Atento e disponível

A construção de um mundo melhor é muitas vezes considerada utopia. A compreensão de que o ser humano tem em si a capacidade de desenvolvimento até à perfeição é facilmente considerada disparate. A perceção da realidade espiritual é amiúde banalizada como uma atitude de fé, cientificamente não demonstrada.

Mas, olhando em volta, identificamos seres, quase sempre simples e discretos, que parecem viver na pureza de importantes parcelas de sabedoria. Não são a maioria — nesta época —, mas estão serenamente no caminho.

Poderão ser considerados idealistas ou mesmo utópicos, poderão não ser levados a sério ou até serem ridicularizados, mas são seres que têm sobretudo o prazer de procurar proporcionar felicidade à sua volta. Descobriram que a felicidade maior não está na sua busca, mas na sua realização, não está em colher, mas em semear, não está em receber, mas em dar.

Até à concretização da utopia, enquanto outros poderão não fazer o que lhes cabe, sentem a possibilidade da enorme satisfação de fazerem a sua parte. E a mais não serão obrigados.

Não lhes parece que a trajetória evolutiva possa restringir­-se ao mundo das formas. O processo criativo inicia­-se com o pensamento. Nada existe que não tenha existido primeiro como simples pensamento. A energia de um qualquer pensamento pode, aliada à energia de concretização, transformar o mundo.

Percebem que aquele que quer mudar o rumo da sua vida deverá começar por mudar as ideias que tem sobre si e sobre o que lhe acontece. Positivando os seus pensamentos e responsabilizando­-se pelo seu percurso, cria condições para descobrir todas as suas capacidades e para se realizar. Deixa de esperar que as coisas aconteçam, mas também deixa de as procurar; fá­-las acontecer.

Compreendem que, na atividade diária, é importante manter uma certa alegria e um moderado otimismo, com o pensamento alteado e sintonizado nos grandes objetivos, evitando distrações com o secundário e, sobretudo, com o negativo, deletério ou destrutivo. Nesse sentido, procuram desenvolver ideias simples, claras e puras, tornando o comportamento coerente e transparente, na defesa dos valores universais, sem titubear em assumir harmoniosamente o justo, o bom e o belo.

Percebendo­-se uma partícula do Todo, o ser humano sente em si o desejo da perfeição e a capacidade de ser tudo. Mas essa realidade está embotada por uma multiplicidade de fatores que quase a tornam irreal ou ilusória. Torna­-se difícil a cada um consciencializar­-se de quem realmente é e optar por realizar tudo o que está ao seu alcance. Mas importa despertar.

A evolução parece, afinal, consistir no processo de contínua ampliação da consciência da integração do ser individual no Todo. Não se trata da conquista da imortalidade, mas da consciência da sua imortalidade.

Este é um caminho de renúncia daquilo que não interessa, o que começa por ser pesado, mas que, com paciência e persistência, se torna, ao fim de algum tempo, impressionantemente leve. Este é um caminho de libertação do acessório — mesmo das muletas que a sociedade nos disponibilizou —, de descoberta — possivelmente cada vez mais maravilhosa — do essencial. Este é um caminho de depuração, de alguma forma solitário, mas, afinal, verdadeiramente gregário, em sintonia progressiva com o Todo.

Mas é também um caminho de tolerância crescente, em que o outro e os outros são respeitados como alunos de um mesmo processo de aperfeiçoamento, e que, portanto, ainda não são perfeitos, porque — coitados — ainda não souberam lá chegar. A perfeição não pode ser um destino imposto, mas é uma conquista lenta e progressiva, para nós e para os outros.

A disciplina interior ou autodisciplina revela uma fase evolutiva posterior à disciplina imposta por terceiros, sendo provavelmente uma via imprescindível para o desenvolvimento interior, ou até mesmo a via única para a libertação de muitas peias entorpecedoras. Ao procurar em si a energia necessária para vencer as dificuldades de percurso, o indivíduo vai descobrindo o enorme potencial dessa energia, não por si, mas pela sua religação ao Todo.

E quanto mais se autodisciplina na busca da Harmonia Universal, procurando servir apropriadamente os seus mais elevados interesses, os outros e, por fim, tudo e todos, mais descobre em si a capacidade de se religar à Energia Universal. A sua força estará então em se sintonizar com a Energia Universal, assumindo­-se como uma sua partícula, com a humildade para abdicar de si em prol do Todo. E o micro funde­-se com o macro.

Apesar de estarmos na Terra, não deixamos o Universo. Apesar das limitações materiais, será possível sermos iguais a nós mesmos, na nossa dimensão universal. E o macro exprimir­-se­-á no micro.

Este é um percurso de renúncia, pelo prazer de servir o Todo. O indivíduo vai­-se habituando a perscrutar o que importa ao Todo, doando­-se como meio consciente de satisfação da Harmonia Universal. Como partícula do Todo, atento e disponível, ele é cada vez menos partícula e cada vez mais Todo.