20

DANNY APARECEU NO MEIO da tarde, e Josiah estava se sentindo bem, tendo passado o dia inteiro lixando e pintando o corrimão da varanda na companhia de uma ou três latas de cerveja. O engraçado é que aquele corrimão estava precisando de uma pintura há anos, mas ele jamais se preocupara com isso. Comprara a porcaria da tinta há meses, com a pretensão de iniciar o trabalho no dia seguinte, mas o “dia seguinte” se afastava cada vez mais, e logo as latas de tinta estavam cobertas de poeira e teias de aranha, e o corrimão da varanda ficava pior do que nunca.

Hoje, no entanto, resolveu o trabalho de forma simples, porque precisava se ocupar com alguma coisa. O dia estava lindo, quente e cheio de promessas, o que despertava a vontade de fazer algo mais do que ficar sentado. Na maioria dos fins de semana, Josiah ficava mais do que feliz em não fazer nada; passava de segunda a sexta-feira dando duro para outras pessoas e achava que merecia gastar dois dias sem se ocupar com merda nenhuma. Mas havia algo diferente hoje, tanto na cabeça quanto no corpo dele, como se o vento que soprou enquanto Josiah dormia na varanda tivesse trazido alguma espécie de energia à sua pele. Marque nos calendários, pessoal — dia 3 de maio, o dia em que Josiah Bradford não se contentou mais em aguardar sua vez.

Era uma lástima envolver alguém como Danny Hastings naquele plano, mas o fato é que há coisas que não podem ser resolvidas sozinho. Algumas coisas necessitavam de uma pequena ajuda, e, embora Danny não fosse o homem ideal para muitas delas, era leal ao extremo. Era quase como se eles fossem da mesma família — apesar de não terem nenhum parentesco consanguíneo — e Josiah passou a maior parte da infância metendo a porrada em Danny e vendo o bundão sardento voltar, pronto para levar outra, como um cachorro que não sabe como parar de amar seu dono, apesar do chicote. A essa altura, Danny estava escaldado.

Quando Danny chegou no seu Oldsmobile Cutlass, com a porta que não combinava com o resto do veículo, encontrou Josiah na varanda de pincel na mão procurando por lugares no corrimão que precisassem de um retoque, mas sem encontrar nenhum. Fizera um trabalho perfeito. A casa — se é que podia ser chamada assim — tinha só um quarto e fora construída num barranco inclinado, e o próprio Josiah não entendia por que a tinha comprado. O banco a havia confiscado do antigo dono por falta de pagamento e, então, ele a arrematou por um preço barato, embora não tivesse feito um grande negócio, não havia nada de bom ali, exceto a localização próxima do que antes fora a propriedade dos Bradford. Outrora, uma grande parte daquela área pertencera a geração após geração de Bradford, e acabou sendo vendida para saldar dívidas, retalhada aos pedaços até não sobrar mais nada. Por que queria ficar perto daquelas lembranças ele não sabia mas, de alguma forma, fora atraído a morar ali.

— Inferno — disse Danny, caminhando ao lado de Josiah com um cigarro pendurado nos lábios. — Tinha quase certeza de que você jamais pintaria isso. O que deu em você?

— Tédio — falou Josiah. Havia algo de especial no trabalho feito naquele corrimão o que lhe deu uma surpreendente satisfação por vê-lo brilhando, branco e limpo, sob o sol. Tinha o brilho da conquista.

— De qualquer forma, ficou bonito.

— Não ficou?

— Mais do que você. Aquele negro lhe acertou em cheio, hein? Seu olho está uma desgraça.

— Foi um soco de surpresa — falou Josiah enquanto se afastava dali. Foi até a torneira de um cano solto do pilar da fundação, que estava esperando ser fixado com cimento há anos, e abriu-a. Colocou o pincel sob a água e o esfregou com os dedos. Ao ver a tinta saindo dos pelos desejou que a raiva também fosse embora de maneira tão fácil. A última coisa que queria era ouvir algum comentário sobre o estado do seu olho.

— Tenho uma história engraçada para contar — começou Danny, mas Josiah levantou a mão para que ele se calasse. Estava sem paciência de ouvi-lo falar bobagens.

— Você se lembra o que eu perguntei mais cedo? — disse Josiah.

— Sobre ganhar algum dinheiro?

— Isso.

— É claro que lembro.

— E quer entrar nessa?

— Você estava muito afobado quando falou daquilo. Claro que ­quero.

— Mesmo se fosse o tipo de coisa que o colocaria em uma confusão e tanto, caso fosse burro o suficiente para ser pego?

O rosto avermelhado de Danny assumiu um ar grave. Ele tirou o cigarro da boca e o jogou no chão de cascalho e capim, onde o amassou com a bota. Não que tivesse ficado chocado com a sugestão — ele e Josiah já tinham feito algumas coisas ilegais nos bons tempos —, mas a ideia também não lhe trouxe nenhum entusiasmo.

— Espero que não esteja falando em produzir metanfetamina.

— Diabos, claro que não.

Aquilo parece ter acalmado Danny. Ele tinha um amigo, conhecido como Tommy Trovão (Josiah não se lembrava por que todos o chamavam assim), que explodiu seu trailer e morreu enquanto tentava refinar metanfetamina. Danny experimentara a droga não apenas como usuário, mas também como “aviãozinho” antes desse incidente, mas já fazia tempo que ele estava limpo. Só foi necessária uma explosão para que ele tomasse juízo.

— Muito bem. Então, sobre o que está pensando?

Josiah saiu da varanda, foi até a cozinha e voltou de lá com duas cervejas, entregando uma para Danny e abrindo a outra para si.

— Você já levantou alguma vez a cabeça enquanto arrancava as ervas daninhas do jardim daquele maldito hotel? — perguntou. Danny também trabalhara na equipe da jardinagem; de fato, fora ele quem arranjara aquele emprego para Josiah.

— Todo dia — respondeu Danny, desconfiado. Ainda não abrira a cerveja.

— Reparou alguma coisa estranha ultimamente?

— Sempre tem algo estranho.

— Não. Estou falando de uma coisa em particular. Tem sempre um monte de negócios acontecendo por lá, congressos, turistas e outras merdas.

— Sei.

— Você viu o assunto do congresso que vai acontecer no mês que vem?

Danny sacudiu a cabeça.

— Pedras preciosas — falou Josiah. — Vão armar uma mostra no saguão, com exposição de diamantes, rubis e outras merdas. Um bocado de pedras que valem milhões, Danny. Milhões.

O rosto de Danny mostrou certo azedume, enquanto ele se distanciava um pouco do amigo. Ia se debruçar no corrimão, mas lembrou-se que a tinta estava fresca e parou antes.

— Quando uma coisa assim está para entrar na cidade — disse Josiah —, só sendo um idiota para não tirar partido dela.

— Você só pode estar de brincadeira.

— Porra nenhuma. Nós vamos pegar essas pedras. Não vai ser nem tão difícil. Veja, bolei o seguinte plano: um incêndio esvazia aquele prédio num instante, certo? Com todo o seguro que têm, não vão perder nada, não é verdade? Cara, assim que as labaredas começarem a lamber as paredes, ninguém vai ficar lá para contar a história.

— Josiah... Você acha que os donos daquelas pedras não pensaram nisso?

— Eles podem pensar o que quiserem, só não podem fazer o fogo parar. Já imaginou o que aconteceria quando um incêndio se alastrasse? É isso que chamam de caos, meu filho, e sabe o que acontece durante o caos? Coisas desaparecem.

— E você acha que não vão notar...

— Claro que vão notar, seu idiota, o que estou dizendo é que quando perceberem o sumiço das pedras, já será tarde demais. Começamos o incêndio, fazemos com que as pessoas saiam do prédio, acionamos os extintores, pegamos os estojos das pedras e caímos fora. Não precisamos nos preocupar com alarmes porque, a essa altura, um milhão deles estariam funcionando e alguns a mais não fariam a menor diferença.

— E as pedras? Não são registradas ou coisa parecida? — perguntou Danny. — Não poderemos vendê-las. Como é que faríamos isso então? Iríamos até uma casa de penhores e as venderíamos lá?

— Não as venderemos aqui.

— Ah, sei, mas onde você pensa em vendê-las? Até se atravessássemos o país...

— Não iremos vendê-las neste país — falou Josiah, com voz suave, o que fez com que Danny se interessasse. A versão dele, bem pensada, começava a fazer sentido.

— Vou me mandar daqui — falou Josiah. — Você pode vir ou não, isso não é da minha conta. Porém, eu vou cair fora dos Estados Unidos.

— É uma ideia idiota — disse Danny, e sua audácia chocou Josiah. Danny Hastings chamando-o de idiota? Devia dar umas boas porradas naquela cabeça ruiva. Entretanto, não o fez. Em vez disso, ficou ali, encarando-o. Tinha algo estranho no que Danny acabara de dizer e Josiah precisou de um minuto para perceber o que era. Danny estava certo. A ideia era realmente idiota.

Idiota, mas não impossível. E Josiah Bradford estava pronto para apostar naquelas chances, como aqueles idiotas que iam ao cassino nas sextas-feiras à noite mesmo que, de antemão, soubessem que seriam depenados — e não davam a menor bola para isso. Para piorar, eles lembravam Josiah quando estavam na cidade.

— Pode ser feito — disse, sem muita convicção na voz. — Se você não tem os colhões para fazer, tudo bem. Mas não venha me dizer que não pode ser feito.

Danny ficou calado. Depois de um tempo, abriu sua cerveja e ambos beberam em silêncio, de pé, desconfortáveis por não poderem encostar no corrimão. Josiah se sentou numa das cadeiras e Danny, na outra.

— A história que eu tinha para lhe contar é que meu avô me disse que tem um homem aqui na cidade fazendo perguntas sobre o velho Campbell.

Josiah franziu a testa e abaixou a lata de cerveja.

— O mesmo filho da puta do qual falei?

— O negro? Não. Ele falou que há outro agora. Este pretende fazer um filme. O rapaz negro está apenas dando uma ajuda.

— Um filme sobre Campbell?

Aquilo era estranho. O bisavô de Josiah sempre fora objeto da maioria dos casos do velho Edgar por anos, mas, droga, quem diabos gostaria de fazer um filme sobre ele?

— Edgar deve estar ficando gagá — disse ele. — Um filme?

— O que ele me disse — falou Danny — é que um cara de Chicago veio fazer um filme aqui na cidade e que iria hoje lá na casa dele fazer algumas perguntas sobre Campbell.

— Bem, não sei por que alguém perderia tempo com esse assunto. Campbell deixou um monte de nada para trás e é desse nada que continuo a viver até hoje.

— Bem, era o que eu também estava pensando. Se o que este cara contou ao meu avô é verdade, e se ele estiver mesmo interessado em fazer um filme sobre alguém de sua família, será que não está lhe devendo algo?

Era uma boa pergunta. Uma excelente pergunta. Que direitos estranhos tinham de andar por aí fazendo perguntas sobre os laços de sangue de Josiah? E sem ao menos lhe pagar nada?

— Você disse que eles irão falar com Edgar hoje?

— Isso. Eu ia mesmo ficar por lá, para ver se não era algum golpe desses que a gente escuta falar que são aplicados em gente mais velha, mas você me disse para passar por aqui...

Josiah terminou sua cerveja, amassou a lata e jogou-a do lado.

— Vamos pegar minha caminhonete.