Vale a pena

No decorrer de uma existência, há momentos profundamente marcantes, que nos levam a transformar a orientação que damos à nossa vida. Acontecimentos por vezes inesperados, outros nem tanto, mas que nos fazem sorver um significativo conhecimento, parecendo alterar qualitativamente a nossa estrutura psicofisiológica e impelir­-nos a mais altos voos.

Um acidente acontecido com um familiar ou connosco mesmo, a leitura de um livro, ou apenas uma frase que uma pessoa nos dirige. Um encontro com alguém ou alguma coisa que nos marca. Embora em certos casos tenhamos a sensação de que já conhecíamos esse alguém de outros tempos, ou que já sabíamos o que agora parece apenas ser­-nos relembrado, mas nem por isso menos marcante.

Quando vivemos essas situações, ficamos física e mentalmente abalados, disponíveis para outra vibração, como quem adquire outro nível de consciência de si e do Universo. Com mais ou menos deslumbramento, parecemos descobrir­-nos e despertamos para outros níveis de realidade.

Temos a sensação que tudo já era, que tudo lá estava. Apenas nós não o percebíamos, não tínhamos lá chegado; estávamos com a nossa atenção concentrada noutras coisas, que pareciam ofuscar o que descobrimos agora. Como se não quiséssemos ver o visível, ou perceber o óbvio.

São momentos de uma extraordinária beleza não por o Universo se modificar, mas por termos feito o percurso necessário para lá chegar, por termos conquistado o direito a ir mais além, por termos sido capazes de nos abrir à mudança, reconhecendo as nossas limitações e a nossa ignorância. Beleza que está em nós próprios, na nossa progressão, no nosso reencontro com o saber que vem de dentro e de fora, que nos interpenetra, como a todo o resto.

De repente temos como que uma certeza inabalável. Não nos importa se está nos livros. Não nos interessa se nos foi soprada ou intuída. Sentimo­-nos sintonizados com a realidade; com outros níveis da realidade. Estamos mais maduros, porventura (e por ventura) mais evoluídos. Sentimo­-nos bem e motivados para continuar a crescer. Com o discernimento necessário para fazermos o nosso caminho. Sempre igual e sempre diferente de todos os outros caminhos.

Caminho de experimentação, de realização, de descoberta, de integração. Caminho de pequenas, mas fulgurantes, iluminações. Caminho individual, mas profundamente interconetado com tudo e com todos. Caminho de aprendizado, mas também de mestria crescente. Caminho que parece aproximar­-nos do Todo, tanto quanto nos sentimos uma sua partícula, tanto quanto sentimos o Todo em nós próprios.

A descoberta de nós próprios. O conhecermo­-nos a nós mesmos. Num crescendo de humildade, de despojamento, de participação verdadeiramente integrada. O despertar para a realidade, para o que é tão simples como o que é.

Percebemos que o nosso caminho é para ser percorrido por nós, à custa do nosso esforço. Sem proteções políticas, sem benefícios de fé, sem soluções miraculosas, porque tudo isso iria contra a justiça universal.

Cultivamos o agregado familiar, os valores da amizade e da solidariedade, a capacidade de realização em grupo; mas assumindo de forma responsável a condução do nosso trajeto, não ficando à espera que os outros façam o que nos cabe fazer.

Sentimos necessidade de nos aperfeiçoarmos, de nos corrigirmos, de sermos cada vez melhores, conscientes de que para isso precisamos de desenvolver um trabalho construtivo. Sentimos necessidade de caminhar no sentido do conhecimento mais completo das coisas, da Sabedoria Universal.

Assumindo a verdade, cai a necessidade de ocultar sentimentos, expressando­-se livremente a alma por pensamentos, por palavras e por atos. Assumindo o sentido de Unidade Universal, cai o egoísmo e a perspetiva materialista e imediatista, sobressaindo a satisfação de partilhar honestamente, na busca de reais benefícios para o próprio, para os outros e para o Todo.

Parece não serem necessárias muitas palavras. A transparência dos nossos pensamentos é captada pelos outros e nós sentimos facilmente as características do ambiente que nos envolve e o sentido da vontade dos que nos rodeiam.

Aprendemos a observar na totalidade, lendo nas entrelinhas e percebendo o que realmente funciona em nosso proveito, dos outros e do Todo, ou seja, mantendo o respeito pela Harmonia Universal. Noções que transcendem as de pecado e de certo e errado, que, afinal, não fazem falta.

Desse modo, não faz sentido danificar ou destruir o que quer que seja, mas apenas construir. Aprendemos a desenvolver uma relação de mútua dependência com o ambiente, cientes de que a cada causa corresponde um efeito e de que cada efeito tem a sua causa. Conflituar ou guerrear deixa de ser opção.

Torna­-se impensável fumar carcinógenos e beber líquidos que entorpecem o funcionamento do nosso sistema nervoso. Não faz mais sentido ingerir cadáveres de animais. Evidencia­-se a vantagem da vida em contacto com a Natureza, sintonizando­-se com as suas leis, imutáveis, que tudo abrangem.

A simplicidade brota naturalmente daquele que deixa de se preocupar com o que parece, para ser. Desde o comportamento até aos agasalhos, seja na roupa, seja na habitação.

A educação transforma­-se num efetivo apoio construtivo dos mais experientes — pais, avós e educadores profissionais —, sempre realizado na base do exemplo. Porque não pode resultar ensinar algo, praticando o oposto.

E, como a educação de um povo se faz também pelo que uns comunicam aos outros, a comunicação social passa a fazer­-se pela positiva, atentando no que de valoroso acontece e pondo de parte as imagens dos comportamentos a evitar, em consciência, com honestidade, responsavelmente. Não por ser proibido, mas por livre opção dos espetadores e dos comunicadores.

As atividades profissionais são realizadas com alegria e empenhamento, em ambientes de sã camaradagem e onde empregadores e empregados procuram reunir as condições necessárias ao bom desempenho de todos. A competência individual e coletiva conquista­-se com naturalidade.

Deixa de ter sentido remunerar excessivamente desportistas profissionais e atores de cinema, enquanto professores e investigadores passam a ser bem pagos. A sociedade reconhece os seus mais valorosos e, entre estes, seleciona os mais aptos para servirem o coletivo no exercício da governação; sendo esta serena, imparcial e eficaz.

Assim, o ser humano contribuirá para a construção de um mundo mais evoluído. Já sem se preocupar porque tantos parecem ter­-se esquecido de o realizar. Mas tendo a certeza de que vale a pena usufruir do inebriante prazer de participação na Harmonia Universal.