22
ERIC OLHOU ATRAVÉS DA porta de tela justamente no momento em que o ruivo se encaminhava para a varanda e Josiah parou para examinar o Porsche. Ainda o observava quando seu companheiro atravessou a porta sem bater. O neto de Edgar Hastings entrou com o peito estufado, de um jeito fanfarrão, como um cowboy de cinema que entra em um saloon, mas ao dar de cara com Eric tão perto da porta sentiu uma hesitação momentânea. E Edgar completou esse segundo dizendo:
— Droga, Danny, onde estão seus modos?
O ruivo olhou para o avô e depois para Eric, e estendeu a mão com má vontade.
— Danny Hastings.
Josiah Bradford deixou o Porsche de lado, subiu rápido os degraus da varanda e entrou correndo na casa. A porta bateu enquanto seus olhos encontravam os de Eric e depois os de Kellen, no sofá. Kellen o cumprimentou com um aceno e um movimento de sobrancelhas, como faria Groucho Marx, se Groucho Marx tivesse 1,95m e fosse negro.
— Edgar, esses filhos da mãe estão fazendo perguntas sobre a minha família? — disse Josiah.
Danny ainda estava com a mão estendida e Eric a apertou e falou:
— Muito prazer. Meu nome é Eric Shaw.
Danny retirou a mão tão rapidamente como se tivesse pegado em brasa incandescente, e se afastou depressa, olhando para Josiah à espera de suas ordens. Josiah permaneceu perto da porta com os pés afastados. Kellen até então não tinha se movido do sofá. Agora, ele se reclinava na almofada e se espreguiçava, com a cabeça apoiada nas mãos e olhando para eles sem interesse algum, como se aquela cena estivesse se desenrolando na TV, e não ao vivo, a um metro e meio de distância.
— Você se conhecem? — perguntou Edgar a Josiah. Virou-se na direção de Eric e questionou: — Pensei que era de Chicago.
— E sou — disse Eric. — Cheguei na cidade ontem mesmo. Ainda não estou aqui há 24 horas, mas já foi tempo suficiente para me encontrar com Josiah e levar um soco dele.
— Acredito que encontramos aquela dificuldade da qual o senhor falou — Kellen contou a Edgar.
— Dei-lhe umas boas porradas ontem à noite e vou fazer o mesmo hoje — disse Josiah ao entrar na sala. O cachorro correu para a cozinha e se escondeu entre a mesa e as cadeiras. Era evidente que Riley já conhecia Josiah.
Josiah colocou seu rosto a poucos centímetros do de Eric e perguntou:
— Quem você pensa que é para vir na minha cidade e fazer perguntas sobre a minha família?
Eric encarava o rosto abatido do outro, queimado pelo sol e castigado pelo vento. A pele sob seu olho direito estava inchada e manchada de roxo e preto, um presente da mão esquerda de Kellen. Ao examiná-lo, a cor do inchaço fez com que Eric se lembrasse da nuvem de tempestade que vira com o trem. Sobre o hematoma, os olhos de Josiah Bradford tinham uma cor marrom escura que lhe parecia familiar. Eram os olhos de Campbell? Não. Eric vira Campbell naquela mesma manhã, na gravação, e se lembrava bem de que seus olhos eram azuis. Aqueles eram os olhos do homem no trem, do homem que tocava o piano.
— Fiz-lhe uma pergunta, babaca — disse Josiah.
— Fui contratado para fazer um vídeo — respondeu Eric, sem querer encarar Josiah Bradford por mais tempo, porém incapaz de desviar os olhos dele. — Minha cliente pediu para que eu descobrisse o máximo possível sobre Campbell Bradford. Eu não sabia de merda nenhuma sobre você, sua família ou qualquer outra pessoa até ter chegado aqui ontem. Também não esperava que fosse cruzar com você, logo na primeira noite, como um idiota suplicando por uma briga.
Quanto mais Eric observava os olhos de Josiah, mais sua dor de cabeça aumentava. Ela se tornara tão intensa e profunda que nem aquele momento de conflito conseguiu disfarçá-la. Então, deu as costas a Josiah e tentou sorver mais ar através da boca. Recuou um pouco e levou involuntariamente a mão à nuca.
— Você esteve brigando outra vez? — falou Edgar. — Josiah, você é mesmo um caso perdido.
— Eles estavam procurando encrenca, Edgar.
— Porra nenhuma.
— Ah, ele estava apenas brincando conosco ontem — disse Kellen. — Diga, Edgar, você já ouviu a piada do negro com o casaco de pele?
Josiah levantou o braço e apontou para o rapaz.
— Cuidado com o que fala.
— Tome cuidado você — gritou Edgar. — Não quero que isso continue dentro da minha casa.
Josiah abaixou o braço, ignorou o velho e olhou de volta para Eric.
— Quero saber por que você veio aqui fazer perguntas sobre minha família.
— Eu já lhe falei — disse Eric, com a cabeça virada de lado. Não gostava daquela linguagem corporal, que sugeria que ele estava sendo intimidado, mas também não aguentava mais manter os olhos em Josiah, pois, quando fazia isso, a dor de cabeça aumentava.
— Você não me falou merda nenhuma. Trabalhando num filme? Onde estão as câmeras, então?
Isso fez surgir um sorriso de desprezo no rosto de Eric.
— Você acha que é engraçado mentir para mim? Vou lhe dar umas porradas aqui mesmo.
— Não mesmo — disse Edgar.
— Tenha calma, Josiah — falou Danny lá da porta, numa voz que era quase um sussurro.
— Onde estão as câmeras? — repetiu Josiah.
— Tive um pequeno problema com o equipamento hoje de manhã.
— Não acredito em você.
Eric deu de ombros.
— Quem está fazendo esse filme? — perguntou Josiah. — E por quê?
— Isso não lhe interessa — respondeu Eric, procurando falar encarando Josiah, de cabeça erguida e com cuidado de olhar para o centro do nariz do outro e não para aqueles olhos castanhos pálidos.
— Bem, rapaz, eu vou lhe dizer a quem interessa esse assunto — disse Josiah dando um passo à frente e empurrando Eric com o peito.
Eric resistiu ao ataque, enquanto Edgar gritava para Josiah recuar e Danny Hastings se dirigia constrangido para a porta. Kellen esticou as pernas, colocou os pés sobre a mesinha de café e bocejou.
— Você não tem direito nenhum de sair por aí fazendo perguntas sobre minha família — disse Josiah, com o bafo quente com cheiro de cerveja. — Quer fazer perguntas? Então, terá que pagar. É direito meu ser indenizado financeiramente por qualquer coisa que você venha a fazer envolvendo minha família.
— Não — disse Eric. — Você não tem esse direito. Talvez nunca tenha ouvido falar da palavra biografia. Eu não me surpreenderia. Mesmo se quisesse fazer um filme sobre você, seu imbecil, tenho todo o direito legal. A boa notícia é que não há ninguém no mundo interessado em assistir a uma porcaria como essa. Portanto, fique tranquilo, isso não irá acontecer. Entretanto, se me ameaçar de novo, assediar meu amigo ou fizer alguma outra babaquice de criança, farei com que vá parar na cadeia.
— Ele já esteve lá antes — falou Edgar de sua poltrona. — Será preciso falar algo diferente para lhe meter algum medo.
— Cale a boca, Edgar — disse Josiah ainda com os olhos grudados em Eric.
— Ei! — falou Danny Hastings. — Não fale assim com ele.
Eric falou:
— Obrigado por ter nos recebido, Edgar. O senhor foi de grande ajuda.
Passou por Danny, virou-se, segurou a porta e, só então, viu Kellen se levantar, vagarosamente, enquanto deixava que seu corpanzil se aprumasse e enchesse a sala.
— Saiam daqui — falou Josiah.
Kellen sorriu para ele. Inclinou-se sobre a mesa de centro, estendeu a mão a Edgar Hastings, passou bem junto de Josiah — sem tocá-lo ou olhá-lo —, cumprimentou Danny com a cabeça e foi se juntar a Eric na porta. O cineasta a abriu e ambos saíram. Já estavam quase no carro quando Josiah surgiu com um insulto de despedida.
— É melhor esquecer que já ouviu o nome de Campbell Bradford — gritou. — Entendeu? É melhor esquecer que ouviu o seu nome.
Nenhum dos dois respondeu. Eric apenas observava pelo espelho, enquanto Kellen manobrava o Porsche em volta da caminhonete e Josiah permanecia na varanda.
— Bem, até que foi engraçado — disse Kellen ao arrancar. — Fez a viagem de volta a Bloomington valer a pena.
— Desculpe.
— Não, não, estou falando sério. Eu teria guiado mais uma hora só para assistir a isso. Você viu o olho dele? — O rapaz riu. — Ah, aquilo fez meu dia. Percebeu que hoje ele parecia menos corajoso? Não deu nenhum soco, não fez nenhuma piada.
— Percebi.
— Bem, é o resultado de um olho roxo.
Havia uma pequena van parada no acostamento da estrada, não muito longe da casa, e Kellen tirou um fino da lateral dela, uns trinta quilômetros acima da velocidade permitida.
Kellen olhou para Eric, os olhos escondidos pelos óculos escuros e disse:
— Se importa se eu lhe fizer uma pergunta?
— Vá em frente.
— Como o seu Campbell pareceu nunca existir nessa cidade... você já parou para pensar que ele pode ser um mentiroso? E que passou a vida toda fingindo ser outra pessoa?
— Já.
— Nesse caso, ele é bem-sucedido, rico e tem família — continuou Kellen —, mas assumiu a identidade de um idiota de uma cidade pequena em outro estado. Por que alguém iria querer fazer uma coisa dessas?
— Acho que essa é uma pergunta que está ganhando importância. Tenho outra que também gostaria de lhe fazer. Só que, se eu a fizer, você vai parar o carro e me jogar para fora.
Kellen inclinou a cabeça, confuso.
— Qual é?
— Vai parecer loucura.
— Eu gosto de loucuras.
— Veja só... Já vi o bisavô de Josiah antes. Vi aquele Campbell. Tenho quase certeza. E ele não é o mesmo cara com quem estive em Chicago.
— Então, onde foi que o viu?
— Numa visão — disse Eric, e Kellen apertou os lábios e balançou a cabeça, devagar, pensativo. Sim, é claro, numa visão.
— Você não precisa acreditar nisso — disse Eric —, mas, antes de fazer qualquer julgamento, tenho uma garrafa de água que quero lhe mostrar.