1 de agosto de 1991, 6h00

ESTA SERIA, PROVAVELMENTE, A ÚLTIMA PAISAGEM.

A derradeira imagem do mundo que o seu coração recordaria; agora, pouco mais importava na sua vida, podia esquecer o passado, ignorar o futuro. Diante daquela imagem poderia morrer, o seu corpo não iria protestar e Deus, se existisse, poderia voltar ao seu sono eterno, apenas interrompido por alguns instantes para assistir a esta morte, à sua morte. Ou ao seu renascimento. Gastara alguns anos de vida a percorrer lugares novos, a conhecer os vários pontos do mundo onde pudesse habitar um dia, mais tarde, e aí pudesse erguer a casa, a sua casa — não era preciso grande trabalho para isso. Um lugar simples bastava, um lugar onde os laços do passado se unissem à passagem do tempo tranquila e sem desperdícios. Mesmo sem glória, até, mesmo sem nome, um nome que viesse a ser relembrado mais tarde por alguém que folheasse um álbum de fotografias de família e perguntasse «quem é?»; iria fazer-se um silêncio, ele sabia, teria de fazer-se um silêncio complicado, «um tio, não conheceste, desapareceu um dia». Tudo é muito simples quando se morre e, em certa medida, ele morrera já. Ninguém sabia dizer, nesse instante, onde ele se encontrava ao certo, em que cidade, em que país, em que hemisfério. Ou, até, se estava em algum lugar — porque não deixara nenhuma indicação, nenhuma suspeita, nenhum recado. Banira cuidadosamente todos os vestígios, todos os sinais que pudessem comprometer esta tranquilidade que agora experimentava, sentado na varanda, aguardando que a luz da manhã se tornasse subitamente quente, como sabia que iria acontecer daí a pouco, até crescer durante todo o resto do dia e deixar a península estreita — diante da baía onde os barcos entravam vindos do Atlântico —, submersa numa nuvem espessa de humidade e de calor, muito calor, tanto que a roupa se colaria ao corpo.

Iria a sua fotografia ficar retida em algum álbum de família, desses que reúnem bisavós, avós, pais, tios, primos, irmãos, noivos, amigos que frequentaram a infância, amigos ao acaso, amigos de instante, amigos eternos? Amigos eternos. Sorriu à ideia porque, um mês antes, em casa, tratara de tudo ou de quase tudo: fizera alguns telefonemas, sim, do género “parto amanhã, Madrid, não sei, férias, Mallorca”, férias fugazes de uma vida já em férias. Férias de verão. Receberiam uma carta quando tivesse passado um mês, aproximadamente, uma carta que esclarecesse o que havia para esclarecer — não uma mensagem que os aliviasse, pelo menos a alguns, desse peso que sabia que talvez viessem a sentir durante algum tempo, mas uma carta que, em poucas linhas, dissesse o que havia para dizer: estou vivo mas não pensem mais nisso; é como se não estivesse. Deixara essa carta entregue aos cuidados de um homem que não divulgaria o segredo da sua origem. Mesmo esse homem era difícil de encontrar e enviaria a carta de um lugar insuspeito, de modo a chegar a Portugal no dia que ele pensara ser o mais adequado. Uma pequena vingança. Mas uma vingança com instruções para ser bem recebida. Trouxera o indispensável para ele próprio compreender que um homem tem uma história, que essa história o persegue para onde quer que vá e que ninguém pode libertar-se dela por vontade própria. Voltaria a isso noutra altura, quando soubesse que tinha chegado a hora de voltar a pensar nisso. Por agora, ele recordava-se, havia o mar à espera.

Nunca conseguiria libertar-se dessa imagem, afinal, apesar de ser um lugar-comum, demasiado comum para que algum dia pudesse ser um momento glorioso da sua biografia. Só muito mais tarde, pensava ele, pude ver como tudo se iria reduzir às primeiras imagens, às primeiras palavras, ao primeiro amor, ao primeiro encontro. Gostaria de contar a história de tudo isto porque sou incapaz de amar e, por isso, há em mim uma certa alegria sem inveja ao ver os amores dos outros e aquilo que deles restou para eu viver. Como se tivessem acabado os grandes amores e as emoções que elevam um homem à altura dos anjos, dos pequenos pássaros que acompanham o recorte da falésia que se via há instantes desta varanda, porque era para lá que eu olhava, coisas que acontecem uma vez na vida durante os poucos minutos de lucidez a que temos acesso.

Gastei muitos dias, pensou ele. Muitos dias correram à minha volta e não vivi intensamente o perigo de eles acabarem repentinamente, acreditei sempre que alguma coisa os prolongava ou subtraía.

Por isso, também, esta seria uma das últimas imagens que poderia levar consigo. Todo este espaço à frente da janela está vazio e silencioso, as escadas para o jardim, que separa a casa, branca, da aldeia que há poucas horas era ainda uma festa (porque assim acontece nas noites de verão, quando a aldeia recebe turistas), foram cuidadosamente limpas ao anoitecer e por elas se desce para o estreito caminho na floresta que irá dar à estrada principal; daí, é um pulo até à aldeia e os olhos dirigir-se-ão finalmente para o porto e, depois, para a marina de pesca que dá para a baía e para o grande mar. Fecharam as portas do bar que funciona junto do único hotel, seriam duas da madrugada, ninguém sai de lá agora. Aproveitaria então a primeira luz deste dia para um mergulho na água fresca (tão fria ainda, ele sabia bem) da baía, que daqui parece azul, limpa, e que aguarda outros corpos que chegarão depois, turistas de ocasião, visitantes habituais aos fins de semana. Depois dos últimos preparativos, de novo em casa, desceria com as malas e iria de táxi até ao aeroporto mais próximo, a cem quilómetros, o avião só partiria às onze horas. Teria de aproveitar esta última imagem da pequena aldeia, da baía que prolonga o mar e a linha fria e cortante de árvores junto à sua água. Respirar a derradeira humidade desta paisagem, as gotas de água na balaustrada da varanda, o derradeiro sabor da manhã, tão suave, os primeiros sons a caminharem na longínqua via de asfalto que vai dar ao outro lado da baía, atravessando um par de outras aldeias, e que se vê daqui como uma serpente negra acompanhando a água dos rios.