1 de agosto de 1991, 6h30

HÁ UMA VISÃO MUITO ESTREITA DO CÉU, SE OLHADO deste lugar. Nele voam os pássaros que acompanham o litoral da península, numa espécie de ritual que nasce com a luz do dia, como se surgissem no horizonte para homenageá-la. «Dá-me atenção, Deus, porque estes são os primeiros momentos da minha vida», disse ele, «os primeiros momentos de toda a vida, os instantes em que as crenças acabaram e o dia se abre, inteiro e cheio de luz, para consumir tudo o que resta de mim. Dá-me atenção porque esta é talvez a minha primeira oração e gostava que a ouvisses, e que tudo voltasse ao que era antes e antes de tudo ter começado em mim, que voltassem as marés e invadissem o deserto, e o molhassem, e refrescassem o rosto dos que têm calor e a boca dos que têm sede, e o dia terminasse sem medo nem súplicas. Não interessa o que os outros pensam, o que eles dizem à nossa volta, o que murmuram quando não estamos diante deles. Agora tudo talvez recomece, tal como na infância a vida recomeçava de vez em quando, quando se decidia que ela devia começar.»

A estrada que desce na direção da pequena baía é a mesma que passa pela aldeia e leva às praias. No dia anterior estivera numa delas e sabia-lhe o nome, a qualidade da areia, e reconhecera cuidadosamente a posição do Sol a cada hora. Digamos que poderia orientar-se pela posição do Sol que lhe servia como uma bússola. Reparara também nos seus vizinhos de praia, que estiveram deitados durante a maior parte da tarde, lendo jornais. Um homem sentado numa cadeira de plástico, propriedade do restaurante que se erguia defronte da praia e albergava turistas disciplinados que desciam para a areia a horas certas, sempre depois do pequeno-almoço. Um casal deitado na areia, ao sol do verão, isso recordaria. A meio da tarde, o rapaz vestiu um fato de mergulho, negro, de borracha, como ele supôs, e foi para a água. A rapariga ficou a vê-lo entrar no mar viu-o a mergulhar, muito ao longe, moldou de novo o seu corpo à areia, parecia ter adormecido, mas de vez em quando mudava de posição, colocando-se de forma a bronzear todo o corpo. Lembrava-se disso agora, que era muito cedo, ainda, o Sol começara há pouco a iluminar toda a baía, vira-a da janela do quarto uma hora atrás. Nem tanto, se se pensar que gastou apenas o tempo de arrumar as malas junto da porta, de tirar o carro do pequeno refúgio nas traseiras da casa e de subir até ao alto da serra onde lhe parecia que a terra acabava diante do mar e da Costa da Morte. Havia uma ilhota à sua direita e fixou-se nela durante alguns instantes, como se quisesse levar parte daquilo que subitamente aprendera a amar. Decidira, portanto, que esta seria a sua casa. Não soube dizer, na altura em que a descobriu, por quanto tempo o seria. Seria pelo tempo que considerasse irremediável.

A idade vale de pouco, sobretudo quando temos consciência dela. A esta hora outros pensariam em coisas semelhantes, ninguém é realmente exceção nas inquietações que nos assaltam como sinais de perigo ao longo de uma estrada pela montanha. Por si, já teria recordações que bastassem; poderia, um dia, se quisesse, escrever um livro sobre as suas recordações, se alguém pensasse que poderia valer a pena. Defendera poucas coisas, mas aquilo que defendera, ao longo da vida, valores, ideias, ou tão-só nomes vagos para valores e ideias, talvez merecessem que os tivesse defendido da maneira como afinal fizera. Quem iria julgá-lo por isso?

Caminhou pela estrada que ia dar ao promontório inclinado sobre o mar. O edifício abandonado do farol, uma construção anódina, lembrava-lhe outros faróis iguais e os naufrágios, os barcos que tinham percorrido aquela costa em busca de refúgio, e também isso era belo porque se tratava apenas de uma recordação. Teria a carta chegado ao seu destino? Escrevera-a à mesa da sala da sua casa, em Portugal, enquanto bebia um último café. Nessa manhã, levou depois o carro para o aeroporto, mas, antes, passara por uma estação de correios e selara o sobrescrito já endereçado. Não era esse sobrescrito que chegaria, no entanto, ao destino que ele escolhera para a sua carta, mas sim um outro que ia dentro daquele que depositara na caixa destinada a receber o correio nacional. E esse outro sobrescrito seria enviado já de fora de Portugal. Mas tudo isso fora há um mês, de facto. Há muito tempo.

Voltou a entrar no carro depois de ter deixado para trás o farol e de apagar o cigarro. Desceu suavemente pela estrada que passava pela aldeia, pela antiga igreja ao lado do cemitério, pelo único hotel e, finalmente, depois de atravessar algumas ruas desertas, chegou à praia, naturalmente solitária àquela hora. Olhou para o relógio: seis e vinte, o primeiro sol, a vida renasce lentamente à volta da baía, o som dos passos na areia confunde-se com o arrastar das folhas das árvores vizinhas da estrada, daqui vê-se a aldeia, inteira, adormecida, o pequeno porto parece dependurado das suas ruas por amarras invisíveis. Lembraria esse brilho das águas do porto, os voos desordenados das gaivotas, seriam gaivotas?, em torno dos barcos. Lembraria também a cor suave da paisagem, que agora acordava. E a cor do céu, não esqueceria a cor do céu. A cor de um céu azul aguardando a hora do calor, a intensidade da luz a meio da manhã, o voo dos pássaros a rondar as ondas. Não esqueceria a cor do céu. Nem o som dos seus passos na areia muito limpa e ainda húmida.

Foi, aliás, esse som que o fez suster subitamente a respiração e interromper a caminhada. Ficou de pé, parado, à escuta do ruído do mar, do voltear das ondas, pequenas e brancas, e apercebeu-se do som dos passos na areia, na mesma areia, embora estivesse parado. Mas não foi o último que ouviu, porque logo de seguida, quando se deu conta desse facto, o de continuar a ouvir o som de passos na areia, como um eco da sua caminhada, lenta e passeante, outro ruído se sobrepôs, embora mal tivesse tido tempo de o escutar inteiramente, ou de lhe prestar atenção. Pareceu-lhe um estampido, qualquer coisa vaga e ridícula, nada mais do que isso. E, depois, uma dor profunda e intensa, uma queimadura a que outras duas se juntaram de seguida nas suas costas, não bem nas suas costas, mas no lado esquerdo do peito, de lado, realmente, porque se virara de repente para verificar a origem de outros passos naquela areia. Viu então alguém atrás de si, dez metros talvez, não teve a certeza, poderiam ter sido vinte até, não prestou a devida atenção porque se dobrou para trás no exato momento em que viu a outra figura atrás de si, empunhando aquilo que poderia bem ser uma pistola. Não teve a certeza, nem teve tempo, nem saberia dizer, naquele momento, se não se esqueceria desses pormenores nos segundos que se seguiriam, quando tombou na areia e viu a cor do céu, e isso sim, não esqueceria, não esqueceria a cor do céu.