30
IMEDIATAMENTE APÓS BEBER A água de Anne McKinney, Eric caiu no sono. Dormiu profundamente, deitado de costas sobre a colcha da cama. Quando acordou, a primeira coisa que sentiu foi um grande alívio por ter percebido que a dor terrível passara e que estava bem outra vez.
O quarto estava frio — ele colocara o ar-condicionado no máximo, uma tentativa de minimizar os suores causados pela febre — e Eric estivera enrolado nas cobertas bem embaixo da saída do aparelho. Frio demais para dormir.
Virou os pés e tocou o chão, sentou na cama e, por um momento, respirou fundo, testando suas sensações físicas em busca de algum ponto fraco. A garganta estava um pouco irritada, os lábios secos, mas fora isso, sentia-se quase normal.
Em cima da mesa, a garrafa de Bradford ainda brilhava, embora o brilho parecesse um pouco mais fraco, como o reflexo de uma fonte de luz da qual ele não conseguia enxergar a fonte. Levantou-se, foi até o termostato e aumentou a temperatura. Agachou-se e tocou os dedos dos pés. Em seguida, esticou os braços acima da cabeça, sentindo-se livre por sua capacidade de se movimentar sem sentir dor.
As cortinas pesadas tinham sido fechadas com a intenção de bloquear qualquer réstia de luz que pudesse alimentar suas dores de cabeça, mas agora Eric atravessava o quarto para abri-las e observar a rotunda lá embaixo. Linda. Durante a noite, o grande pêndulo no centro da cúpula tinha lâmpadas que trocavam de cor a cada segundo. Abriu a porta da sacada, saiu, segurou-se no parapeito e olhou para baixo.
Estava tudo vazio e silencioso. Não havia ninguém no átrio ou em qualquer uma das outras sacadas. Naquele instante este mundo era seu. Só seu.
Sabia que devia se deitar, que seu corpo precisava de muito descanso depois de tudo que passara, mas não era o que ele queria. Em vez disso, conservou a porta aberta e empurrou uma cadeira até a sacada, sentou-se e colocou os pés apoiados sobre o parapeito, e ficou admirando as luzes mudarem de cor naquele incrível teto. Roxo, verde, vermelho, roxo, verde, vermelho, roxo, verde...
As cores se tornavam cada vez mais fracas, mergulhando numa escuridão quebrada apenas por pequenos pontos de luz branca, e então o teto e o hotel desapareceram por completo e ele se viu em um lugar completamente diferente.
Era uma noite esplendorosa, sem nuvens e cheia de estrelas. Sob o brilho de uma lua crescente surgiu uma cabana que parecia imprópria para moradia. Havia trapos de pano socados nas falhas, enfiados nos buracos das telhas que faltavam, a porta da frente estava separada do dormente e segura apenas pela dobradiça de cima. Das três janelas frontais, só restavam duas com os vidros inteiros. Além da casa, um telheiro inclinado e um anexo sem porta.
Em algum lugar no escuro, suave e doce, o som de um violino. Não havia ninguém à vista, gente ou animal, apenas aquela melodia triste e arrepiante.
Surgiu outro som que alcançou e abafou a música do violino. Era um barulho forte do motor de um carro e, de súbito, os faróis iluminaram a sujeira cinzenta da fachada da casa. Era um conversível, com estribos largos, que estacionou bem diante da varanda. A porta do telheiro abriu-se e surgiu um homem que olhou na direção do carro. Era alto, porém curvado, e sua camisa aberta deixava à mostra o peito nu. Seu cabelo era encaracolado e grisalho e descia pelas orelhas até o pescoço. Tinha um charuto pendurado num dos cantos da boca.
— É você, Campbell? — gritou, com os olhos apertados a fim de se protegerem da luz dos faróis.
— Você recebe muitos outros visitantes? — respondeu friamente.
O velho resmungou e parou perto do telheiro enquanto Campbell Bradford ia em direção a ele, empurrando seu chapéu-coco para o topo da cabeça. Largou o carro com o motor ligado e os faróis acesos, o que fez com que a luz o iluminasse pelas costas e projetasse uma sombra enorme na frente do telheiro.
— Você está atrasado — murmurou o velho, estendendo-lhe a mão de forma amigável.
Campbell não removeu as mãos dos bolsos.
— Não quero seu aperto de mão, quero sua bebida. Vá buscá-la. Não pretendo passar nem mais um minuto do que o necessário neste barraco.
O velho recuou devagar, enquanto praguejava com a cabeça baixa. Talvez porque não quisesse olhar diretamente para as luzes dos faróis ou porque tentava evitar os olhos de Campbell. Deu meia-volta e entrou no telheiro. Lá dentro, acendeu uma lanterna que projetou faixas de luz dourada nas paredes. No centro do telheiro havia um tanque enferrujado. A porta se fechou e ficou impossível de enxergar o velho.
Campbell Bradford permaneceu do lado de fora, cercado pela luz dos faróis, num balanço impaciente, e um olhar entediado para a floresta que seguia morro acima. Tirou o chapéu-coco, coçou a cabeça e recolocou-o de novo. Retirou um relógio de um bolso interno, abriu-o de frente para a luz, até levantar os ombros num suspiro, fechar a tampa e o guardar.
Tudo estava quieto desde que chegara, mas agora o violino começou a tocar de novo, ainda mais suave do que antes. Campbell olhou para a casa e depois permaneceu ali, parado e entediado. A melodia continuava. Ele levantou a cabeça e virou-a meio de lado, quieto, tentando escutar melhor.
O velho reapareceu com um garrafão em cada mão. Colocou-os aos pés de Campbell e virou de costas para voltar, mas Campbell avançou e segurou-o pelo braço.
— Quem está tocando esse violino?
— É o filho da minha irmã. Ela morreu de febre no ano passado e, desde então, ele está comigo.
— Traga-o aqui.
O velho hesitou, mas acabou concordando, passando por Campbell e pelos arbustos até entrar na casa escura. Um momento depois a música parou e a porta quebrada se abriu, e o velho voltou na companhia de um rapaz alto e magro. Seus cabelos louros claros refletiram o brilho da lua e iluminaram o violino que trazia nas mãos.
— Qual é o seu nome, rapaz?
— Lucas — respondeu ele, sem levantar os olhos.
— Há quanto tempo você toca?
— Não me lembro, senhor. Faz tanto tempo que nem me lembro.
— Quantos anos você tem?
— Quatorze, senhor.
— Que música era essa que você estava tocando?
Lucas arriscou levantar os olhos na direção de Campbell e, em seguida, abaixou a cabeça outra vez.
— Bem, ela não tem nome. É só uma música que eu mesmo compus.
Campbell Bradford deu alguns passos para trás e meneou a cabeça, surpreso. Ao fazê-lo, os faróis o iluminaram em cheio, e seus olhos pretos pareceram rodar contra a claridade, como a água que escorre por um ralo.
— Você compôs essa música?
— Não compôs nada — falou o velho. — Ele nem sabe ler partituras, só sabe tocar.
— Não estava falando com você — disse Campbell, e Lucas ficou tenso. — Que tipo de música é essa? Nunca ouvi nada parecido, rapaz.
— É o que chamam de elegia — respondeu ele.
— O que isso significa?
— Uma música para os mortos.
Fez-se silêncio por alguns momentos, os três ficaram ali iluminados pelos faróis com suas silhuetas marcadas nas tábuas velhas da parede do telheiro que abrigava o alambique, enquanto uma brisa suave balançava as copas das árvores em torno deles.
— Toque-a para mim — disse Campbell.
— Ele não toca para ninguém — falou o velho, e Campbell virou rápido na sua direção.
— Estou falando com você?
O velho recuou alguns passos depressa e levantou as mãos.
— Não tive a intenção de interrompê-lo, Campbell, só estou avisando. Ele não toca na frente de pessoa alguma. Não toca para ninguém, exceto para si mesmo.
— Mas vai tocar para mim — disse Campbell, com a voz mais negra do que a floresta à noite.
O velho, então, falou, com a voz trêmula de nervoso:
— Comece a tocar, Luke.
O rapaz não disse nada. Ficou um pouco inquieto com o violino caído, mas não o levantou.
— Você ouviu seu tio — falou Campbell. — Quando eu mandar você tocar, é melhor começar logo. Entendeu?
Ainda assim o rapaz não se mexeu. Houve uma pausa, cinco segundos no máximo, e Campbell deu um passo à frente e lhe bateu no rosto.
O velho gritou e avançou para acudi-lo, mas Campbell girou e lhe deu um soco, que o fez cair. Quando viu, o velho estava de costas sobre a vegetação rasteira. Campbell se debruçou sobre o garoto, que agora já começava a sangrar no lábio, e disse:
— Vamos tentar de novo.
Da grama, o velho falou:
— Luke, é só fechar os olhos. Vai ser como tocar no escuro, nada mais. Feche os olhos e toque, rapaz!
Ele fechou os olhos. Levou o violino ao ombro, ergueu o arco — que tremia violentamente em sua mão — e começou a passá-lo sobre as cordas. No início, a música estava terrível, nenhuma nota saía afinada devido à tremedeira. Mas, aos poucos, sua mão ficou mais firme, a melodia cresceu e seu som se espalhou na noite.
Tocou por um longo tempo, e ninguém disse uma palavra. O velho se pôs de quatro sobre a terra poeirenta, para depois se levantar hesitante, e encarou Campbell, que lhe indicou o telheiro com a cabeça. Ele entrou lá e voltou com mais garrafões, oito no total, e os levou até o carro. Enquanto tudo isso acontecia, o rapaz tocava de olhos fechados, longe da luz.
Quando o velho acabou com sua última viagem, Campbell disse:
— Já chega. — E o rapaz parou de tocar e tirou o instrumento do ombro.
— O que acha de ganhar um dólar ou dois com isso? — falou Campbell.
— Ei, Campbell — interrompeu o velho —, não acho que seja uma boa ideia.
Campbell se voltou com um olhar letal, e qualquer argumento que o velho tivesse para acrescentar morreu em sua garganta.
— Gostei da música — disse Campbell — e vou levá-lo ao vale, para que ele possa tocá-la.
Enfiou a mão no bolso do colete e tirou um punhado de dinheiro que entregou ao velho.
— Aqui está. Cinco dólares extras. Satisfeito?
O velho contou o dinheiro com o polegar sujo, fez que sim com a cabeça e o colocou no bolso.
— Você toca essa música — Campbell disse ao garoto — e, se a tocar direitinho, também vai ganhar alguns dólares. Vamos, entre no carro.
— Quando vai trazê-lo de volta? — perguntou o velho.
— Quando eu me cansar dessa melodia — respondeu Campbell. — Por que ele continua parado no mesmo lugar?
— Você ouviu o que o senhor Bradford disse — alertou o tio do rapaz. — Entre no carro.
Ele os deixou e entrou no carro sem dizer uma palavra. Enquanto caminhava em direção ao facho de luz, ficou envolto por um estranho brilho cintilante, que agora se transformava em luzes coloridas: roxa, verde, vermelha e...
O teto da cúpula estava de volta aos olhos de Eric, sentado na sacada. Não havia mais carro ou casa na floresta ou rapaz com violino. Não havia mais bofetadas zangadas de um homem que ouviu ser chamado de Campbell. O passado se fora. Levantou-se devagar e olhou à sua volta. Virou a cabeça para a direita e para a esquerda e viu que agora o quarto estava outra vez vazio e silencioso, e acima dele a cúpula mudava de cor, como uma sentinela silenciosa.