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CANSADO COMO ESTAVA DAQUELA cidade, naquela situação Josiah ainda podia se sentir grato por conhecê-la tão bem. Percebeu que tinha de se esconder rapidamente, pois não demoraria muito tempo para a polícia ir atrás de sua caminhonete. Merda, essa seria a primeira coisa que eles fariam, com uma coisa dessas acontecendo tão perto de sua casa. E ele não tinha a mínima vontade de falar com as autoridades sobre aquilo.
Era tempo de tomar a estrada e sumir de vista, e, embora essa ideia se mostrasse tentadora, encher o tanque da caminhonete e seguir para os lados do rio Ohio e suas redondezas, ele não seria tão burro a ponto de fazer isso. Tinha uns 24 dólares na carteira, e talvez mais 400 no banco, que não o levariam muito longe.
Dirigiu por uns 5 quilômetros rumo ao oeste de sua casa, para dentro da floresta que cobria os morros entre os condados de Martin e Orange e seguiu por uma estrada de cascalho marcada com uma meia dúzia de placas onde se lia: NÃO ULTRAPASSE. Há muitos anos aquele lugar fora um acampamento de madeireiros, e só o que restava agora era um galpão abandonado e um telheiro de oficina caindo aos pedaços. No entanto, o local era isolado. Josiah o descobriu certa vez quando caçava veados — a propriedade não estava aberta à caça, mas ele estava pouco se lixando — e deixou-o arquivado em algum canto de sua mente, tendo certeza de que aquele lugar poderia ser útil para alguns dos empreendimentos ilegais que cometia de tempos em tempos. O que fazia agora não era exatamente o uso que pensara originalmente — no entanto, estava satisfeito por tê-lo descoberto no dia da caçada.
Parou, tirou sua caixa de ferramentas da caminhonete e pegou um cortador de vergalhão. Deveria ter trazido também uma serra para cortar ferro, mas não teve tanto tempo assim para sair de casa. Deixou os faróis acesos, para que eles iluminassem as bambas portas do galpão. Exatamente como se lembrava, havia uma corrente enferrujada e não muito grossa com um cadeado que a mantinha fechada. Precisou de apenas alguns minutos de grunhidos e suor — sua mão queimada e ferida ardia como brasa cada vez que ele apertava o cortador — mas acabou conseguindo abrir um dos elos da corrente, forçou-a e deixou o cadeado cair no chão.
No início, as portas estalaram e rangeram, mas depois se abriram sem problemas. Do lado de dentro, havia espaço suficiente para a caminhonete. Entrou com ela, mas, ao passar pela porta, ouviu um barulho de algo arrastando na parte inferior do carro. Então, desligou o motor e ficou ali, dentro do automóvel, sentado no escuro.
Que merda ele tinha feito? Mas que merda ele tinha feito?
Os últimos 15 minutos tinham sido tão cheios de ação que sobrou pouco tempo para pensar. Mas, agora, dentro daquele galpão escuro, escondendo sua caminhonete da polícia (que logo viria procurá-lo), Josiah foi obrigado a tomar consciência do que acabara de ocorrer. Aquele homem estava morto, e foi ele que o matara. Assassinou-o e depois incendiou-o. Aquele não era um assassinato qualquer, devia ser um crime mais grave. Do tipo que o levaria à cadeira elétrica.
Não que Josiah nunca tivesse pensado em matar alguém, só não esperava que isso fosse realmente acontecer. Achava que, se tivesse de assassinar alguém, seria algo devagar e calculado, o resultado de muita provocação. Vingança por alguma ofensa grave que sofresse. Mas hoje à noite... Hoje à noite aconteceu tão depressa.
— Foi a arma que o matou — disse. — A culpa foi dele. Não devia ter puxado aquela arma.
É claro que fora isso. Josiah reagiu em legítima defesa, nada mais do que isso. Se alguém dá de cara com um homem lhe apontando uma arma, o que espera acontecer?
O problema é que não foi o primeiro golpe que o matou. Josiah tinha quase certeza disso. Ah, claro, ele o tinha nocauteado, mas o segundo golpe que foi fatal, quando o homem já estava sem sentidos dentro da vala e Josiah foi para cima dele e deu com o bloco de concreto na sua cabeça com toda a força. Aquela não era a natureza de Josiah; nunca chutara um homem que já tinha sido posto ao chão com um soco seu. Mas, hoje à noite, aconteceu. E naquele momento, naquele piscar de olhos, Josiah não se sentia como se fosse ele mesmo. Sentiu-se como outro homem, um homem que adorou fazer aquilo.
Merda, que coisa terrível. Você matou uma pessoa, é melhor que tenha um bom motivo e um bom plano para lidar com isso. Mas Josiah não tinha nada. Nem ao menos sabia quem era aquele filho da puta e o motivo de ele estar vigiando a casa. Por que o homem espreitava Josiah?
Estendeu a mão até o banco do carona e pegou a pasta que roubara, uma grande pasta de couro com uma alça de ombro, e procurou pela carteira. Ao pegá-la, acendeu a luz de dentro do carro e a abriu. A primeira coisa que viu foi uma identidade com uma foto. Investigador Particular Autorizado.
Um detetive. Aquilo não fazia o menor sentido, e o nome — Gavin Murray — não significava nada para Josiah. Observou bem a fotografia para ter certeza de que não conhecia o homem de forma alguma. O endereço, presente tanto na carteira de investigador quanto na de motorista, guardada no mesmo compartimento da carteira, era de Chicago.
A mesma cidade do homem que visitara Edgar com a desculpa de que viera fazer um filme. Dois moradores de Chicago em French Lick no mesmo dia, um com o propósito de fazer perguntas sobre Campbell e o outro para espreitar a casa de Josiah com uma câmera. O que será que esses desgraçados querem? Merda, Josiah não fazia ideia.
Tirou o dinheiro da carteira e colocou-o no bolso. Em seguida, procurou o que mais havia dentro da pasta, até encontrar outra pasta fina, de couro, de dentro da qual tirou um papel com o seu nome, data de nascimento e número da previdência social. Havia também uma lista de endereços, a maioria de 15 anos atrás, lugares que ele mal podia se lembrar de terem existido. A próxima folha de papel trazia detalhes de sua ficha da prisão, com o número dos processos, as datas em que foi encarcerado e as sentenças. Folheou mais algumas páginas e encontrou uma que dizia Contato com o Cliente. Nela havia dois números de telefone e um de fax, além de um endereço de e-mail, mas Josiah estava mais interessado no nome da pessoa:
Lucas G. Bradford.
Naquela manhã, a umidade chegara antes do calor. Era como uma brisa líquida que atravessava a porta de tela, como o perfume de uma rosa na madrugada, e Anne (que esperava ver nuvens pesadas quando se levantasse da cama) olhou pela janela e se surpreendeu ao ver o sol.
Tomou um banho, um processo que agora demorava bastante e que também lhe cobrava muito mais energia (por ter de segurar firme no suporte de metal), vestiu uma calça comprida folgada, uma blusa leve de algodão e os tênis brancos que usava todos os dias. Tinha que usá-los; o equilíbrio era o que a mantinha longe do hospital e do asilo. Entretanto, ela os odiava. Detestava-os muito profundamente, como raramente detestava qualquer coisa. Quando era jovem, Anne fora fã de sapatos. Tudo bem, isso era apenas uma meia verdade — era louca por eles. E adorava os de salto alto. Eram elegantes, e as moças precisavam saber como andar com eles, não podiam sair por aí pisoteando o chão, tinham que andar como uma dama. Anne McKinney sempre soubera como caminhar elegantemente. Recebia muitos olhares por causa de seu caminhar, sempre percebera homens olhando diretamente para suas ancas, mesmo depois de ter se tornado mãe.
Ia andando a passos curtos e firmes com seus calçados sem salto. Detestava aquele modo de andar, detestava os tênis. O passado zombava dela a cada passada.
Depois de se vestir, foi até a varanda para tomar as primeiras leituras do dia. O barômetro tinha caído para 29.80. Uma bela queda durante a madrugada. O sol já estava claro, mas o jardim não brilhava sob sua luz. A camada de orvalho que caíra durante a noite era muito tênue e escassa, diferente da que vinha caindo até então. Anne se abaixou para poder ver o céu por debaixo do telhado da varanda, e observou um bando de nuvens inchadas a oeste, claras na parte de cima, mas cinzentas na de baixo. Cúmulos-nimbus. Nuvens de tempestade.
Estes sinais: as nuvens, a grama seca, a queda da pressão, tudo indicava uma tempestade. Era a confirmação do que ela suspeitava desde ontem, mas sentiu um leve desapontamento quando estudou as nuvens. Com certeza eram formadoras de tempestade, mas de algum modo Anne havia esperado por algo maior. De qualquer forma, ainda era cedo. As grandes tempestades da primavera se formavam depressa, quase sempre de maneira imprevisível, então era difícil dizer o que aconteceria até o fim do dia.
Anotou todas as leituras em seu caderno. Era um ritual que sempre lhe dera prazer, mas hoje, por alguma razão, não estava surtindo o mesmo efeito. Ela se sentia diferente, irritada. Isso só acontecia quando algo fora do comum acontecia, como a visita de Eric Shaw, por exemplo. E Anne não tinha ninguém com quem repartir seus sentimentos. Foi nesse momento em que ela sentiu o peso da solidão. A frustrante casa vazia e o telefone que nunca tocava passaram a incomodar. Durante todos esses anos conservara sua mente íntegra, lúcida, com uma boa memória, e tinha orgulho disso. Entretanto, em manhãs como aquela, perguntava-se se ser assim valia a pena. Talvez fosse mais fácil sentir as muitas facetas da debilidade senil, e, quem sabe, com isso, entorpecer a noção dos cantos agressivos dos aposentos vazios que a circundavam.
— Ah, pare com isso, Annabelle — falou ela, bem alto. — Pare.
Não ficaria ali sentada por mais tempo, sentindo pena de si mesma. As pessoas tinham de agradecer por mais um dia, dar graças por cada momento que o Senhor nos permitisse viver nesta terra. Ela sabia disso. Acreditava nisso.
Entretanto, às vezes, ficava mais fácil acreditar nisso do que em outras ocasiões.
Voltou para dentro da casa, preparou umas torradas para seu café da manhã e sentou-se na poltrona para tentar ler o jornal. Mas não conseguia se concentrar. As memórias decidiram ressurgir nesta manhã, beliscando os calcanhares de sua mente. Ela desejava ter alguém com quem pudesse conversar. O telefone não tocara uma vez durante a semana inteira, o que, em parte, era culpa sua — esforçou-se tanto para convencer as pessoas da igreja e da cidade de sua completa independência que ninguém se preocupava muito com ela. Isso era bom, é claro, ela não queria ser motivo de preocupação para ninguém, mas... mas não faria mal se alguém viesse lhe fazer uma visita de vez em quando. Apenas para dar um alô e bater um papinho.
Céus, como Harold gostava de um bom papo. Inúmeras vezes, ela tivera de dizer: Harold, vá um pouco lá pra fora e dê um descanso aos meus ouvidos, apenas por não aguentar sua cantilena interminável. E as crianças... Ah, mas elas puxaram ao pai nesse quesito, pois ambas acabaram adquirindo um talento quase compulsivo para falar. E esta casa ficava cheia de conversa desde o nascer até o pôr do sol.
Abandonou o jornal, levantou-se e foi até o telefone, ignorando, como sempre, o aparelho sem fio que estava sempre ao seu lado. Afinal, era bom andar e se manter ativa. Ligou para o hotel e pediu para falar com Eric Shaw. Ocorreu-lhe na noite anterior que nunca perguntara qual era a família pela qual o rapaz buscava informações. Talvez pudesse ajudar. Talvez, se ele falasse o nome da família, ela lembrasse de algo e poderia lhe contar algumas histórias.
Porém, a chamada caiu na secretária eletrônica e ela deixou uma mensagem. Aqui é Anne McKinney; não é nada urgente. Só queria saber como tem passado.