Reflexão
No dealbar do século xxi, muitos seres humanos têm uma vida bastante preenchida e, por vezes, muito agitada. Desde a preocupação do cumprimento dos afazeres profissionais, passando pelas tarefas de envolvimento familiar, até ao tempo de conexão com os órgãos de comunicação social.
Nesta época de superestimulação, de surpresas múltiplas e do chamado stress torna-se algo difícil viver serenamente, escolhendo o caminho e progredindo em consonância com os nossos mais elevados interesses. Os acontecimentos de que tomamos conhecimento sucedem-se a um ritmo acelerado, tornando-nos pobres em pensamento reflexivo.
Por vezes, o exercício da reflexão exige um grande esforço, cuidados delicados e uma forte persistência, que se traduzem num treino apropriado. Parece não ser fulcral seguir este ou aquele método; mais importará cada um descobrir a sua própria maneira de melhor refletir. E, depois, usá-la.
Importa reservarmos algum tempo para nós, analisando aquilo que nos diz respeito, o que está mais próximo e tudo o resto. Pensando em como seria mais bonito que as coisas acontecessem. Refletindo sobre o que precisamos para isso. Determinando como devemos proceder para conseguirmos a real satisfação interior.
Na autorreflexão não faz falta a crítica a si mesmo e, muito menos, ao outro. A análise serena permite-nos a lucidez necessária ao aperfeiçoamento e a convicção de que não nos cabe julgar os outros, mas procurar oferecer-lhes um bom exemplo e o nosso apoio. Não é, ou não deve ser, um caminho de desunião, mas de harmoniosa integração, de verdadeira unidade no Todo, o que nunca se consegue impondo soluções, mas conquistando com inteligência e com coerência.
E essa coerência implica uma prévia pacificação interior pelo gosto do encontro consigo mesmo, ao descortinar todo o potencial disponível em si e ao pô-lo ao seu serviço, concentrando-se no que verdadeiramente importa. Ao permitir que a vida na realidade aconteça em si e por si.
O caminho da reflexão não obriga a ignorar o mundo tecnicista que nos envolve. Pelo contrário, permite-nos utilizar os objetos técnicos e a informação, enquanto úteis, não consentindo que nos absorvam, confundam e desgastem. Podemos utilizá-los e permanecer ao mesmo tempo livres, desligando-nos deles quando assim entendemos, como algo que não interessa àquilo que temos de mais íntimo e de mais próprio.
A serenidade para com tudo e para com todos, num verdadeiro espírito de abertura e de tolerância, mas também de responsabilidade e de solidariedade, brota de um pensamento reflexivo e determinado. A reflexão, numa saudável utilização do livre-arbítrio, permite ao ser humano o inebriante prazer de fusão progressiva com a Harmonia Universal.
Assim podemos, com satisfação, descontrair-nos, recuperando energia. Assim podemos procurar a inspiração para nos mantermos no caminho mais apropriado. Assim podemos analisar com alguma frieza o que temos feito, como será melhor fazer e como consegui-lo. Assim podemos altear o nosso pensamento, religando-nos ao que é superior.
O exercício de reflexão, quando bem conduzido, parece potenciar as nossas capacidades, tornando-nos mais conscientes e, por isso, mais responsáveis, mais eficazes e, ao mesmo tempo, mais pacientes, mais tolerantes e mais solidários. Mesmo quando profundamente envolvidos nas nossas tarefas profissionais, com a agenda sobrecarregada, parece apropriado retirarmos alguns minutos para a autorreflexão.
Depois poderá tornar-se um hábito. Cada um pode escolher uma hora do dia para — durante cinco, dez ou quinze minutos — se recolher numa higienização mental tão ou mais salutar do que a higienização física. Mas pode preferir fazê-lo semanalmente durante uma ou duas horas, ou acumular os dois exercícios. Sem esquecer a possibilidade de aproveitar o período de férias para uma revisão mais geral, um reenquadramento mais profundo, uma redefinição de estratégias ou mesmo de objetivos.
A solidão, a quietude e o silêncio desses momentos não significam inação ou inércia. Pelo contrário, o estado de calma, de paz consigo mesmo e com o Universo pode ser profundamente dinâmico e poderoso. Provavelmente, tanto mais poderoso quanto maior for a paz interior, a simplicidade, o desinteresse, o prazer de ser útil, o amor (Daïshi, 1995; Descamps, 1997; Eckartshausen, 2003; Ramacharaca, s. d.).
A crença é completamente desnecessária, tal como os ideais. Crenças e ideais dissipam a energia que é necessária para perceber e revelar os factos, aquilo que é. Crenças e ideais são meios de se fugir aos factos e, nessa fuga, o sofrimento é infindável. O findar do sofrimento vem com a compreensão dos factos, momento a momento. Não há nenhum sistema ou método que dê essa compreensão; só uma atenção profunda aos factos a conseguirá. Meditar de acordo com um sistema é evitar os factos, que são aquilo que somos. Compreendermo-nos a nós mesmos, e compreender a constante mudança dos factos que nos dizem respeito, é de longe mais importante do que meditar tendo em vista encontrar deus ou ter visões, sensações ou outras formas de entretenimento.
Este extrato do livro Meditações, do pensador indiano Juddu Krishnamurti, dá que pensar.
O ser humano que se analisa, que procura um melhor conhecimento de si e da realidade à sua volta vai criando o hábito de se libertar de preconceitos e tabus, para procurar perscrutar a Sabedoria Universal. Ciente de que a Sabedoria Universal existe, é apenas preciso procurar sintonizar com ela, através da pureza dos pensamentos, da moderação das palavras, da verticalidade das atitudes e de uma postura em harmonia com a Natureza.
Aquele que se liberta desenvolve crescentemente em si um sentido de utilidade. Primeiro para si mesmo. Depois para os seus familiares e amigos. Também para os seus colegas, vizinhos e concidadãos. Para toda a Humanidade. E, finalmente, para todas as partículas do Universo.
Pode deixar de ser uma pessoa de fé, evoluindo para um ser com uma enorme convicção. Pode deixar de alimentar ideais ilusórios, assumindo o pulsar da sua própria força interior, procurando analisar serenamente os factos e atuar em sintonia com as Leis Universais.
Pode deixar de procurar que os outros lhe expliquem a vida ou lhe indiquem o caminho, para passar ele mesmo a procurar as suas interpretações e o seu caminho, sem, contudo, menosprezar as experiências, as convicções e as explicações dos outros.
Krishnamurti publicou diversos livros, sempre incitando os homens a orientarem a sua vida para a livre adesão à verdade e ao bem. Considerado por muitos um sábio ou um mestre espiritual, recusou sempre ser olhado como uma autoridade, afirmando que, espiritualmente, «cada um é, para si mesmo, o mestre e o discípulo».