29
UMA HORA DEPOIS DE Kellen ter ido embora, a dor de cabeça de Eric voltou com força total e ele tomou mais um analgésico, bebeu alguns copos d’água e aumentou o volume da TV procurando por alguma coisa que o distraísse.
Mas nada funcionou.
Por volta das 11 horas da noite, ele já tinha desligado a TV e estava com um travesseiro sobre a cabeça.
Posso vencê-la, disse para si mesmo. Posso esperar passar. Não vou beber a água.
O zumbido logo voltou aos seus ouvidos e rapidamente se transformou num badalar sonoro. Sua boca estava seca e, quando ele piscava, tinha a sensação de que seus olhos estavam cheios de areia.
É terrível, mas também é verdade. Essas coisas são melhores do que as alternativas. Não estou vendo nada a não ser as paredes desse quarto, seus móveis e as sombras, não vejo nenhum morto em vagões de trens cheios de água. Posso lidar com isso. Posso suportar.
Quando a náusea chegou ao máximo, ele foi direto ao banheiro para vomitar, e se sentiu um pouco melhor antes que uma segunda ânsia o atingisse e levasse embora todas as forças que ainda lhe restavam.
Que venha, pensou ferozmente, enquanto se deitava no chão, a bochecha encostando no ladrilho frio e um fio de saliva escapando-lhe dos lábios. Que venha com força total, porque eu não vou beber aquela água, nem um gole sequer.
O enjoo voltou, embora estivesse de estômago vazio, e veio mais uma vez. Por fim, Eric não teve forças para se levantar do chão, abatido pelos golpes secos que pareciam afastar suas costelas ao mesmo tempo que comprimiam seus órgãos. A dor de cabeça crescia e sua lucidez desaparecia.
As visões eram ruins, é verdade, mas aqueles sintomas de síndrome de abstinência podiam matá-lo.
Pensou na sugestão de Kellen, as palavras flutuando em sua mente enevoada e dolorida, enquanto permanecia deitado ali no chão: Hoje à noite, se as coisas ficarem feias, experimente a garrafa que ela lhe deu antes da sua.
A garrafa de Anne permanecia sobre a mesa, e parecia tão normal quanto possível. Pelo menos estava assim da última vez que ele olhou. Isso acontecera no momento em que foi ao banheiro, e não tinha ideia de quanto tempo se passara desde então. Talvez umas cinco horas, talvez 15 minutos. Não podia dizer ao certo.
Não conseguia se levantar. Podia apenas se apoiar nas mãos e nos joelhos, enquanto se balançava contra a porta, derramando baba pelos lábios, a imitação humana de um cão raivoso. Começou a engatinhar, sentiu o chão mudar de ladrilho para carpete e foi para a esquerda, em direção à mesa. Piscou os olhos com força, a fim de clarear a visão, e então viu que algo relampejava sobre a mesa. Uma luminescência pálida que parecia uma luz guia.
Avançou nessa direção e parou de súbito. O cão raivoso ficou de pé.
A luz vinha da garrafa de Alyssa Bradford. Tinha um brilho pálido que não parecia vir de dentro dela, mas que a envolvia, como uma espécie de fogo de santelmo.
Beba.
Não, não. Não beba. A grande questão, o motivo daquele sofrimento absurdo, era evitar beber um só gole daquela água.
Hoje à noite, se as coisas ficarem feias experimente a garrafa que ela lhe deu antes da sua.
Sim, a dela primeiro. Não estava brilhando, não estava coberta de gelo, parecia perfeitamente normal. Ele se jogou sobre a mesa e tentou pegá-la, mas, quando o fez, sua mão foi diretamente para a garrafa que brilhava, pois uma parte dele a desejava desesperadamente. Conseguiu impedir o movimento e desviou a mão para a garrafa de Anne McKinney, fechou os dedos em torno dela e a trouxe até perto dele. Estava, mais uma vez, ofegante. Abriu o objeto rapidamente, levou-a à boca e bebeu.
Estava horrível. O gosto e o cheiro de enxofre eram insuportáveis, e ele deu apenas dois goles antes de colocá-la de lado. Engasgou de novo, apoiou-se nas pernas da mesa e esperou.
— Faça efeito — murmurou. E correu a ponta da língua em volta dos lábios secos e rachados. — Faça efeito.
Porém, tinha certeza de que não faria. A água que seu corpo tanto desejava estava na outra garrafa, a que brilhava palidamente e juntava gelo dentro de um quarto a vinte graus de temperatura. Essa versão, a versão sadia, não faria efeito nenhum.
Então, sua respiração começou a normalizar. Essa foi a primeira mudança perceptível: podia encher seus pulmões de ar. Poucos minutos depois, sentiu a náusea diminuir e a dor de cabeça ficar mais suave, tanto que conseguiu ficar de pé e se dirigir ao banheiro, onde lavou o rosto com água fria. Ficou lá algum tempo, apoiado à bancada, até levantar o rosto e se olhar no espelho.
A água de Anne estava fazendo efeito. O que aquilo significava? Bem, de alguma maneira, a Água Plutão tinha algo a ver com o que acontecia com ele, era parte dos sintomas que sentia. Mas ele não podia acreditar que fosse a única causa, pois a água de Anne não tinha as mesmas propriedades bizarras da garrafa de Alyssa Bradford. Ainda assim, acalmou a agonia que vinha da água da mulher que o contratara. O que quer que tenha entrado em seu organismo agora parecia tê-lo acalmado. Satisfazê-lo.
Como se tivesse acabado de se alimentar.
Josiah não conseguiu imaginar como dormira tanto tempo sobre uma laje de pedra, sem nem mesmo um travesseiro sob sua cabeça. Mesmo assim, dormiu até depois do pôr do sol. Quando abriu os olhos, os topos das árvores acima eram como sombras farfalhantes e, ao se sentar com um grunhido, a piscina de água lá embaixo já não era mais visível. A noite estava escura.
Duas das cervejas permaneciam ali ao seu lado, quentes e ainda fechadas. Abaixo dele, o golfo continuava a borbulhar e ele se levantou, intrigado, pensando sobre o sonho que tivera. Não era frequente Josiah sonhar, e ele não se lembrava de ter tido o mesmo sonho duas vezes — nem mesmo uma variante de um sonho anterior.
Mas esse voltara; este sonho do homem no trem. Estranho.
Em geral, ele costumava voltar pelo mesmo caminho em que viera, mas não tinha uma lanterna e a trilha no escuro era difícil até mesmo para quem a conhecia. Muitas raízes para tropeçar e buracos para torcer o pé. Pegar a estrada seria um caminho mais longo, porém mais fácil.
Saiu da laje, subiu até o topo do rochedo e lá encontrou a trilha que levava ao caminho de cascalho feito pelo governo. Daí, pegou a estrada. Ouviu um cachorro latir ao longe. A lua e as estrelas cintilavam e iluminavam o chão com um fraco brilho esbranquiçado. Do lado direito, viu as laterais brancas da Wesley Chapel se destacando no escuro e alguns objetos à sua volta: as lápides do velho cemitério que também refletiam a luz da lua. Virou à esquerda, na direção de sua casa.
Nenhum carro passava. Continuou a caminhar em direção ao sul, com vastos campos ladeando a estrada para depois entrar pela floresta de Toliver Hollow, quando a estrada se curvou para o leste. Andou naquela direção por um certo tempo antes de pegar outra estrada e seguir, mais uma vez, rumo ao sul. Menos de um quilômetro adiante, saiu da estrada pavimentada e pegou outra, de terra. Estava quase chegando. Não dera mais do que vinte passos na terra quando parou de súbito e ficou em estado de alerta.
A lua estava quase cheia e brilhante entre as nuvens, e iluminava alguma coisa além da casa de Josiah.
Um para-brisa.
Um carro.
Estacionado em frente à fazenda dos Amish. E, até onde Josiah sabia, seus vizinhos Amish não tinham carros.
Hesitou por instantes. Resolveu deixar a estrada e seguir adiante pelo mato. Ao chegar mais perto, viu que era uma van. Local esquisito para se estacionar um carro, e mais esquisito ainda era constatar que estava parado num dos poucos lugares entre as árvores em que era possível ver a casa de Josiah ou, pelo menos, a silhueta dela. Os celeiros dos Amish estavam à vista, mas não a casa deles. Só a de Josiah.
Devia ser de alguém que ficara sem gasolina ou enguiçara e, sem dúvida, saíra da estrada e largara o carro ali até o dia seguinte. Nada com que Josiah devia ocupar sua mente, e não estava nem aí para o dono do carro. Não tinha nada com isso.
Foi isso o que pensou durante os cinquenta passos que deu, até que viu o brilho.
Um quadrado de luz azul dentro da van, que se acendeu por cinco segundos e depois se apagou. Um celular. Tinha alguém no automóvel. Na parte de trás.
Sentiu algo escuro se espalhar por dentro de si. Era algo que provocava um sentimento que ele conhecia bem: seu mau gênio crescendo nas ocasiões em que, com certeza, seus punhos se agitariam e sangue seria derramado.
Alguém estava espionando sua casa.
Não havia outra coisa que interessasse por perto. Nada além dos campos, das árvores e da casa de Josiah Bradford.
Então, lembrou-se de algo que já vira, mas que ignorara — aquela mesma van azul estivera parada perto da casa de Edgar quando aquele homem de Chicago e o negro saíram de lá. Josiah passara por ela e notara que estava parada fora da estrada e sobre a grama. Exatamente como agora.
O filho da puta estava seguindo Josiah.
Não iria tolerar isso.
Largou as latas de cerveja na grama, saiu da estrada, entrou na vala coberta pelo mato e foi em frente, agachado. A van estava embicada de frente para a porteira, os dois lados expostos para a estrada, mas seu ocupante estava na parte de trás. Havia uma grande chance de ele estar espreitando a casa, e não a estrada.
Levou um bom tempo para chegar até onde o carro estava. Por duas vezes a luz azul surgiu e desapareceu — sem dúvida, quem quer que estava lá consultava as horas no celular periodicamente. E devia estar impaciente, imaginando onde Josiah poderia estar.
Várias ideias surgiram na cabeça de Josiah, opções sem fim. Poderia ir direto até o carro, bater na porta e mandar o filho da puta sair de lá de dentro. Poderia pegar uma pedra grande na vala e usá-la para quebrar o para-brisa. Poderia se arrastar até em casa e pegar sua espingarda. De uma forma ou de outra, tiraria o babaca de dentro do carro e o faria responder a algumas perguntas.
Pelo menos, esse deveria ser seu desejo: descobrir quem era aquele homem e o que diabos fazia ali. Mas o curioso é que Josiah já não se importava tanto. As perguntas que queria fazer já não pareciam ser fundamentais. Tudo que importava era o fato de ter alguém ali, de olho na sua casa. Danem-se as respostas — Josiah queria castigo. Queria engatinhar até embaixo do carro, furar o tanque de gasolina e tacar fogo nele. Observar aquele filho da puta desconhecido explodir no céu com uma bola de fogo alaranjada, e ensiná-lo que existia gente com quem se podia brincar e gente com quem não se brincava, e que Josiah Bradford estava, definitivamente, no segundo grupo.
Ao pensar nisso, enfiou a mão no bolso e pegou o isqueiro, por um minuto considerando essa ideia. Mas não, aquelas respostas eram importantes, e, se ele explodisse a van antes de elas serem respondidas, com certeza iria se arrepender. Portanto, o dilema era como tirar o homem de dentro da van e fazê-lo falar. Bem, o isqueiro talvez pudesse ajudar, afinal.
Tirou sua camiseta e apalpou-a até sentir um dos furos que havia nela. Enfiou os dedos por ele e rasgou o algodão barato, fazendo um enorme barulho. Então, foi mais devagar, fazendo menos barulho, e rasgou a roupa até ter cinco tiras separadas de tecido. Ao terminar, enfiou-as nos bolsos e tateou o fundo da vala até achar uma pedra grande — que mais parecia o canto de um bloco de concreto —, e se arrastou de barriga, com o mato e o cascalho rasgando sua pele, até escalar a estrada na direção da van.
Devagar, fez o percurso pacientemente, parando de vez em quando para respirar e verificar sua posição. A vala do outro lado da estrada era mais profunda e acabava bem onde a van estava parada. Ela continuava por um tubo de aço por debaixo da estrada de terra, que estava cheio de folhas secas. Josiah esperou alguns instantes, e como não ouviu nada, se enfiou nele e deslizou por baixo da van.
Saiu do bloco de concreto, e foi se arrastando, com a barriga no cascalho, até ficar sob a parte dianteira da van. Enfiou a mão nos bolsos para tirar as tripas da camiseta e o isqueiro. Acendeu o isqueiro e queimou a ponta de uma das tiras de pano, e depois a outra. Assim que as duas pegaram fogo, saiu dali debaixo e levou-as até a vala cheia de folhas e grama secas, devido aos muitos dias de sol e vento. Não aconteceria outra coisa senão o fogo se alastrar, mas era justamente o que queria fazer: incendiar.
Estava com uma terceira tira de tecido, pronta para ser incendiada, mas o fogo já tinha pegado bem no fundo da vala, então ele a deixou e se esgueirou por baixo do automóvel, outra vez.
Foi a melhor coisa que fez, porque o homem na van percebeu o fogo quando este ainda estava no início. Josiah ouviu um barulho no interior e, em seguida, a porta se abriu, alguém saiu e falou num sussurro:
— Que diabo é isso? — Essa pessoa andou em direção à vala e começou a pisar nas chamas para apagá-las. Quando Josiah percebeu o que o outro fazia, avançou por baixo da van até o outro lado, fora de sua vista, e seguiu agachado até a parte mais atrás, ajoelhou-se e pegou o bloco de concreto.
Josiah se levantou para dar a volta no carro, talvez a 3 metros de distância do homem, que ainda estava pisando na grama, apesar de o fogo já ter se extinguido. Ele apenas pretendia mostrar o pedregulho que tinha em mãos e dizer a ele que era hora de começar a falar. Entretanto, enquanto contornava o veículo, viu que o outro carregava uma pistola. Ainda bem que não fui bater na porta da van, pensou Josiah, e pulou de volta para a vala e balançou a mão com o bloco chamuscado.
O homem era rápido. Virou-se e já estava com a arma levantada um segundo antes da pedra acertar-lhe a cabeça. O impacto fez o ombro de Josiah estremecer e produziu um som úmido de algo triturado no silêncio da noite. Os joelhos do homem se dobraram e ele caiu na vala, com sangue pingando na grama e a arma largada ao seu lado. Estava acabado, percebeu Josiah, mas mesmo assim deu-lhe outra pedrada, com mais força dessa vez, e o som produzido foi terrível, como algo rígido que se quebrava e amolecia logo em seguida.
Por um momento, Josiah permaneceu parado, agachado sobre o homem, que não fez nada mais do que estremecer. Em seguida, agarrou o outro pelo queixo, virou sua cabeça para vê-lo melhor e, mesmo no escuro, o que Josiah viu fez com que soltasse a respiração num sopro entre dentes. Tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e inclinou a chama em direção à cabeça do homem.
— Que merda, Josiah, que merda. — E apagou o isqueiro pois não queria mais olhar para aquilo.