22 de agosto de 1991, 19h30

«É AÍ, MAS DESDE HÁ DOIS DIAS, PRATICAMENTE, que não sai de casa. A princípio estranhámos bastante, mas sabíamos que havia gente lá dentro porque de noite as luzes estavam acesas. E acesas até tarde. Mas nenhum ruído. O senhor é de família?»

«Sim. De família.»

«Ou será namorado?»

«Não, namorado não.»

«Desde há dois dias que não sai de casa.»

Filipe Castanheira agradeceu as informações e pôs em cima do balcão o dinheiro para pagar a cerveja, lamentando-se do seu egoísmo que o fez entrar no pequeno café e pedir uma Mello Abreu. Hesitou, mas compreendeu que teria de satisfazer a sede que se apoderara dele durante toda a viagem, evitando pensar que também tivera saudades daquela cerveja e do rumor vaguíssimo do líquido quando se verte para o copo.

«Há dois dias que não sai de casa» repetiu a mulher, contando o dinheiro. «Perguntámos se queria alguma coisa, se precisava de alguma coisa. Que não. Que estava tudo bem. Mas não estava, sabemos que não estava porque geralmente é sempre uma festa nessa casa, e ultimamente não. Ainda bem que o senhor é de família. Um primo?»

«Sim. Um primo» mentiu Filipe. «De Ponta Delgada.»

«Pois. De Ponta Delgada. Também chove por lá?»

«Não. Estava céu azul hoje de tarde.»

«Aqui é desde ontem a cair, sempre miudinha, a chuva, sempre a cair e sempre miudinha. Pois desde há dois dias que não sai de casa, vai gostar de o ver.»

Por ele, só se deu conta de que chovia quando, depois de os primeiros passageiros terem descido para o chão escuro da pista, olhara para as cores da colina que, ao fundo do aeroporto, se sobrepõe ao mar e verificara que não se notava o contraste habitual entre o verde e o azul da ilha, mas antes uma continuidade trazida pelas bátegas finas de chuva que lhe caíam na roupa ou lhe molhavam o rosto. De qualquer modo, a chuva era quente e o ar continuava abafado como uma espécie de abóbada que mantinha a temperatura da ilha à maneira de uma estufa, e a protegia de um inimigo invisível e poderoso que não cessava de a incomodar.

Apesar de ser agosto, conseguira facilmente alugar um carro por telefone, de Ponta Delgada. O homem da agência entregou-lhe as chaves, Filipe Castanheira dispensou as explicações e procurou-o no pequeno parque de estacionamento diante do aeroporto. Não trazia bagagem, à exceção de uma mochila que era costume acompanhá-lo quando ia à praia, mesmo em Finisterra, e onde, desta vez, meteu à pressa, em sua casa, algumas peças de roupa mal escolhidas. Com o asfalto molhado fez a viagem com alguma cautela, mas em quinze minutos estava já diante da baía de Porto Pim, deserta apesar da hora, ferida na sua dignidade estival pela chuva miúda que a impedia de se exibir defronte da cidade, de onde mal se distinguia o contorno da mancha negra da ilha do Pico, do outro lado do canal.

Teve de atravessá-la, à cidade, à hora que seria do crepúsculo, se o Sol iluminasse a encosta de Santa Bárbara. Depois, a estrada começou a subir na direção da Ponta da Espalamaca e pôde finalmente ver a Horta, toda a cidade, debruçada para a marina semeada de barcos que daí se assemelhavam apenas a pontos brancos e ondulantes, recolhidas as velas que os coloriam. Uma neblina móvel cobria as colinas dos Cedros, mas Filipe Castanheira conduziu o carro por uma estrada que as contornava e que descia abruptamente para um pequeno vale junto da água do mar. Conhecia aquela água, a densidade azul daquela água em dias de claridade quando, da Espalamaca, eram visíveis as ilhas do Pico, de São Jorge e da Graciosa ao longe, envolta numa bruma permanente e incandescente que lhe lembrava as tardes silenciosas em Santa Cruz, a folhagem discreta das azálias e um sono tranquilo e afastado do mundo, das notícias do mundo.

Um pequeno largo onde estacionou o carro separava a aldeia, minúscula, da praia abandonada à chuva que descia como um manto suave sobre a areia e a escurecia. Foi então que viu o café e decidiu entrar nele para pedir uma cerveja. Uma cerveja fresca e sem preparação do estômago, uma cerveja que o libertasse de um ardor quase febril que se lhe comunicara a todo o corpo, como uma agitação, desde o princípio da tarde, quando telefonara para casa dos pais de Isabel.

«Está fora, noutra ilha.»

Ouviu-se a si próprio a dizer “preciso de falar com ela”. Depois de um silêncio breve, a mãe de Isabel falou então:

«Está no Faial. Mas a casa não tem telefone.»

Filipe conhecia a ilha do Faial, conhecia a casa, uma velha casa de família, na Praia do Almoxarife, junto à Horta, do outro lado da Ponta da Espalamaca.

«O que resta da família está no Faial» dissera um dia Isabel. «Podemos ir lá passar uns dias.»

«Há dois dias que não sai de casa» interrompeu-o então a mulher, novamente, já depois de ter guardado o dinheiro da cerveja.

A porta estava fechada apenas com o trinco mas Filipe bateu. Bateu com suavidade durante alguns minutos sem que ninguém respondesse de dentro. Abriu-a então e entrou por um corredor escurecido e onde a pouca luz chegava já transformada em penumbra. Isabel estava deitada na cama de um quarto ao fundo da casa, dormindo. Olhou-a com alguma pena de não a ter visto antes, antes deste dia e antes desta vida. Deixou o quarto sem fazer ruído e fechou a porta atrás de si, caminhando ao longo do corredor que o levava à cozinha abandonada. Aí, a luz entrava por uma vidraça na parte superior da porta de madeira. Abriu-a, um pequeno quintal recebia a chuva como uma dádiva que absorvera inteiramente até que se começaram a formar alguns lagos junto aos canteiros onde cresciam ervas ao acaso. Havia um limoeiro frondoso, a única árvore no pequeno triângulo murado onde se respirava o odor intenso da chuva incessante, miúda e permanente. Sentou-se então nos degraus que desciam para o quintal, protegidos por um beiral avançado, e acendeu um Além-Mar. Amarei estes cigarros. Livra-me da tentação. Livra-nos da tentação, protege-nos do mal, de todo o mal, dá-nos cigarros como estes e tardes de chuva em pleno verão pelas quais se possa perceber que há uma grandeza conhecida e desconhecida, ao mesmo tempo, em instantes assim, embalados pelo gotejar constante de água sobre água, como a que cai no telhado no tanque de cimento onde se lavava a roupa antigamente. Sentiu então um outro ardor mais próximo como se a respiração de Isabel chegasse até si, caminhando devagar, muito devagar, através do corredor escuro e atravessasse a cozinha, e pensou que ela acordaria, provavelmente, à hora do jantar.

Ergueu-se e vagueou pela cozinha em demanda de ingredientes, abrindo este e aquele armário, esta e aquela gaveta, descobrindo batatas na despensa e um frigorífico abandonado a algumas fatias de presunto numa caixa de plástico, e ovos. Nada mais. O congelador estava vazio.

Ao desalento inicial sobrepôs-se então a imagem de Isabel dormindo no quarto, e procurou as batatas na despensa. Escolheu algumas, lavou-as, descascou-as e escolheu um tacho para as cozer. O fogão funcionava. Acendeu um dos bicos e colocou o recipiente ao lume. Entretanto, bateu os dois ovos que encontrara no frigorífico e cortou em quadrados minúsculos as fatias de presunto. Procurou uma frigideira; encontrou uma, apenas uma, de ferro, negra, e muito larga, onde depositou os quadrados de presunto, que levou ao lume até pressentir o aroma da carne grelhada na sua própria gordura, para onde picou miudamente um dente de alho. Acendeu o forno. Polvilhou o presunto, a que acrescentara manteiga, de farinha, até formar um bolo consistente sobre o qual verteu um fio de leite, diluindo a massa, mexendo sempre. Em breve conseguiu um molho espesso cujo granulado era constituído apenas pelos pedaços de presunto, retirando a frigideira do lume em seguida. As batatas estavam a meio da cozedura e era a altura de escorrer a água. Fê-lo com suavidade, para não ferir o corpo dos tubérculos, deixando-os arrefecer ao ar. Com uma faca, foi então desenhando concavidades nas batatas aproveitando as rodelas superiores. Quando obteve as dez batatas já preparadas, de tamanho médio, introduziu nelas o recheio de presunto, tapando-as com as rodelas que guardara. Depositou-as no tabuleiro de esmalte do próprio forno, mergulhando-as antes, nos ovos batidos. Entregou-as depois ao lento cuidado do calor que as louraria e assaria enquanto ele ia ao quintal em busca de ervas que sobrassem ao abandono a que aquele estava votado. Encontrou salsa e dois pés de hortelã a que roubou as folhas sãs. Na mesma e única frigideira, então, depositou manteiga para derreter, picou outro alho e meia cebola, e permitiu que aloirassem, após o que deixou cair nesse refogado as folhas de hortelã cortadas pelos veios para que o sabor melhor se distribuísse. Quando, daí a pouco, sentiu que estava terminada a função do refogado, desligou o lume. Continuava a chover, chovia mansamente, em breve seria necessário acender as luzes. Em breve. Em breve, mas só depois de retirar as batatas do forno e de as colocar, uma a uma, na frigideira, onde couberam todas, talvez um pouco apertadas. Acendeu o lume do fogão, de novo, tinha visto uma garrafa de rum num dos armários, a bebida preferida de Isabel. Encheu um copo, que verteu em seguida sobre as batatas, que aloirariam depois de absorverem os sucos, e que secariam finalmente com o seu fundo tostado e estaladiço. Tudo isto seria muito lento, como a lentidão da chuva, uma lentidão que se escutava em toda a casa.

Foi de novo ao quarto e verificou que Isabel continuava a dormir. Olhou-a com alguma pena de não a ter visto antes, antes deste dia e antes desta vida. Olhou-a sem lhe tocar, olhou-a apenas e falou com ela em voz muito baixa, embora tivesse a certeza de que ela estava adormecida, que dormia profundamente, mais magra do que há um mês. Mesmo assim falou-lhe em voz baixa, tendo a certeza de que ela não o ouviria e de que ele próprio se esqueceria de todas as palavras, fossem elas quais fossem. Falou durante muito tempo até que começou a ouvir um ruído que finalmente se sobrepunha ao da voz murmurada em surdina apenas dentro da sua cabeça. Reconheceu-o passado algum tempo, identificando-o com o das águas do mar movendo-se na praia, no canal diante da ilha e também diante de outra ilha que estava em frente como uma sombra. E imaginou que outra água do mar viria em breve, mais tranquila, e que tudo aquilo, uma água e outra água, não seriam senão uma lembrança vaga, uma lembrança que se tem antes de adormecer.