21 de agosto de 1991, 23h30

JAIME RAMOS CHEGARA A GIJÓN NO DIA ANTERIOR ao princípio da noite. Uma coincidência feliz fez com que houvesse um voo a transportá-lo de Santiago para Gijón, embora ele preferisse viajar de automóvel. Mas a verdade é que não estava de férias. “Resolva isso rápido, inspetor. Estamos com dias e dias de atraso”, dissera-lhe, diante da necessidade de viajar para tão longe, o diretor.

«Já podia estar.»

«Pois sim.»

«Se é que estas coisas se resolvem, claro.»

«Queria pedir-lhe que não falássemos muito do caso lá fora. Não que me incomode, estas coisas acabam por saber-se e o facto de eu ser amigo dele não tira nada. Mas seria bom que os jornais não soubessem, que nada disto saísse lá para fora.»

«O facto de sermos amigos de determinada pessoa é mais importante que a verdade» respondera ele antes de sair do gabinete a que não gostaria de voltar tão cedo.

A chegada a Gijón é sempre fria, de qualquer modo, quer se faça de avião ou de automóvel, se bem que, por estrada, tivesse a oportunidade de descansar os olhos junto a Ribadeo, às suas varandas sobre o mar (e de almoçar, claro, num restaurante que constituía o último reduto da cozinha de carne na zona), antes de entrar nas Astúrias e de cumprimentar a placa verde e gigantesca que saúda aqueles que seguem pelo Principado dentro, junto à entrada do litoral.

O Hotel Begoña, a meio caminho entre o centro da cidade e as ruas que servem o porto, recebeu-o para um repouso de minutos antes de partir à descoberta de um restaurante onde saciar a fome. Encontrou vários, sobretudo na zona que dá por terminado o passeio público virado para a marina e para o Real Club Náutico de Gijón, na agora atravancada Avenida Cláudio Alvargonzález, decidindo-se hesitantemente por um deles onde havia ainda mesas livres antes da avalancha que se previa para a hora espanhola do jantar. A ementa era pobre, mas era pobre em todos os restaurantes da zona e ele não tinha tempo nem disposição para procurar uma casa que oferecesse mais do que sardinhas fritas, paellas, arrozes, peixes grelhados, caldeiradas de peixes de que desconfiaria só de vê-los, além do sabor agridoce da sidra que se bebia a todas as mesas. Sidra. Os bebedores de sidra serviam-na com cuidado, observando o rígido ritual. Vira na rua, encostados ao muro que subia da avenida para as calçadas íngremes da zona antiga, rapazes servindo-se de sidra, bebendo-a por copos que esvaziavam para a boca, sofregamente. O que sobrava no copo, depois de esgotado o fôlego, era atirado para o chão. O copo passava a outro que repetia o mesmo ritual de pegar na garrafa com a mão direita, apontá-la ao copo, erguê-la finalmente até que o fio de sidra seguisse caindo do gargalo ao copo da altura do ombro, o copo ao nível da cintura. No interior do restaurante o ritual perseguia-se com a mesma intensidade e rigor. Por isso, o chão estava coberto de serradura para absorver os restos de sidra que era vertida descontraidamente dos copos para os mosaicos frios que rodeavam as mesas. A certa altura, o chão dos restaurantes da zona estava por isso coberto de serradura e o odor da sidra crescia até aos limites do insuportável.

Depois do jantar percorreu as ruas interiores da área até dar com a calle María Bandujo, o endereço que Alberico Nuñez lhe fornecera para se encontrar Marta Rodríguez Cano. O primeiro andar mostrava apenas os vidros das janelas e nenhuma luz. Bairro antigo, casas antigas viradas para o mar. Esperou durante uma hora, e depois entrou num táxi que o levou ao hotel, onde adormeceu de imediato. Teve ainda tempo de escutar o ranger acolhedor da cama, mas não mais que isso, nem um sonho o despertou até acordar mais tarde do que seria habitual.

Mas tudo isso fora no dia anterior, porque entretanto regressara à sua cidade. Um avião levou-o, ao princípio da tarde, de Gijón a Vigo e, depois, um outro transportou-o para o Porto, numa viagem quase interminável. Por sorte havia um voo. E teria de haver. Teria de haver porque queria chegar o mais depressa possível à sua casa e ser conquistado por um lugar que fosse seu e que reconhecesse como familiar, familiar nos seus odores, um lugar onde não se bebesse sidra, onde ninguém bebesse sidra nem vertesse o resto dos copos para o chão, e alguém cozinhasse para si ou ele pudesse cozinhar para Rosa e ela protestasse e falasse de calorias, de vitaminas, de dieta de emagrecimento, da necessidade de ele perder algum peso.

Rosa não estava em casa quando chegou, às sete da tarde, mas deixara um bilhete na caixa do correio. “Volto à meia-noite porque vou ao cinema. Quando chegar bato à porta.”

Jaime Ramos aceitou o recado e foi verificar se as plantas na varanda tinham sobrevivido aos recentes dias de calor. Sobreviveram, pensou ele ao ver o vaso de tulipas. Sobreviveram.

Preparou um banho, então. Encheu a banheira com água quente, apesar do calor, porque sentiu necessidade de ser acolhido como num ventre a que ele podia moldar-se, encolhido, sem ninguém ver, sem ninguém suspeitar que um homem precisa desse momento. Despiu-se. Começou por barbear-se. Fê-lo cuidadosamente, levando a lâmina a procurar os dois sentidos, para cima, para baixo, até sentir que a pele se ia descontraindo e adquirindo uma frescura por que ansiava. Trouxe o telefone para a casa de banho e ligou para Filipe Castanheira.

Conseguiu ouvir o som de um aparelho a responder do outro lado do mar, só à segunda tentativa, o que considerou ser um milagre.

«Já cheguei.»

«E então?»

«Estou no banho. Não foi difícil» disse enquanto mergulhava na água já tépida que lhe descontraia os músculos do corpo numa massagem silenciosa, lenta e invisível. «A verdade é que cada um tem o que merece.»

«Foi ela?»

«Ela descobriu que o tipo se queria pirar. Bom, não lho ouviu, mas suspeitou, sabes como é, sexto ou sétimo sentido das mulheres, nunca percebi bem que sentido é que é, mas trata-se de um destes. Ela percebeu a meio do mês que ele se ia embora.»

«Foi ela?»

«Lembras-te das coisas dele? Cadernos, papéis, fotografias, coisas que procuraste em Finisterra? Ela descobriu isso tudo numa mala, pronta a trazer para Portugal. Foi aí que tudo começou, por assim dizer. A família trouxe isso tudo, claro, mas trouxe isso porque já estava embalado e preparado numa mala, dentro do carro. Tiveram uma discussão nessa altura, ele disse que não, que não vinha, mas o outro tipo, Ramón, também suspeitou, porque suspeitou, agora não sei bem porquê. E viu que ele andava ocupado a arrumar muitas coisas. Não percebi bem o grau de familiaridade que eles tinham, o tipo e este Ramón, mas devia ser alguma. Ela queixou-se ao Ramón. Falaram com ele no dia anterior, a bem, diz ela. Muito a bem, segundo me disse. Só no dia seguinte é que, como sabemos, a coisa aconteceu. Foi o Ramón. Ele tinha-lhe prometido o hotel, emprego no hotel, para ele e para a mãe. Gostava muito da mãe.»

«E ela?»

«Ela? Ela estava a ver. Eram dela as pegadas na areia. O terceiro grupo de pegadas. Um negócio a dois. Um dispara e o outro vê. Em querendo, as mulheres fazem o que lhes apetece. Fazem-nos pensar que tinha sido a secreta, que tinham andado a ser enganadas. Somos sempre nós os enganados, no fim de contas. Não se pode confiar em ninguém.»

Só depois de desligar o telefone é que Jaime Ramos teve uma ideia. Correu à cozinha, deixando atrás de si um rasto de água, e regressou trazendo consigo uma garrafa vazia e um copo. Encheu a garrafa com água da torneira, sentando-se na banheira, os pés e as pernas mergulhados na água em que flutuavam pequenas ilhas de espuma. Inclinou a garrafa sobre o copo, verteu um pequeno fio de líquido e foi afastando um do outro até que a garrafa estava à altura do ombro e o copo descia até à cintura. Metade da água caiu na banheira, misturando-se à de seu banho. Tentou de novo. Tentou duas vezes mais e, à quarta, conseguiu que o copo apanhasse toda a água que saía da garrafa. Sentiu-se satisfeito, então, gabando a si próprio a habilidade que tinha observado em Gijón, aos bebedores de sidra.

Tentou de novo, mas já não foi capaz. Poisou os dois objetos no chão da casa de banho, deitou-se mais uma vez na banheira até o corpo ficar totalmente mergulhado em água. Tinha preparado um charuto para este momento. Acendeu-o. Nunca John Wayne fumou um charuto em filme algum, mas esta era uma cena que tinha aprendido em filmes, de certeza. Imitou-a infantilmente. Expirou o fumo e olhou com melancolia para o copo e para a garrafa que tinha trazido para a sua pequena experiência. No fundo, ele sabia, não apreciava sidra, embora tivesse sentido por várias vezes uma vontade estranha de reexaminar o sabor da bebida. Como uma experiência.

Rosa chegaria em breve, tinha-lhe comprado um presente numa loja de Gijón, depois de acompanhar Marta Rodríguez Cano à polícia local, de onde telefonaram para Alberico Nuñez. Um casaco de lã asturiana, da mesma lã, provavelmente, com que os pescadores do Cantábrico enfrentavam o mar em pleno inverno. Rosa comentaria que só iria vesti-lo no inverno, que era cedo para lãs. E ele diria que devemos estar sempre preparados para o inverno.