13
O SOL ENTROU CEDO em seu quarto, e já veio quente. Eric acordou, apertou os olhos contra a luz, sentiu o calor no rosto e, antes mesmo de estar completamente desperto, percebeu que a dor de cabeça estava de volta.
Também voltara, como uns demônios, uma turma de motociclistas que atravessava a cidade com um barulho infernal. Ele gemeu, cobrindo os olhos com as mãos. Com as pontas dos dedos, massageou as têmporas. Essa dor de cabeça era tão ruim quanto qualquer ressaca que já tivera antes — o problema é que não viera de uma ressaca.
Levantou-se, pegou um copo d’água e engoliu três analgésicos, sem acreditar muito que iriam funcionar — os que ele tomou no dia anterior não resultaram em nada— e foi tomar um banho no escuro. A luz parecia ser um problema. Ao sair do banheiro, manteve as lâmpadas apagadas e as cortinas fechadas. Vestiu um jeans e uma camisa safári cáqui de manga curta. Era a sua camisa da sorte. Ele a usara uma noite no México, onde rodavam um faroeste que foi um fracasso de bilheteria, apesar do roteiro brilhante, do elenco incrível e dele ter feito uma de suas melhores filmagens naquele dia. O diretor era um homem tranquilo, e estava mais interessado em supervisionar toda a produção do que interferir no trabalho do cinegrafista. Esses eram os diretores com quem Eric adorava trabalhar, pessoas que acreditavam no que você fazia e o deixavam em paz. Coisa que ele não viu muito em Hollywood, sobretudo depois de quebrar o nariz de Davis Vassar.
Vassar foi o homem mais importante com quem Eric trabalhou — e também o homem que lhe deu a certeza de que seria o último grande nome com o qual trabalharia. No princípio, se deram muito bem. Eric gostava muito do projeto, um filme de suspense sobre uma caroneira que presencia a execução de um jornalista. O roteiro era ótimo, emocionante, e, no dia em que Eric foi contratado, comprou quatro garrafas de champanhe e foi com Claire para uma linda pousada perto de Napa, onde transaram cinco vezes nas primeiras 12 horas. Sexo fogoso, alegre, divertido e intenso. Sexo com gosto de vitória.
Depois desse dia, nunca fizeram nada parecido.
Havia diretores exigentes e diretores como Davis Vassar. Ele usava os cineastas que contratava apenas para descarregar seus gritos em cima deles, que avisavam ao resto do elenco que quem mandava ali era o diretor. Talento não significava nada para ele, e muito menos capacidade profissional. Eric se segurou durante um mês até a primeira explosão de raiva do diretor com ele, e dois dias depois, seu punho encontrou o rosto de Vassar, uma garçonete gritou, e ali ficou marcado o início da derrocada da carreira de Eric Shaw em Hollywood.
Temperamento, temperamento, temperamento. Era preciso controlar o temperamento.
O dia em que tudo começou a ruir ficou marcado em sua memória para sempre. Eric chegara ao escritório da produtora para uma reunião com Vassar e dois outros encarregados da produção. Estavam numa sala cuja vista dava para Wilshire, e Vassar fez com que os três esperassem vinte minutos até aparecer. Havia uma mesa de café com tampo de vidro no centro da sala e, quando ele finalmente chegou, todo cheio de si, jogou-se em uma das poltronas de couro negro e apoiou os pés sobre a mesa. Bateu seus calcanhares no vidro, algo totalmente desnecessário, cuja mensagem era: Eu Sou Simplesmente o Máximo.
Conversaram durante uma hora e Eric não se lembrava do que fora dito. Vassar era praticamente um personagem, cuja imagem — os sapatos pretos brilhantes sobre o tampo de vidro — não sairia jamais da mente dele. Encarava aqueles sapatos, ouvia e observava os produtores humilhados e encolhidos de medo por Vassar e pensava: Isso é besteira. Eles estão ouvindo você por causa do seu maldito nome, não por causa do seu talento. Apenas porque você deu sorte algumas vezes, e pegou carona numa ótima interpretação de alguém que foi indicado ao Oscar. Você nem mesmo leu o roteiro, não tem a menor ideia de como a história deve ser contada. Eu tenho. Era eu quem deveria estar na direção deste filme, não você, mas não tenho a sua fama. E por isso tenho que ficar aqui calado, enquanto vejo você colocar os pés sobre a mesa de outra pessoa, e olhar a tela do seu BlackBerry de dois em dois minutos, só para nos lembrar o quanto você é importante.
Conseguiu sair da reunião em paz. Mas não conseguiu terminar o filme da mesma forma.
— E foi assim — falou para si mesmo — que você acabou em Indiana. Bom trabalho.
Ele podia jogar esses pensamentos para longe, mas não a dor de cabeça. Comida poderia ajudar nisso ou, pelo menos, um café forte. Saiu do quarto, desceu as escadas e chegou mais uma vez ao átrio. Deu uns vinte passos até ver um raio de luz atravessar a cúpula. Parou, girou nos calcanhares, trincou os dentes e voltou pelo corredor escuro que circundava o salão. Foi até uma das salas de jantar, sentou-se numa mesa e pediu uma omelete e um café. Rápido com o café, por favor.
Bebeu duas xícaras e não sentiu nenhuma melhora, deu três garfadas na omelete, mas desistiu. Jogou algum dinheiro sobre a mesa e voltou para o quarto. Aquilo era ruim. Enxaquecas súbitas, com dores cegantes... eram um mau presságio. Eric sabia o suficiente para entender esse fato, e as possibilidades o amedrontavam. Tumor ou coágulo no cérebro, câncer, aneurisma, derrame e ataque cardíaco.
Tinha que ligar para o Dr. Sharp, em Chicago. Era a única coisa a fazer.
Ligou do celular. Quando ouviu a resposta automática de uma máquina do outro lado da linha foi que se lembrou que era sábado e seria impossível contatar o bom Dr. Sharp. O consultório dele ficava fechado nos finais de semana e a mensagem sugeria que o paciente fosse a um hospital se suas condições fossem graves.
Pare ele pareciam bastante graves, embora fosse também apenas uma dor de cabeça. Não se vai à emergência de um hospital só por causa disso. E, de qualquer forma, onde é que havia um hospital por aqui?
Não teve certeza se olhou a garrafa de Água Plutão porque pensou nela, ou se pensou nela porque a olhou. A ordem lógica não estava clara, mas, de algum modo, se viu com os olhos grudados no recipiente enquanto pensava: Afinal, por que não? Servia para curar dores de cabeça também, não é? Tinha certeza de ter visto isso na lista de males que a água se gabava de curar. Tudo bem que quase todas as doenças do início do século XX faziam parte daquela lista, mas a água não podia ter conquistado aquela reputação toda sendo apenas um placebo. Tinha que ajudar em alguns problemas.
Ele foi até a mesa e se aproximou da garrafa mas parou sua mão a uns 15 centímetros dela, inclinou a cabeça e a observou. Agora, ela estava envolta num revestimento fosco. Parecia que estava...
Congelada. Puta que pariu, estava congelada. Raspou um pouco de gelo com o polegar, como fazia no vidro da janela nas manhãs de inverno de Chicago.
— Ainda vou descobrir o que acontece com você — falou.
Não iria descobrir nada se continuasse ali no quarto, inerte, sentado no chão, mascando comprimidos como se fossem balas. Então, por que não dar à água uma última chance?
Abriu a tampa e, hesitante, tomou um pequeno gole.
Não era ruim. Se tanto, o gosto de enxofre desaparecera e um sabor adocicado o substituíra. Tomou um bom gole, cujo gosto o levou a tomar um segundo e, depois, um terceiro, o líquido descendo suave por sua garganta, como néctar. Teve que se esforçar para parar e, quando colocou a garrafa de volta sobre a mesa, viu que havia bebido mais da metade de seu conteúdo — o mesmo líquido que o fizera vomitar em Chicago com apenas algumas gotas.
O sabor podia ter melhorado, mas ainda não fazia efeito algum. A dor de cabeça latejava e a turma de motociclistas continuava a dar voltas pela cidade, apostando corridas.
Bom, a Água Plutão não iria resolver o problema. Foi uma ideia idiota, mas ele apostaria em qualquer ideia idiota se isso lhe desse alguma garantia de que iria passar um dia melhor.
Voltou a se deitar, colocou a cabeça sob os travesseiros e ficou assim por algum tempo. Talvez o melhor fosse procurar mesmo um hospital. Seria loucura não fazê-lo. Se Claire estivesse aqui, não pensariam duas vezes e já estariam dentro do carro, subindo aquelas estradas do interior, à procura da placa azul alusiva aos serviços de saúde. Ela era uma guerreira. E também o protegia. Iria defendê-lo até o fim.
Bem, quase até o fim. Ficara ao seu lado, passara por todas as dificuldades com ele na Califórnia, mas quando voltaram para Chicago, lar da sua família e dos seus comentários críticos, a determinação dela foi por água abaixo. Começaram os questionamentos, as perguntas sobre o que ele iria fazer dali para a frente — tudo bem que desistisse do cinema, mas qual trabalho ele gostaria de ter no futuro? Ele precisava de tempo para pensar, só isso, mas ela não tinha muito. Não o muito tempo...
Devagar, seus pensamentos se afastaram de Claire e depois, sem pressa alguma, retirou os travesseiros e levantou a cabeça. Sentado, inclinou o pescoço de lado como se tentasse prestar atenção a algum barulho distante.
— Está passando — disse.
A maldita dor de cabeça estava passando. Ainda a sentia, mas os motociclistas já haviam tomado a estrada que subia a montanha e que os levaria para fora da cidade.