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NUNCA ANTES EM SUA vida Eric sentira um terror tão grande.

Caiu de joelhos no chão, não por causa da dor física, mas devido à angústia que o invadiu.

— Suas vacas — disse, referindo-se às camareiras que já tinham saí­do dali há muito tempo e jogado fora sua água. — Vocês sabem o que fizeram? Sabem?

Ele sabia. A síndrome de abstinência iria voltar com força total e, desta vez, não havia nada que Eric pudesse fazer para tentar evitá-la, nada que pudesse tomar.

Ligue para Kellen. Peça que a traga de volta.

É isso: Kellen. Era a melhor chance que tinha. Pegou o celular no bolso, ainda de joelhos no chão, e digitou o número dele, mantendo a respiração presa enquanto ouvia o telefone tocando do outro lado da linha.

E tocou e tocou.

Então, a ligação entrou na caixa de mensagens e ele ficou alguns segundos sem saber o que dizer, abatido por um sentimento de derrota. Por fim, conseguiu resmungar seu nome e um pedido para Kellen ligar de volta. Não tinha como Eric saber onde o rapaz se encontrava e nem mesmo se estava com a garrafa. Talvez ele já a tivesse passado para outra pessoa.

Tudo o que precisava era de um gole. Bem pouco, o suficiente para manter aquele monstro adormecido. Mas nem mesmo esse pouco poderia ser encontrado, pois dera as duas garrafas, a de Bradford e a de Anne McKinney...

Anne McKinney. Ela morava logo ali, estrada acima, e tinha um monte de garrafas — todas velhas e ainda intocadas.

Tudo o que precisava fazer era ir até lá.

Colocou-se de pé novamente, trêmulo, usando uma das mãos na cama para se firmar. Respirou fundo algumas vezes e apertou os olhos, na esperança de afastar a dor e a náusea. Dirigiu-se à porta, abriu-a e seguiu pelo corredor. Não havia ninguém dentro do elevador dessa vez, o que foi ótimo, pois apenas se segurar na parede não era o suficiente agora — ele teve de se ajoelhar, um joelho no chão e o ombro e a cabeça na parede. O elevador tinha a parte de trás de vidro, com vista para o átrio do hotel, e viu uma menininha com tranças observá-lo enquanto puxava a manga da camisa do pai para apontar para ele. Finalmente, o elevador chegou ao térreo e as portas se abriram. Levantou-se, saiu, virou na direção da entrada e desandou num passo rápido e cambaleante. Ele sentia que a velocidade seria muito importante agora.

Deixara o Acura no estacionamento de baixo, mais perto da entrada, e correu até o carro embaixo da chuva torrencial que caía. Não havia mais qualquer vestígio de sol no céu. Por trás do hotel, as árvores tremiam e se agitavam.

Já estava com as chaves na mão quando chegou ao carro, abriu a porta e se jogou no assento. O calor na parte de dentro do veículo fez sua náusea piorar, E então ele abriu os vidros e a chuva entrou impiedosamente, molhando o estofamento de couro. Dirigia sob uma névoa de dor e nem mesmo percebeu que os limpadores de para-brisa ainda estavam desligados. Ligou-os, afinal, mas o movimento que faziam o deixou tonto e embaçaram sua vista ainda mais do que a própria chuva, então achou melhor voltar a desligá-los. Seguiu em frente, apenas com a mão direita na direção, e a cabeça para fora da janela, com os olhos apertados contra a chuva.

Enquanto dava voltas pelo estacionamento do cassino, e depois por French Lick, cada carro com que ele cruzava parecia ter três para-brisas e seis faróis. Num certo ponto, Eric deve ter invadido a pista da contramão, pois ouviu uma buzina e, com uma guinada violenta, guiou para a direita, atingindo o meio-fio e fazendo com que o pneu dianteiro subisse na calçada, voltando para a rua logo depois, com um som estridente. A tempestade estava sobre a cidade agora, e seus raios brilhantes estalavam e explodiam à frente de Eric, deixando seus olhos com uma película de luz branca.

Os pneus patinaram quando ele fez a curva que dava montanha acima, direto para a casa de Anne McKinney, mas o carro voltou ao caminho sozinho e, um momento depois, ele estava quase lá. Pôde ver as luzes das janelas e, no jardim, os cata-ventos giravam, emitindo flashes prateados.

Não conseguiu estacionar direito, pois os pneus derraparam na terra molhada. Pisou no freio, parou o carro, deixou-o engrenado e escancarou a porta com o motor ainda ligado. Correu pela chuva até a entrada da casa, mas, quando foi subir os degraus, seu sapato ficou preso por algum desnível e ele caiu de quatro no chão da varanda. Então, a porta se abriu e Anne McKinney o encarou com uma expressão de medo.

— O que está acontecendo? — falou a idosa.

— Preciso de um pouco d’água — disse ele. — Preciso de um pouco da sua água, rápido!

— Água Plutão? — perguntou ela, empurrando a porta para deixar apenas uma fresta entreaberta, o suficiente para vê-lo, como se estivesse com medo dele.

— Por favor. Peço desculpas, mas preciso dela. Estou me sentindo mal. Muito mal.

Ela hesitou por um segundo. Em seguida, escancarou a porta, esquivando-se para afastar a chuva que molhava seu rosto, e disse:

— Entre, então.

Na maioria das vezes, àquela hora, Anne já estaria de saída para o hotel, mas hoje era domingo, e, nas tardes de domingo, ela ficava em casa. Gostou que a chuva torrencial resolvera cair justo naquele dia, pois não gostava de dirigir nem um pouco num tempo como aquele.

Ela estava estudando os céus quando ele chegou. Os trovões mostravam toda sua força, e o brilho deles riscava a paisagem cinzenta, mas, desconsiderando a quantidade de chuva que caía, todo o resto parecia um temporal comum. Isso não só a surpreendeu como também a deixou decepcionada. O rádio do tempo — ou caixa do tempo, como seu marido chamava, um pequeno aparelho marrom que transmitia apenas as previsões do tempo atualizadas pelo Serviço Nacional de Meteorologia — estalava com os alertas comuns, mas não havia qualquer menção a observadores relatando tornados ou grandes tempestades. Apesar disso, Anne continuava a estudar as nuvens, como sempre fizera — ela nunca precisou do relato de outrem —, e não viu nada digno de nota.

Ela esperava por algo maior, e provavelmente foi por isso que a chegada barulhenta de Eric Shaw em sua varanda não foi tão surpreendente quanto deveria ter sido.

Ela o deixou no chão e foi até a escada. Ao pisar no primeiro degrau, uma sensação dolorosa pegou de surpresa sua coluna e seus quadris. Olhou de volta para Eric Shaw e viu a angústia em seus olhos, uma mistura de dor e terror. Esqueceu, então, das próprias dores e começou a subir a escada o mais depressa que pôde.

A caixa com as garrafas ainda estava no chão, pois ela não era forte o suficiente para recolocá-la no armário, e nesse momento dava graças por isso. Gastou apenas alguns segundos para pegar uma garrafa cheia, desembrulhá-la e começar a descer a escada com cuidado, a mão livre segurando no corrimão e cada pé pisando com firmeza em cada degrau. Eric engatinhara até a porta: encontrava-se sentado com as costas contra ela e a cabeça entre as duas mãos.

— Pronto, aqui está — disse ela, um pouco assustada ao lhe passar a garrafa, com medo de tocar nele. O que quer que fosse aquilo que acontecia com seu corpo e sua mente, não era certo, não era natural.

Ele pegou a garrafa da mão dela e entreabriu os olhos, o suficiente para poder ver o gargalo. Murmurou alguma coisa que ela não conseguiu entender.

— O que foi?

— Luzes — respondeu ele.

— O que têm elas?

— Desligue-as, por favor.

Ela se inclinou sobre ele, alcançou o interruptor na parede e o desligou, fazendo a sala cair na penumbra. Isso pareceu dar ao homem algum alívio enquanto bebia a água. Por anos ela guardou aquelas garrafas, intactas, algumas delas eram as últimas Águas Plutões originais em todo o vale, e agora Eric acabara com duas em dois dias. Bem, não era uma atitude cristã se preocupar com um detalhe como aquele diante do estado em que o pobre rapaz se encontrava.

A luz da cozinha ainda estava acesa, então ela foi até lá e a apagou também, deixando a casa toda às escuras. Voltou à sala e ficou de pé com as mãos apoiadas nas costas de uma cadeira, observando-o enquanto a chuva batia nas janelas e outro raio iluminava a sala. Agora, Eric sentava-se com as pernas dobradas, os joelhos encolhidos e a cabeça baixa. Depois de uma pausa, ele bebeu mais um pouco da água, apenas alguns goles.

Eu deveria chamar um médico, pensou ela. Ele está bastante doente e a última coisa que irá curá-lo é a Água Plutão. Tenho que chamar um médico.

Mas o rapaz começava a se reanimar. Na verdade, foi incrível a velocidade com que aquilo aconteceu. Enquanto ela o observava, aos poucos Eric voltava ao seu estado normal, a respiração retornando ao ritmo de antigamente, a cor voltando ao rosto e os tremores nas mãos e nas pernas cessaram de súbito. Do outro lado da sala, o carrilhão do relógio de parede que Harold fizera, em 1959, começou a tocar. O homem levantou a cabeça, procurou a fonte daquele som e voltou-se para encarar a idosa. Sorriu. Um sorriso fraco, mas, ainda assim, um sorriso.

— Obrigado — disse.

— Você parece estar melhor — disse ela. — Que rápido.

Ele assentiu.

— Nunca vi nada parecido com isso — falou Anne. — Do jeito que você chegou... Eu estava aqui pensando se deveria chamar uma ambulância e, num piscar de olhos, você já parece melhor.

— Funciona rapidamente assim que a bebo.

— E quando não consegue bebê-la?

Ele fechou os olhos.

— Passo muito mal.

— Pude ver. Vá, termine de beber a garrafa.

— Não é necessário — respondeu. — Não preciso de muito.

Tampou novamente a garrafa, que ainda continha dois terços da água, e acrescentou:

— Desculpe. Primeiro por ter chegado dessa maneira à sua casa, numa chuva como essa, e segundo por gastar mais um pouco de sua água.

— Não se preocupe com isso. — Foi até o armário do corredor, pegou duas toalhas e entregou-as a ele. — Tome, enxugue-se.

Ele secou o rosto, o pescoço e os braços e, em seguida, usou as toalhas para enxugar a água que caíra no chão. Enquanto fazia isso, Anne percebeu que o carro dele ainda estava com o motor ligado, com as luzes acesas e com a porta aberta. Ela foi para o lado de fora, desceu os degraus e pisou no jardim molhado. A chuva diminuía, mas os trovões ainda soa­vam ameaçadores, como um cão que mostra os dentes enquanto recua. O problema é que um cão como esse sempre acaba voltando.

Quando chegou ao carro, desligou o motor e pegou as chaves. O interior do veículo estava todo molhado, e a água fazia uma poça no assento de couro. Ela fechou a porta, voltou para dentro da casa e entregou as chaves a Eric. Quando este, por fim, se levantou, suas pernas pareciam firmes. Anne indicou-lhe a cadeira de balanço e se acomodou no sofá.

— Já ouvi muitas histórias sobre essa água — disse Anne —, mas nunca ouvi falar de ninguém que precisasse dela como você. Parece até que está viciado.

— É um pouco assim.

— Bem, isso não faz qualquer sentido. Eu não sei o que há nela que possa...

Ela parou de falar quando viu os olhos dele. Haviam mudado de súbito, tornando-se apagados e sem vida.

Ela falou:

— Sr. Shaw? Eric?

O rapaz não respondeu. Parecia nem mesmo que ele a tinha ouvido. Ele encarava o velho relógio de parede, mas ela não estava certa se ele o estava vendo ou não.

— Você está bem? — perguntou sussurrando. Ele estava em uma espécie de transe. Podia começar a ter um ataque, e ela voltou a considerar mais uma vez a ambulância. Entretanto, por alguma razão que fugia à sua vontade consciente, não foi até o telefone.

Dê-lhe um minuto, pensou.

Assim, enquanto a trovoada continuava, agora mais fraca, dirigindo-se para o leste, e uma chuva leve molhava a varanda e as janelas, Anne permaneceu ali sentada na sala, às escuras, e observou Eric escapulir para um lugar ao qual não poderia acompanhá-lo.