27
ANNE McKINNEY ATENDEU À porta com a garrafa na mão. Sorriu quando Eric apresentou Kellen a ela, mas manteve sua mão no batente como apoio. Parecia menos firme do que estivera na manhã daquele dia.
— É igual à sua, não é? — disse ela, oferecendo a garrafa a Eric.
Ele girou a garrafa na mão e concordou com a cabeça. Era igual em todos os detalhes, mas estava seca e na temperatura ambiente, parecia natural quando colocada em contato com a pele.
— É exatamente igual.
— Não sei a quem você pode recorrer para fazer uma análise comparativa. Talvez tenha sido uma ideia boba.
— Não. É uma ótima ideia. Kellen conhece alguém que pode ajudar.
— Que bom.
— A senhora tem certeza de que não se importa? Porque não gostaria de abri-la se pensasse que...
Ela fez um sinal negativo com a mão.
— Não tem importância. Tenho muitas outras e, de qualquer modo, duvido que alguém vá se interessar por elas depois que eu me for. Vou doá-las à sociedade histórica, mas eles não vão dar falta de uma dentre tantas.
— Muito obrigado.
— Como está se sentindo agora? — perguntou ela, com o que parecia uma preocupação genuína.
— Estou bem — mentiu, e então se surpreendeu ao dizer: — E a senhora?
— Ah, estou um pouco cansada. Provavelmente fiz mais coisas do que deveria.
— Desculpe.
— Não se preocupe com isso. Só que foi um dia daqueles... — Os olhos dela passaram pelos dele e pousaram nos cata-ventos alinhados no jardim, virados para a cidade logo abaixo, como sentinelas. — Um clima estranho está chegando. Se eu fosse vocês, teria um guarda-chuva à mão amanhã.
— Verdade? — disse Kellen enquanto admirava o céu azul. — Tudo me parece perfeito.
— Mas vai mudar — disse ela. — Vai mudar.
Agradeceram a ela mais uma vez, desceram os degraus da varanda e foram até o carro. Os sinos de vento estavam tocando, um lindo som numa tarde que iria escurecer depressa.
Kellen perguntou se Eric tinha algum local em que gostaria de ir jantar, e quando ele disse que não, os dois acabaram voltando ao bufê do cassino, pois Kellen disse que estava a fim de “devorar alguma coisa”. No momento em que entraram, Eric sentiu seu estômago revirar e a dor de cabeça embaçando sua vista, castigada pelas luzes que os rodeavam. Tudo que ele precisava fazer era comer alguma coisa. Com certeza, era só isso.
Quando chegaram ao salão, grande e bem iluminado, o cheiro de comida era forte, e Eric teve que prender a respiração por alguns instantes, para impedir um acesso de náusea que o odor trouxe. Seguiram a recepcionista até uma das mesas no meio do cômodo, e ele desejou que ela os tivesse colocado em outro lugar, talvez num canto ou, ao menos, encostados numa das paredes. Ao perguntar o que desejavam beber, Eric respondeu quase gritando:
— Basta água, obrigado. — Pois queria que ela fosse logo embora, como queria também que todos no salão sumissem até ele ter a chance de se recompor. Mas Kellen já se encaminhava para se servir, e ele o seguiu.
O prato em suas mãos parecia pesado, e ele começou a se servir sem pensar realmente no que escolhia. Acabou ficando cheio de frutas e legumes nas mãos e, quando percebeu, estava parado diante da seção de carnes, encarando um homem corpulento vestindo um avental branco e manuseando uma faca enorme, com a qual fatiava um assado. A faca entrava na carne, e o homem, apoiado nela, usava todo seu peso para cortá-la. Com isso, sangue jorrava do corte, formando uma pequena poça rosada na tábua de cortar, deixando os joelhos de Eric fracos e um zumbido nos ouvidos.
Ele se virou depressa, muito depressa, quase deixando cair o que havia no prato, e caminhou até a mesa, que parecia estar a quilômetros de distância. Sua respiração estava ofegante, o zumbido aumentara de intensidade e seu estômago ameaçava revirar-se. Chegou à mesa pensando que só precisava se sentar, precisava tirar os pés do chão.
Durante alguns segundos, pensou que pudesse se recuperar. Apoiou os braços na mesa e se concentrou em diminuir o ritmo da respiração. Estava começando a se sentir melhor quando Kellen voltou e se sentou na cadeira ao lado dele, com um prato de comida fumegante nas mãos. O zumbido retornou e seu estômago começou a dar voltas.
Kellen estava em outra sintonia, conversando sem parar enquanto remexia a comida com o garfo e a faca. Eric não conseguia nem falar. A única coisa que sabia é que tinha de sair dali imediatamente.
Colocou-se de pé o mais rápido possível, tropeçando na própria cadeira, mas ainda assim passando por ela, com os olhos fixos na saída e no corredor adiante, que pareciam ondular com todas aquelas luzes agressivas do salão, que também pareciam se mover, ao mesmo tempo que o som em seus ouvidos se transformava num rugido ensurdecedor. Uma onda de calor o envolvia, se espalhava por seus membros e formigava ao longo da pele quando passou pelo caixa e continuou de pé em direção ao corredor. Vou conseguir, pensou, pouco antes do calor explodir num inferno insuportável. As luzes dançantes ficaram cinzentas, depois pretas, ele caiu de joelhos e a sala desapareceu.
Uma leve, suave melodia de cordas o ergueu e o conduziu através de um túnel que levava de volta à consciência. O som era maravilhoso, reconfortante, e, quando começou a desaparecer, ele ficou desesperado com a perda e com raiva por ter que deixá-lo ir.
Abriu os olhos e encarou uma luz forte sobre sua cabeça. De repente, um rosto surgiu e a bloqueou, o rosto de Kellen Cage com preocupação no olhar. Repetia o nome de Eric, e ele sabia que deveria responder, mas não queria, não queria que ninguém falasse nada, porque se todos ficassem em silêncio, talvez ainda conseguisse ouvir aquele violino de novo.
O primeiro pensamento coerente que teve foi o frio. No lugar da pele que sentiu tanto calor antes de ter desmaiado, agora sentia um frio intenso, o que era até agradável. O calor fora horrível, anunciando um desastre físico, e o frio parecia ser a restauração da confiança de que seu corpo podia controlar a indisposição, como se dissesse: “Não se preocupe, companheiro, desligamos as caldeiras para você.”
— Eric — falou Kellen outra vez.
— Sim. — Eric passou a língua nos lábios e repetiu. — Sim.
— A ambulância está a caminho.
Eric viu outras pessoas acima do ombro do amigo, um segurança que falava num rádio e um monte de curiosos. Ele fechou os olhos, envergonhado por tudo aquilo, percebendo afinal que havia desmaiado.
— Nada de ambulância — disse, ainda com os olhos fechados, e respirando fundo.
— Você precisa ir a um hospital — falou alguém com uma voz profunda e desconhecida.
— Não. — Eric abriu os olhos outra vez e levantou-se devagar até ficar sentado, com os joelhos presos entre os braços, buscando restabelecer o equilíbrio. — Preciso de um pouco de açúcar, só isso. Hipoglicemia.
O segurança concordou com a cabeça, mas o rosto de Kellen dizia porra nenhuma. Uma mulher murmurou que sua irmã também sofria dessa doença, e saiu para pegar um biscoito para ele.
Ele já estava de pé no momento em que ela voltou. A ideia de comer alguma coisa lhe deu enjoo, mas tinha que manter a mentira. Assim, pegou o doce e o copo de suco de laranja que ela trouxe e engoliu-os de uma vez só.
— Tem certeza de que não quer ir para o hospital? — perguntou o segurança.
— Sim.
A ambulância foi dispensada, então, e Eric agradeceu à mulher e ao segurança, e fez uma piada sem graça para o resto dos curiosos sobre estar feliz por ter acrescentado um espetáculo ao jantar deles. Em seguida, disse a Kellen que queria voltar para o hotel.
Os dois saíram do local e andaram em silêncio pela calçada até o estacionamento. No meio do caminho, Kellen falou:
— Hipoglicemia?
— Pois é. Não tinha mencionado isso a você?
— Hum, não. Você deve ter esquecido.
Chegaram no carro e Eric ficou de pé, com a mão na maçaneta na porta do carona por alguns segundos antes que Kellen a abrisse. Dentro do carro, Kellen virou-se para ele:
— Você deveria ir agora mesmo para o hospital.
— Só preciso descansar.
— Só precisa descansar? Cara, você nem sabe o que aconteceu lá dentro. Num minuto, você estava sentado na mesa; no outro, estava desmaiado no corredor. Quando acontece uma coisa assim, não é de descanso que precisamos, mas de um médico.
— Talvez eu procure um amanhã de manhã. Agora só quero me deitar um pouco.
— Para, no meio da noite, você enrolar a língua ou ter alguma outra merda e morrer dentro daquele quarto?
— É pouco provável que isso aconteça.
— Olhe, só estou dizendo que...
— Já entendi — respondeu Eric, e a entonação foi suficiente para que Kellen não o forçasse mais. Ele encarou o rosto de Eric por mais alguns segundos, deu de ombros e virou de costas.
— Agradeço a preocupação — disse Eric, mais comedido. — De verdade. Mas não quero ir para um hospital e ter que dizer a um médico que estou desmaiando por causa da Água Plutão, está bem?
— Você acha que foi por causa da água?
Eric assentiu.
— A dor de cabeça voltou e estava ficando cada vez pior. Quando saímos da casa da Anne, eu já não me sentia muito bem. Achei que melhoraria se comesse alguma coisa.
— Não ajudou.
— Não. Desculpe ter estragado seu jantar, por sinal. Você estava morrendo de fome, dava para ver.
Kellen riu.
— Não tem problema. Sempre posso comer depois. Mas isso que você está sentindo... Você precisa saber o que é.
— É síndrome de abstinência — respondeu Eric.
— Você acha?
— Sim, com certeza. Os problemas físicos desaparecem quando bebo um pouco mais da água e se tornam piores se eu ficar muito tempo sem ela. Anne McKinney tem razão, tenho que descobrir o que há naquele negócio.
— E até lá, o que vai fazer?
Eric não respondeu.
— Foi por isso que sugeri o hospital — falou Kellen. — Acredito em você. É provável que seja abstinência do que quer que tenha na água. Mas, se está piorando, isso pode levá-lo a um problema sério. O que aconteceu lá dentro foi assustador.
— Posso tomar um pouco mais dela, se isso fizer com que você fique mais calmo — disse ele, brincando, mas Kellen virou a cabeça de lado, pensativo.
— Uau, você se daria bem no Alcoólicos Anônimos — disse Eric. — Essa não é uma das ideias que você deveria ter.
— Não. Só estava pensando: o que aconteceria se você tomasse uma água diferente?
— Já bebi cerca de dez copos de água hoje, na tentativa de lavar o estômago e eliminar o efeito dessa coisa. Não adiantou nada.
— Não estou falando de água normal. Estou falando de outra Água Plutão. — Kellen indicava a garrafa que Anne McKinney dera para Eric. — É só uma ideia. Hoje à noite, se as coisas ficarem feias, experimente a garrafa que ela lhe deu antes da sua.
Kellen deixou Eric no hotel, com um olhar de um pai observando o filho atravessar uma rua de tráfego intenso.
A dor de cabeça começou a voltar de mansinho no momento em que ele saiu do elevador, e o sentimento de derrota que teve ao tomar consciência disso foi enorme. Esperava que o incidente no restaurante tivesse sido punição suficiente, e que teria algumas horas de descanso. Mas, evidentemente, não era bem assim.
A luz da secretária eletrônica não piscava e o celular não indicava chamadas perdidas. Teve uma vaga sensação de apreensão por causa disso, pois esperava que Gavin Murray fosse tentar estabelecer um novo contato, fazer uma nova oferta — ou uma nova ameaça. Ligou para Alyssa Bradford, mas conseguiu apenas o correio de voz. Incomodado, esperou dez minutos e ligou novamente, só que dessa vez deixou um recado:
— Ligue assim que puder. Temos que conversar sobre um assunto muito sério.
Um assunto muito sério lhe pareceu uma frase bastante leve. Onde estaria Gavin Murray agora? Não vira a van azul enquanto Kellen o trazia de volta para o hotel, mas achava pouco provável que Murray já estivesse na estrada para Chicago. Eric pegou o laptop, conectou-se à internet e fez algumas pesquisas sobre o nome de Murray e de sua empresa, a Soluções de Crises Corporativas. Não encontrou muita coisa pesquisando Gavin Murray — o resultado mais interessante foi esse nome ter surgido numa lista de militares presentes numa reunião em Fort Bragg, a sede do pessoal das Operações Especiais.
A Soluções de Crises Corporativas não tinha exatamente o que se pode chamar de página na internet. Havia um site com esse nome, mas parecia vago, e de propósito. Algumas páginas de detetives particulares mostravam links para a SCC. Que inferno, ele devia ligar para Paul Porter e perguntar se o ex-sogro sabia de alguma coisa. Paul trabalhara vinte anos como advogado criminal antes de vender seu primeiro livro e abandonar a profissão para se tornar escritor de best sellers, cujo personagem principal é um intrépido advogado que desvenda crimes de difícil solução, sem dúvida um reflexo de alguma frustração pessoal. Ainda assim, o homem tinha boas relações na polícia e nas cortes de Chicago, tanto devido aos seus livros quanto ao seu passado profissional, e era provável que tivesse ouvido falar da SCC, e talvez até mesmo de Gavin Murray.
— Não vou dar esse prazer a ele — murmurou Eric. Era exatamente o que Paul gostaria, o genro rebelde chorando por ajuda. O filho da puta chegara a sugerir uma vez que ele e Eric trabalhassem juntos na venda dos direitos de seus romances para o cinema, coisa que ele estava guardando todos esses anos a despeito das ofertas. Eu poderia escrever e você dirigiria, falou Paul. Sim, teria sido uma dupla e tanto.
Antigamente, Eric até gostava do sogro. Davam-se muito bem quando estavam separados por alguns milhares de quilômetros e a carreira de Eric decolava. Naquela época, Paul demonstrava tanto egocentrismo em relação à sua série de romances de detetive quanto hoje, mas isso não incomodava Eric, talvez porque as coisas estivessem indo bem para ele. Dava-lhe uma certa proteção. Foi somente quando se mudaram para Chicago que Paul começou a pegar no pé dele e as coisas foram de mal a pior. Todas aquelas malditas sugestões, suas ideias, as propostas de roteiros — merda, elas nunca chegaram ao fim.
Fechou o laptop, suspeitando que, se ficasse com os olhos na tela, sua dor de cabeça poderia aumentar. Apagou as luzes e ligou a TV, tentando se distrair da dor. Sobre a mesa, a garrafa de Alyssa Bradford brilhava e suava; e, ao lado, a de Anne McKinney continuava escura e seca.
Deixe-as quietas, disse a si mesmo. Que fiquem ali sem serem tocadas. Sei o que vai acontecer comigo e posso aguentar. De qualquer modo, não beberei a água outra vez.