles a contorcerem-se no chão, e até o padre veio ajudar nos safanões, que quando o feitor os levou já iam com várias costelas partidas e os lábios tão desfigurados do pânico e dos socos que pareciam bocas de sapos grotescos, soltando sangue e cuspo. Estiraram-nos, aos três, no cepo, amarrados pelos pulsos, esquartejaram-lhes a pele das costas, rasgões em todos os sentidos, até ficarem numa lástima, só não podiam desmaiar e perder a força nas pernas, porque rompiam os tendões dos braços, que não aguentavam suspender tanto tempo o corpo todo. E foi nesses dias no cepo que os três aprenderam a dormir, encaixando a coluna nas ancas. A senhora ouvia o chicote a cortar o ar, o ruído das peles a rasgarem-se, os gritos dos seus meninos, em pele viva da cintura até ao pescoço, e partia-se-lhe o coração, ajoelhada aos pés da santa, que continuava impávida,
no seu eterno sorriso de beatitude.
Impedida de sair pelas filhas, que não a largavam um momento, sempre de roda dela, a chamá-la à razão, o que seria delas, dos seus futuros maridos se soubessem da loucura daquela progenitora, dê-nos amparo, nossa mãe, e a senhora desviava os rostos de falsos apertos das filhas e implorava, antes, às escravas da casa que lhes fossem dar água, tratar das feridas, afastar os insectos, aliviá-los daquele suplício… Elas diziam que sim, mas, por todas as travessuras cruéis, os restantes escravos ripostavam apenas com desprezo e esquecimento.
Em tempos de atrocidade, todos estavam secos de perdão.
E o patrão avisou, só de duas maneiras os rapazes saíam do cepo,
ou por estarem tão apodrecidos e o cheiro da pestilência começar a entrar pela janela,
ou a mulher parava com aquele pranto, mostrava alguma decência, tento naquela cabeça perdida, punha-se no lugar e deixava de envergonhar a família. As filhas lastimavam-se,
ai se os noivos sonhassem que a mãe, na fazenda, se prestava a tamanho vexame, onde já se viu tratar pretos como se fossem humanos de verdade? Ia arrastar o nome da família pela lama até várias gerações, em engulhos de vergonha, rastos de desonra que ficariam grudados a elas e aos filhinhos por nascer a vida inteira.
À senhora também foram secando as lágrimas com o correr dos dias. Também ela impunha condições. Que os seus três escravos tivessem tarefa leve no engenho e ração redobrada, que lhe levassem a santa dali para muito longe, que a desiludira nas suas preces,
uma santa a quem votara tanta devoção, tanto incenso, tanta parafina gasta noite e dia para nunca permanecer nas trevas, tanto que abrilhantara o seu cabelo, lavara e passajara suas vestes de noiva de pedraria preciosa, e agora, quando necessitada, respondia-lhe com silêncio e ingratidão.
Se os deuses vendem o que dão, esta não devolvera o troco.
Ah, e também exigia, por último,
e não era pedir demais, um coração descoroçoado como o dela,
que a deixassem ir ao cepo despedir-se dos flagelados.
E os filhos e o marido, maçados de tanto desvario, e já no afogo de se porem dali para fora, que tinham assuntos bem mais civilizados a tratar na Diamantina, consentiram. A senhora aproximou-se dos seus três pretinhos, que eram agora corpos dependurados num fiozinho de vida, de pele da cara encarquilhada de tanto sol, tanta picada, tanta sequidão… Já não eram os seus meninos, eram homens velhos, de olhos opacos, e a senhora, mesmo sem querer, sentiu repulsa daqueles seres imundos, desfigurados, que se mantinham de pernas bambas em cima das próprias fezes, pasto de varejeiras. Com um lencinho tapou o nariz, mas Aurélien quis falar-lhe, tinha uma palavra que não conseguia soltar da garganta, e a senhora, um pouco contrafeita, aproximou-se dele mais do que na realidade desejava. E ele, como sempre, tinha um plano, pensaram os outros dois, que depositavam na sua inteligência a salvação dos três. E Aurélien disse-lhe apenas um nome, o de uma escrava alforriada que tinha uma casa na propriedade, com uma horta e um rancho de filhos mulatos. A senhora não teve de pensar muito para lá chegar. A amante que o marido mantinha, e a que, a cada visita à fazenda, fazia um filho. O plano não saiu direito a Aurélien, porque, em vez de reconquistar a cumplicidade da patroa, só fez fermentar uma raiva que cozinhava havia mais de duas décadas dentro dela. E ali mesmo no terreiro a senhora amaldiçoou o marido, que a sua fama até era repetida por escravo moribundo no tronco. Aurélien teve o destino de todos os escravos delatores, o feitor mandou cortar-lhe as pálpebras, já que era tão coscuvilheiro havia de ficar para sempre de olho escancarado. E lá partiu a família toda, enojada com aquele espectáculo bárbaro, mas com o alívio de missão cumprida, e a carregar a santa embalada,
e esta seria a primeira das suas muitas viagens.
Aurélien apanhou uma febre, uma infecção, diziam que não se salvava, a senhora acolheu-o na cavalariça, para morrer devagarzinho, os outros dois foram parar à senzala, intrusos, com uma má fama que se faziam valas de silêncio,
não muros, porque o silêncio afunda-se debaixo dos pés,
em redor deles quando passavam. Tinham de se revezar e dormir por turnos, para que um protegesse o que ficava à mercê de vinganças, ódios, rancores e feitiçarias.
Era a primeira vez que os três amigos ficavam separados. Gostavam de se pensar irmãos, mas depois eram tão diferentes, cada um com o seu tom de pele, Julien tão escuro e com marcas tribais tatuadas na cara, Sébastien de uma cor dourada, e Aurélien com os olhos muito puxadinhos. Este foi ficando pelas redondezas da senhora, morre não morre, escravo de casa, ela achava-o sempre fraco demais, formoso demais, mesmo dormindo de olhos que não fechariam nunca, para se sujeitar às danações do chicote e à dureza da colheita. Os outros dois andavam, como os adultos, sem expressão no rosto, pareciam todos iguais debaixo do sol escaldante e do vergalho do capataz. Ao fim do dia, engoliam o que lhes davam sem mastigar, o corpo exigia tanto que não os deixava esperar. Emagreceram e iam-se tornando vultos como os outros escravos, a devorar feijão seco e abóbora cozida ao fim do dia. Quase se esqueciam de que tinham nome. A senhora passava por eles e nem os distinguia, mas Aurélien, que se tornara rapaz delicado demais, apegado demais à patroa, reconhecia-os, mesmo ao longe, nos campos, consumidos, e o seu negro viçoso era amarelo, enquanto até os gatos,
os tais a que eles davam sumiço para depois receberem o resgate,
andavam pançudos e luzidios. Intercedeu por eles, com o seus olhos trucidados, a caridosa senhora ordenou ao feitor, um português de maus instintos, que lhes desse a comprometida ração reforçada e trabalho leve, e virou-lhe as costas, num suspiro também caridoso. Ficaram calumbás, a sua função era despejar continuamente água entre os dois rolos cilíndricos de pedra que, puxados por mulas, trucidavam a cana, reduzindo-lhe o atrito, e ajudando na caldeação. Os escravos de veias estouradas e andar cambaio viam com maus olhos aquele privilégio. E aqueles dois rapazes forasteiros a vingarem, as costas já não sujeitas aos estiranço e aos rasgões de cana, a sararem em cicatrizes gordas, enquanto os seus próprios filhos morriam de tétano, de varíola e disenteria. O feitor acirrava os ódios, sabia que dividir para reinar era sábia política, e dava-lhes comida do panelão até se fartarem e comerem com desfastio, enquanto aos outros entregava migalhas e sobras. E, um dia, quando um escravo, ao colocar a cana entre os dois cilindros, deixou prender o dedo, que, esmagado, puxava o braço todo, enrolado,
gritava tanto que as mulas assustadas ainda andavam mais depressa,
foi Sébastien quem cravou um martelo e uma barra para fazer parar os cilindros trituradores, e Julien quem pegou no facão afiadíssimo para separar o braço do corpo. Salvou-se o escravo, que não durou mais de dois dias,
que não quis o feitor investir muitos cuidados num escravo mutilado,
mas, se os outros escravos já transbordavam de ódio, daquela vez ele borbulhava de rancor adiado contra aqueles dois,
já que não podiam cobrar no sistema que os barbarizava, nem no feitor que os vergastava, nem nos cilindros que os trucidavam, tomaram os dois rapazes de ponta.
Escorraçados, já dormiam na senzala das mulheres, tamanha humilhação, elas não se tapavam nem se intimidavam com as suas presenças, simplesmente ignoravam, faziam tudo à sua frente, até parto, de pernas abertas na sua direcção, a verter os líquidos, como se aqueles dois já não existissem,
e quem se lembra de ter pudor de fantasmas?
Mais cedo ou mais tarde, apareceriam afogados no fundo de um poço. Era uma questão de tempo. Julien e Sébastien arranjaram maneira de se escapar entre os guardas da senzala, pés ligeiros, sabiam como calcar o terreno sem serem ouvidos, primeiro a ponta dos dedos, só então o calcanhar, foram até à casa grande, os cães não deram alerta, reconheceram-lhes o cheiro, sabiam como entrar,
assim como Aurélien sabia que a casa estava sendo invadida. Vinham buscá-lo e estavam com urgência, quase o empurrando janela fora,
ela se deixando empurrar sem tomar iniciativa.
E foi este o primeiro choque no reencontro com o amigo, não foi a deformação nos olhos, os balbucios vãos, mas a passividade, o não tomar logo a dianteira, como sempre fazia quando ainda eram os três intactos.
Aurélien era um rapaz mole, tinha agora um olhar de peixe morto, mas morto há tempo demais, sem brilho, sem lágrimas, já não era o mesmo, se queriam fugir teriam de partir sem aquele ser vencido e apático.
Mais tarde, um escravo da mesma fazenda encontrado pelos caminhos contou-lhes que ele vivia amantizado com a velha. Sentiram nojo,
imaginá-lo assim, rojado nas bainhas das suas saias, enquanto os anéis dela se entrosavam na sua carapinha mansa, da mesma forma que fazia com os gatos,
mas nunca souberam se era verdade ou calúnia. Em todo o caso, a raiva escapou-lhes dos dedos e deram sumiço no homem,
mensageiro de más novas.
Passaram por muito, muita fome, muita pancada, muita perseguição, muito capitão-do-mato, caçador de recompensa no encalço. Mantiveram o velho hábito de nunca dormirem os dois ao mesmo tempo, um ficava sempre de atalaia. Depois de tanto penarem, de serem presos, escaparem, chicoteados em cima das cicatrizes,
longas e fartas como vermes debaixo da pele,
de carimbados com ferrete por novos donos pouco escrupulosos sobre as marcas de anteriores proprietários, eles faziam-se de tontos, lentos, lerdos, pirados, retardados, mas mantinham incólume a antiga soberba soterrada na sua bolha imaginária que ninguém conseguiria jamais penetrar.
E a bolha, quando é imaginária, torna-se muito mais difícil de rebentar.
Presos, experimentaram várias grilhetas, vários modelos que ainda levavam restos de carne e cabelos agarrados, em estado de alerta intermitente, feras enjauladas que passam, incessantes, entre as grades para não perderem, a cada passada, a imagem da liberdade.
Foram fugindo, fugindo sempre, escapando por uma unha negra, chupando muita raiz, tragando muito pó das estradas, animando muitos urubus com o seu estado decrépito e deixando muita paisagem para trás. Quando veio a lei do ventre livre, ninguém lhes deu conta, quando veio a abolição, ninguém os informou, trabalhavam numa mina, horas a fio debaixo de terra, vendo outros escravos soterrados pelas detonações e outros tão exaustos que morriam, como quem descansa, nas pausas para sentar. Os patrões continuavam agindo como se estivesse tudo como dantes, muito mau trato e pouco rancho. Uma manhã saíram da senzala e não havia capataz, mas já estavam feitos mulas e cumpriram, em fila silenciosa, o caminho até à mina, desceram e estouraram-se de trabalho, dando falta, porém, dos gritos e dos xingamentos do costume. Quando subiram, já de noite, também não havia água nem comida. Estavam entregues a si próprios.
Caminharam e duvidaram, mas pelo menos puderam voltar a chamar-se pelos seus nomes, Julien e Sébastien, e foi um escravo da cidade que lhes contou da abolição, da república, do Brasil, último país ocidental a acabar com a prática, e deste trabalho para negros libertos. Acender com óleo de baleia a iluminação pública da grande cidade de Salvador da Baía. Se algum candeeiro se apagasse eram castigados mas tinham folga nas noites de luar. Julien e Sébastien trabalharam muito tempo nos despejos das casas dos brancos, sempre no fito de aprenderem o ofício, na esperança de que algum dos negros perdesse o posto. Mas nada, todos eram profissionais cumpridores, e foi preciso que dois empregados,
logo dois,
aparecessem mortos em misteriosas circunstâncias para Julien e Sébastien se tornarem vultos do crepúsculo, só se levantavam ao entardecer e passavam a noite a zelar para que nenhuma lamparina se apagasse. E foi também de noite que lhes apareceu Emerenciana. E era a preta mais feia que tinham visto nas suas vidas. Tudo nela era imperfeição e assimetria, deselegância e desprimor. Os dentes atravancavam-se com descaramento, sempre de fora, o que dava à boca um aspecto de provocação constante. Em cima do lábio uma penugem petulante e umas sobrancelhas inquisitivas que se uniam em cima do nariz. Eles apaixonaram-se por ela sem remédio. Não sabiam ao certo o que ela fazia, de onde vinha, porque mentia descaradamente e parecia divertir-se com isso. Dizia e contradizia-se na mesma frase. E isso era parte do seu encanto. Durante meses, Julien e Sébastien partilharam aquela mulher que os deixava desorientados no serviço, sempre pensando no amanhecer e naquele momento em que a iam encontrar dormindo. E ela admitia, notando o efeito que produzia neles, deixando-os em pendências e ciúmes, quando outro homem se engraçava com a sua falta de graça, porque ela fazia questão de contar, misturando as ocorrências verdadeiras com as inventadas, que é a melhor maneira de contar uma mentira. E confiando os dois amantes à dúvida, num estado de permanente suspeita e tumulto. Às vezes, aparecia-lhes de surpresa, recostada nos postes de electricidade no dobrar da esquina. Outras, eles chegavam ao barraco ao amanhecer e encontravam a cama vazia, ela sumida durante um dia ou uma semana, e reaparecida com os seus dentes insinuantes, boca escancarada numa gargalhada. Eles ameaçavam, conseguiam ser mesmo muito ferozes, e convincentes na represália. Emerenciana não se deixava intimidar, e os seus dentes salientes ainda se tornavam mais desafiadores. Prezava demasiado a sua liberdade. É no que dá a vida inteira em escravidão.
E este equilíbrio durou não mais do que um ano, já nada funcionava, iam transtornados para o trabalho, o patrão reclamava dos erros, se não fossem tão peritos e tão lestos na navalha em rixas de bêbado na noite de Salvador, não toleraria tanto atraso, tanta era a vez em que desapareciam das ruas para ir vigiar Emerenciana. Mas ela igualava-os em manha, superava-os em subtileza e manobrava-os na maliciosa arte da sugestão. Indiciando-os em pistas falsas, dizendo uma coisa, querendo dizer outra, insinuando simplesmente. Um dia veio com a conversa de que estava grávida e não sabia, naturalmente, de qual. Julien e Sébastien caíram num desnorteamento, se ao menos tivessem consigo Aurélien, este saberia decerto arranjar uma solução. E Emerenciana tirava proveito da situação, ora dizia que tinha a certeza de que era de Julien, ora começava a sentir dentro dela que o pai só podia ser Sébastien. Havia de chegar o dia em que, mais cedo ou mais tarde, as asas destes dois haviam de derreter de tanto rondar a Emerenciana,
a mulher sol, lamparina de óleo de baleia.
Estatelados no chão, viram com espanto que se estavam adequando a tudo o que na vida mais desprezavam, a vida de branco, a hipocrisia das famílias, as convenções que unem um homem a uma mulher. Um casamento, tomasse ele a forma que tomasse, teria de ser a dois, nunca a três. E Julien foi o primeiro a aperceber-se de que a alma de Sébastien se estava modificando, quando o castanho dos olhos virou azul. Uma fracção de tempo, apenas um relance, mas aconteceu que Julien viu primeiro nos olhos do outro o que também se passava nos seus. Emerenciana ficou sem nenhum dos dois. O patrão também. Julien nunca mais foi avistado. Deixou de querer Emerenciana, no segundo seguinte a soltar o corpo de Sébastien, que se desprendia dos seus braços, com a navalha espetada no ventre, e agonizava, em sangue e dor. Tentou falar, Julien escutou-lhe as últimas palavras,
o filho é meu,
e deu-lhe o golpe de misericórdia, uma facada por baixo do braço direito que cravou bem fundo para atingir o coração. Saiu da cidade, venceu muitas brigas, perdeu outras tantas, violou muitas mulheres, algumas de marido defunto, outras de homem vivo, forçado a observar, ficou sem rumo, sem chama
nem a das lamparinas de óleo de baleia.
Deixou-se cair, muito conscientemente, no embuste de um capataz que nunca ria, de rosto que parecia talhado com a catana que usara para decepar cana-de-açúcar. Este fazia-se acompanhar de um tosco homenzinho português e arrebanhava negros para trabalharem com remuneração. Não se admirou nem se sobressaltou quando, ao embarcar no navio, voltou a ouvir o som das correntes a correr nas argolas, e o empurraram para o porão, onde estavam olhos de pretos ignorantes, que não sabiam sequer falar e estúpidos que nem animais do mato. Muito mais se assustou, e isso, sim, torturava o seu pensamento naquela agonizante viagem de barco, ao deparar-se no convés com a santa,
Nossa Senhora de Todas as Angústias,
a mesma, a da senhora que lhes dera nome e abrigo, em criança, na fazenda, quando eram três. Ao padre Marcolino desagradou-lhe ver aquele negro com marcas tribais na cara, esbugalhado, a olhar para a sua santa, o criado veio acudir, dar-lhe um empurrão, logo auxiliado pelo capataz com uma estocada na nuca que o fez cambalear e seguir o cortejo dos condenados, com a certeza de que aquela viagem não iria acabar. Pelo menos, não da forma como os brancos,
também estúpidos como animais,
pensavam.
Nem dos encantos da feia Emerenciana, nem do destino infeliz de Aurélien, nem da morte em duas punhaladas de Sébastien, de nada disto Julien falou a Nunzio, que continuava a traçar mil planos, que curiosamente o envolviam a ele nesse enlace idílico, com Emina e a recém-nascida. Na verdade, para Julien, nesse tempo todo, Nunzio somente abria e fechava a boca, como se o som tivesse sido suprimido, a ensaiar expressões de felicidade futura. E Julien, tão enojado de ingenuidades, cansado de saber que as histórias a três nunca tinham final feliz.
Sobretudo teve o cuidado de calar tudo, mesmo tudo, o que dizia respeito à santa. Nem a Emina contou. Se os outros soubessem que aquele demónio de madeira e vestes nupciais o perseguira, desde a fazenda até ao navio, e agora ali naquela praia, já careca e desmembrado,
a santa que continuava de olhos postos nele, mesmo quando pegava no sono.
O que mais lhe custava, enquanto dormia, era não ter ali o amigo a zelar por ele. Passou a fazer o mesmo por Emina, enquanto ela sonhava nos seus braços, ele de atalaia, com os seus pensamentos e a santa que nunca dormia,
confirmando o que sempre repetia o homenzinho,
os deuses não dormem, nós é que os sonhamos,
que afinal era mulher,
queria ele lá saber, gente esquisita estes brancos, mas não o apanhariam nunca desprevenido,
e ao longo do dia dormia aos bocados, no cimo das rochas, enquanto o peixe não picava, na gruta sentado, mesmo de pé, era capaz de encaixar a coluna nas ancas e cochilar, memórias do cepo, que o corpo não esquece.