26
KELLEN ESPERAVA DENTRO DO carro com as janelas abertas e uma música a todo o volume. Ele abaixou o som logo que Eric sentou-se ao seu lado.
— Então, para quem aquele cara está trabalhando?
— Para alguém que me ofereceu 75 mil dólares para que eu desistisse e voltasse para casa.
O rapaz debruçou-se sobre o volante, boquiaberto.
— O quê?
Eric fez que sim com a cabeça.
— Começou com 50 mil e, em seguida, subiu para 75 mil.
Kellen repetiu a pergunta, como se não tivesse recebido resposta da primeira vez.
— Eu sei — falou Eric, enquanto olhava a base da montanha à procura de Gavin Murray. Acabou localizando-o parado ao lado de um dos gazebos, com um celular grudado na orelha. Muito provavelmente estava ligando para Chicago, contando as novidades e esperando para receber as novas instruções.
— Desconfio que esteja a serviço de outro membro da família — disse Eric. — Ou algum dos advogados de Campbell. O velho está para morrer e vale algumas centenas de milhões de dólares. Podem estar preocupados com Josiah.
— Você acha?
— Sim. Se Josiah é parente do velho no hospital, pode reclamar legalmente por uma herança. Campbell abandonou a família. Tudo bem que foi há algumas gerações, mas com certeza existe um monte de advogados que ficariam felizes em reivindicar uma indenização em favor de Josiah.
— Mas você acha que os dois Campbells são uma só pessoa?
— Não, não acho. O que torna isso tudo ainda mais interessante, não?
— É claro. E também me faz imaginar o que sua cliente terá a dizer.
— É verdade — disse Eric. — Vou ligar para ela. Agora.
Lá, junto ao gazebo, Gavin Murray abaixou o celular e o colocou de volta na capinha que trazia presa ao cinto, enquanto acendia outro cigarro. Estava encostado num tronco, os olhos exatamente na direção do carro deles.
— Você acha mesmo que é uma boa ideia falar sobre isso a ela? — perguntou Kellen.
— Alyssa deve saber melhor sobre o que está acontecendo do que eu. Como poderia ser uma má ideia?
Kellen deu de ombros e esperou Eric digitar o telefone dela no teclado. Primeiro, tentou o celular e, depois, o número da casa. Não obteve resposta em nenhum deles. Deixou mensagens em ambos, mas não deu detalhes, apenas pediu para que ela ligasse de volta assim que possível.
— A dor de cabeça voltou? — perguntou Kellen quando Eric desligou. O rapaz percebeu que o outro esfregou a nuca todo o tempo em que tentava falar no celular.
— Não se preocupe com isso. Vamos indo. Eu disse a Anne que estávamos a caminho.
Quando saíram do estacionamento, viram Gavin Murray acenando para eles. O homem estava ao telefone mais uma vez.
Josiah deixou Danny na casa do avô e saiu sem dar uma palavra, alguns minutos depois do Porsche ter ido embora. Chegou a considerar a possibilidade de segui-los pela estrada naquela lata velha, até alcançá-los para dar umas porradas em cada um deles, coisa que deveria ter feito na casa de Edgar. Porém, eles não estavam mais à vista. Na verdade, não viu nenhum outro carro, com exceção de uma van azul estacionada junto aos arbustos.
Josiah passou por ela e entrou na cidade. Parou no posto de gasolina e colocou 20 dólares de gasolina em seu tanque quase vazio, e comprou seis latas de cerveja. Bebeu uma ali mesmo, ao lado da bomba de combustível. Alguém parou atrás dele e buzinou alto, aborrecido por Josiah ter bloqueado o acesso à bomba apenas para beber cerveja, mas bastou o motorista dar uma olhada nele que recuou e foi buscar outra bomba que estivesse disponível.
Josiah jogou a lata de cerveja vazia numa lixeira e dirigiu para longe do posto, em direção à sua casa. Ela ficava nas montanhas arborizadas a leste de Orangeville, cercada por algumas centenas de hectares de fazendas que pertenciam aos Amish. Eles iam para cima e para baixo da estrada com suas carroças e vendiam legumes em frente às suas propriedades. Antigamente, quando Josiah passava por eles, acelerava a caminhonete de propósito, deixando a “tão assustadora” tecnologia que rejeitavam dar um susto neles. Josiah costumava rir disso. Com o tempo, porém, ele começou a apreciar o modo de vida deles. Eram vizinhos pacatos, cuidavam bem de suas terras e não o incomodavam com barulhos, conversas fiadas ou fofocas. Cuidavam da própria vida, e não se metiam na dele. Como deveria ser.
A varanda parecia limpa e brilhante quando estacionou a caminhonete, entretanto aquilo já não o satisfazia mais. Ele fora nocauteado duas vezes. Ver aqueles dois sentados na sala de Edgar já era ruim o suficiente, mas aguentar Danny Hastings, o idiota do Danny, encarar firmemente Josiah e dizer que seu plano era estúpido foi demais. E o pior: ele estava certo quanto ao plano.
Sim, fora um dia péssimo. Que inferno, o fim de semana inteiro fora assim. Tudo desabara rapidamente, começando por ontem à noite. Tudo estava bem na sexta-feira de manhã, na medida do possível, pelo menos.
Entretanto, era exatamente esse o problema: as coisas jamais estariam bem e nunca iriam mudar. A não ser que ele tomasse uma providência. Continuaria a ficar sentado na varanda bebendo aquela cerveja aguada e trocando ideias com Danny pelo resto de sua vida patética, até que perdesse seus reflexos e não conseguisse mais dirigir com álcool nas veias e, então, bateria com a caminhonete direto em uma árvore, da mesma maneira que seu pai fizera no passado?
— Alguma coisa tem que mudar — sussurrou para si, sentado na boleia da caminhonete enquanto o suor pingava do pescoço, a cerveja esquentava ao sol e os cavalos dos Amish, na fazenda vizinha, andavam em círculos para mover uma espécie de moinho. Sempre de cabeça baixa, o tempo todo, passo após passo após passo. — Alguma coisa tem que mudar.
Saiu do veículo, mas não queria entrar em casa, não queria se sentar naquele sofá velho da varanda e encarar as rachaduras nas paredes e o chão torto. O corrimão brilhava sob o sol, é claro, mas só agora ele percebia o quanto era pequena aquela mudança. A casa continuava a ser um barraco, com suas calhas despencando, telhado manchado e paredes cobertas de mofo. É óbvio que tudo aquilo poderia ser consertado, mas era preciso ter dinheiro para fazer isso. E, afinal, qual seria o sentido? Conseguiria o mesmo efeito polindo cocô.
Em vez de entrar, pegou a cerveja e andou até o fundo do quintal. De lá, caminhou em direção ao campo atrás da cerca de arame farpado que separava os terrenos. Queria ir para a floresta que havia após as colinas, para tomar mais umas cervejas.
Estava no meio do caminho, o rosto exposto ao sol e ao vento morno vindo do oeste, quando se lembrou da segunda metade de seu sonho, com o homem esperando por ele na beirada do bosque. Com aquele pensamento, Josiah olhou para cima, como se fosse ver o danado ali bem à sua frente. Não havia ninguém à vista, mas a lembrança o arrepiou da mesma maneira, pensando em como o homem balançava a cabeça em sua direção enquanto o dia se tornava noite. Que sonho mais esquisito. E logo após ter aquele outro, o do trem, onde o mesmo homem estava de pé em um vagão de carga com água até os tornozelos.
Estamos indo para casa pegar o que é seu.
Existem pessoas que consideram sonhos como uma espécie de presságio. Josiah nunca fora desse tipo, mas, hoje, não conseguia deixar de pensar no homem do chapéu-coco. Pegar o que é seu, dissera ele. Não havia muita coisa neste mundo da qual Josiah era dono. Entretanto, era curioso ter um sonho como esse exatamente quando um monte de gente fazia perguntas por aí sobre sua família. Diabos, quem teria tanto interesse em Campbell? Já fazia uns oitenta anos desde que ele pulara em um trem para nunca mais voltar.
Pulara em um trem. Um trem antigo, puxado por uma locomotiva a vapor e um vagão, exatamente como no sonho.
— Aquele era você, Campbell? — falou Josiah, baixinho, dando voltas pelo campo e sorrindo. Definitivamente, ele se perdera em um monte de pensamentos malucos e idiotas. Provocar incêndios, roubar pedras preciosas e ver seu bisavô em um sonho? O homem estava era à beira da loucura.
O sol estava forte e as latas de cerveja batiam desajeitadas em sua perna enquanto andava, mas ele não se incomodou. Sua camisa estava ensopada de suor e insetos zumbiam em volta de seu pescoço, mas isso também não era nenhum problema. Era bom estar ao ar livre, se movimentando e completamente sozinho. Ele crescera ali, entre as florestas e os campos, e passou mais tempo lá do que em casa. Edgar costumava chamar a ele e a Danny de desbravadores. O velho Edgar fizera um bom trabalho com Josiah. A família dele era tão caótica que o idoso o levou para viver com os Hastings. Ele e Danny eram como irmãos, e, embora Danny não fosse muito inteligente, isso nunca incomodou Josiah tanto quanto agora. A verdade era que ele sempre gostou muito de Danny, mas jamais o levara em consideração. Danny era um bom homem, mas não realizaria muita coisa nessa vida. Até quando abandonaram a escola no mesmo dia, parecia que Danny estava agindo de acordo com o esperado, enquanto Josiah fazia uma escolha. Ele era a metade da dupla que iria realizar alguma coisa na vida, a metade ambiciosa.
Pelo menos, essa sempre fora a noção que tivera. Agora, entretanto, sentia como se a realidade o tivesse alcançado de repente e, num piscar de olhos, percebeu que não havia nada de muito diferente entre ele e Danny, nada que alguém pudesse perceber, nada tangível. Ambos ainda estavam na cidade, vivendo em casas de merda, dirigindo carros de merda, pilotando cortadores de grama, manuseando tesouras de jardinagem e bebendo sempre. Como diabos aquilo acontecera?
O lugar para onde Josiah ia era um local que ele descobrira ainda garoto, 12 anos de idade e caminhando sozinho. Bem, não caminhando exatamente. Na verdade, correndo, com a dor do cinto de seu velho ainda vibrando em suas costas. Moravam a apenas 3 quilômetros de onde Josiah mora hoje em dia, 3 quilômetros separados pelos campos que cruzava agora.
Naquele dia, ele correu até seus pulmões se apertarem como punhos fechados e seus tendões reclamarem de tanto esforço. Diminuiu o passo, então, para uma caminhada inconstante, atravessou outro campo e entrou na floresta até topar com uma montanha íngreme. Era uma subida difícil, coberta de vegetação e esburacada, cheia de lajes de pedra lisa. Ouviu um barulho como um borbulhar e parou, escutando e se assustando cada vez mais, pois sentia que o som vinha de algum lugar debaixo dele. Bem debaixo de seus pés, ele tinha certeza, embora não houvesse qualquer fonte de água por ali.
Ele seguiu o barulho, embrenhando-se entre as árvores. Acabou encontrando um penhasco de uns bons 30 metros de altura. Logo abaixo dele havia uma estranha piscina, de um assustador brilho verde-azulado. A superfície dela era plácida como a de um reservatório, mas tudo ao seu redor recebia um borbulhar constante, um movimento perpétuo com a água. Algumas árvores caídas de cima do rochedo estavam meio mergulhadas na piscina, seus ramos brancos fantasmagóricos desaparecendo nas profundezas verdes. Do topo do rochedo, raízes se balançavam livremente sobre a pedra, exatamente como nos filmes de terror com cenas filmadas em pântanos.
O rochedo circundava a piscina por todos os lados, formando um jarro gigantesco. Josiah teve de fazer um grande esforço para chegar lá, porém o lugar ficava ainda mais sinistro do que no topo, pois dali não poderia escapar rapidamente e o vento soprava as folhas secas das árvores. De vez em quando, um dos cantos da piscina parecia ranger ao cuspir mais água sobre água. Debaixo das pedras, o barulho borbulhante continuava. Sempre audível, porém invisível.
Josiah nunca imaginara que um lugar como aquele pudesse existir.
Ele se arriscou a levar outra surra quando voltou à noite para casa e contou ao pai sobre o que vira, jurando que aquele lugar era mágico. O homem riu e disse que aquele local se chamava golfo de Wesley Chapel, ou golfo de Elrod, para os mais velhos, e era um dos lugares onde o Lost River irrompia à superfície num estrondo violento, escapando das cavernas onde se escondia.
— E fique longe daquele lugar na estação das cheias — advertiu o velho. — Viu bem o nível da água hoje? Bem, ela vai subir uns 10 metros ou mais por aquele rochedo, quando a parte subterrânea do rio encher, e vai formar um redemoinho. Eu já o vi uma vez, menino, e ele afoga as pessoas. Se for lá na estação da cheia, vou lhe dar tanta palmada que vai ficar com a bunda vermelha.
Obviamente, Josiah foi até lá durante a estação das cheias. E o velho não estava mentindo — a água realmente subia pela face do rochedo e girava como um redemoinho. Havia um lugar raso no rochedo que o aparava, e a água irrompia dali, encontrava um canal seco e o enchia, corria um pouco por ele e desaparecia num dos buracos rasos para depois reaparecer logo adiante.
Era um rio estranho, e prendeu a atenção de Josiah durante um bom tempo de sua juventude. Ele e Danny percorreram os canais na época da seca e localizaram os buracos rasos. Havia mais de cem deles. Alguns engoliam a água como se estivessem mortos de sede, outros a cuspiam de volta à superfície como que a vomitando. E havia fontes também. Algumas eram tão pequenas que passariam despercebidas, a não ser que você estivesse parado em cima delas, fontes que exalavam um odor forte de ovos podres. Eles até encontraram vestígios de velhas habitações espalhadas ao longo do rio e pelas montanhas, com as madeiras apodrecidas e vigas de pedra cobertas de musgo.
O golfo tornou-se um ponto de visitas constantes de Josiah, mas ele ia lá somente com Danny e ninguém mais. Até que, uma noite, com 16 anos, Josiah resolveu levar uma garota chamada Marie para o local. Ela reclamou o tempo todo, disse que o lugar era sinistro e o impediu de colocar a mão em sua saia, e saiu com outro cara uma semana depois. Depois disso, Josiah nunca mais levou ninguém lá.
Às vezes, pessoas subiam e jogavam lixo pelo desfiladeiro e dentro da piscina, o que irritava Josiah como poucas coisas na vida. Ele tirou de lá um número incontável de latas de cerveja e pneus velhos. Certa vez, encontrou até uma privada. Quando ainda estava na escola, a área foi protegida pelo governo, sob a alegação de que era um local especial, e foi então limpa, sinalizada e passou a ser monitorada.
Josiah escalou o lado leste do rochedo e desceu até uma laje de pedra calcária que ficava acima da piscina. Sentou-se na pedra, balançando os pés, e abriu uma lata de cerveja que, àquela altura, já estava morna.
Se ele estivesse do lado oposto da mesma montanha e as árvores estivessem sem as folhas, Josiah conseguiria ver a casa onde fora criado, ou, pelo menos, o que restara dela. O lugar estava abandonado há dez anos e, na última primavera, uma árvore caíra e abrira um buraco no telhado logo acima da cozinha, o que permitiu a entrada da chuva. Ele ficou surpreso da prefeitura não a ter demolido quando vieram retirar a árvore.
O golfo ficava perto tanto da casa onde fora criado quanto da casa onde morava agora. Estava a 3 quilômetros do lugar onde nascera.
Três quilômetros. Era o mais longe que ele fora na vida. Três quilômetros de merda.
Bebeu outra cerveja enquanto o sol mergulhava por trás das árvores e o ar começava a refrescar. Lá embaixo, grandes troncos de árvores caídas se desgastavam como ossos que desbotavam, a água esverdeada se tornando negra à medida que ficava mais funda. Vez ou outra era possível ouvir um murmúrio na beirada da piscina, quando o Lost River liberava um pouco mais de sua água escondida que, com um sussurro constante, molhava as pedras mais próximas. Josiah abriu mais uma lata, mas não bebeu nada. Colocou-a ao lado e alongou as costas. Queria fechar os olhos e ficar em paz. E tentar não pensar no homem de Chicago ou no homem do sonho. Tentar não pensar em nada.