39

O HOMEM COM O chapéu-coco desaparecera num piscar de olhos. Instantaneamente. Num momento, ele estava sentado no assento do carona, ao lado de Josiah, tão real quanto a caminhonete em volta dele, e, em seguida, não passava de uma lembrança. Uma lembrança que deixou cada músculo das costas de Josiah tenso como cabos de aço esticados.

Na mesma hora, Josiah colocou a mão para fora da boleia e a passou em volta da carroceria. Não pegou nada senão ar. Então, soprou com força, checando se produzia alguma névoa. Mas não.

O homem do chapéu, era assim que Josiah pensava nele. Só que, dessa vez, ele se identificou. Chamou a si mesmo de Campbell e disse a Josiah que ele era tudo o que restou do sangue da família.

Eu não precisava selecionar você para a tarefa... Não era obrigatório... Tudo o que você tem que fazer é me escutar, Josiah. Tudo o que precisa fazer é escutar o que tenho a dizer.

Fora outro sonho, só isso. No dia anterior mesmo, Josiah se perguntou se o homem do sonho era Campbell, e seu cérebro, danificado pelo calor, dependurara-se nisso e criara esse último sonho. O estranho é que, durante toda a vida, Josiah sempre dormira profundamente, quase nunca sonhando. O que foi que mudou?

Nada de anormal acontecera com ele até os homens de Chicago chegaram à cidade. O primeiro daqueles momentos estranhos foi o sonho que teve depois da briga da noite anterior...

Não, não foi naquela noite. A primeira coisa esquisita acontecera quando ele foi lavar o sangue de Eric de suas mãos. A maneira como a água quente ficava gelada quando tocava o sangue. Jamais sentira algo como aquilo. A casa ainda tinha o mesmo poço e a bomba elétrica trazia água do mesmo subsolo que dava origem às fontes, ao Lost River e ao Golfo de Wesley Chapel, e Josiah sempre gostou da água daquela maneira. Jamais precisou de água tratada da cidade.

Mas, ainda assim... aquilo fora estranho. Então, os sonhos começaram, até culminar nesta última experiência que só poderia ter sido um sonho, mas que, definitivamente, não era. Era como se o homem do chapéu-coco só aparecesse para Josiah quando sua mente conseguia se desviar um pouco da realidade consciente, como, por exemplo, quando estava dormindo ou quase. E, por incrível que pareça, o homem lhe parecera familiar. Ele se sentia conectado ao homem do chapéu-coco, da mesma maneira que velhos amigos fazem. Da mesma maneira que familiares fazem.

Abriu a porta e saltou para fora do carro, com as pernas dormentes por ter ficado sentado durante tanto tempo. Olhou em volta do galpão escuro, mas não viu nada além de sombras. Até as frestas de luz do sol se acabaram, e ele ficou nervoso com essa constatação, o que o levou até a porta dupla da entrada. Quando a abriu, percebeu que o céu adquirira um cinza cor de carvão e que a chuva começava a cair. Havia até mesmo o som dos trovões, e Josiah não entendia como não os escutara antes. Talvez essa fosse a prova de que caíra no sono, e de que tudo aquilo não passava de um sonho.

Enquanto permanecia parado na porta do galpão, deixando a chuva molhar seu rosto, seu pensamento dizia que não tinha sido um sonho. Já tivera sonhos com aquele homem antes, mas dessa vez não foi assim. O homem esteve ali. Sua aparição foi real.

Saiu do galpão, colocando-se na chuva, sem se incomodar com ela, e caminhou em direção às arvores. Sentia-se estranho, desequilibrado. Era como se tivesse se livrado de algumas preocupações, provenientes não de sua memória, mas da capacidade de se importar com as coisas. Por exemplo, a chuva, as árvores agitadas pelo vento forte e os raios não o incomodavam. Tampouco o mandado de prisão por homicídio que devia estar sendo expedido naquele momento. Era estranho. Ele deveria estar morrendo de preocupação com isso.

Mas não estava.

A chuva ensopou suas roupas e transformou seu cabelo numa chapa molhada, mas, que diabos, ele precisava mesmo de um banho. E ele se embrenhou ainda mais na floresta, seguindo pelo topo da encosta, afundando suas botas no solo encharcado de lama. Já não estava mais na vista do acampamento dos lenhadores, e Danny podia chegar a qualquer momento, mas que ele fosse para o inferno. Danny poderia esperar por Josiah.

Chegou até a beirada da encosta e permaneceu, de pé, encarando as florestas e as montanhas que continuavam nos campos distantes, e também as cidades de French Lick e West Baden. Segurou-se num arbusto vigoroso perto da parte mais abrupta da encosta e olhou para baixo.

— Meu vale — disse. Sua voz soou estranha

Horas atrás, a prioridade de Josiah era fugir. Entretanto, precisaria de algum dinheiro para isso. Se conseguisse, iria se mandar de Dodge. Mas agora, pendurado ali, vendo de cima a paisagem da tempestade, já não tinha tanta vontade de ir embora. Aquele era o seu lar. Era seu.

Mas isso não significava que desistiria do dinheiro. O dinheiro de Lucas G. Bradford, o homem que compartilhava o mesmo nome de Josiah e tinha alguma ligação com o velho Campbell. Pode ser que Camp­bell tenha deixado este vale e feito alguma grana, e deixado a fortuna para Lucas G.; ou pode ser que Lucas G. a tenha feito com as próprias mãos. Na opinião de Josiah, o dinheiro veio do primeiro. Sentia um estranho sentimento de lealdade a Campbell, o bisavô que nunca vira. O pobre-diabo acabou se tornando uma figura infame naquele vale, mas houve um tempo em que era dono de tudo por ali. Ele fora um homem poderoso outrora, e as pessoas se esqueceram disso. Seria bom relembrá-las.

A chuva batia em seu rosto, nenhuma árvore o protegia das rajadas que vinham do oeste, mas ele gostava do contato com a água. Sentia-se bem. O que era engraçado, pois sempre odiara apanhar chuva.

Não, decididamente, ele não se sentia a mesma pessoa que era.

Havia cinco mensagens no celular de Eric. Uma do detetive Roger Brewer, querendo saber quando eles dois poderiam terminar aquela conversa. O tom de voz dele não parecia tão tranquilo quanto as palavras que dizia. De Claire, havia três chamadas, cada uma delas com um toque de urgência. E uma era de Kellen:

— Fiquei sabendo da polícia — dizia. — Isso não é muito bom, não acha? Gostaria de saber sua opinião.

Será que havia alguma desconfiança em sua voz? Eric não podia culpá-lo se houvesse. Em primeiro lugar, resolveu ligar para Claire, e a voz dela, zangada e ao mesmo tempo aliviada, o deixou preocupado.

— Onde você está? Já liguei para o hotel umas 15 vezes. Se ligar mais uma vez é provável que o expulsem daí.

— Estive na delegacia — respondeu ele. — E, então... hum... me senti muito mal.

A voz dela se acalmou, ficando mais gentil.

— Sentiu-se mal?

— Sim. — E Eric contou a ela tudo o que acontecera.

— E você saiu da delegacia? No meio de um depoimento?

— Eu não podia fazer mais nada, Claire. Você não tem ideia de como me sinto nessas ocasiões. Mal consegui alcançar a porta.

— Você podia ter tentado explicar...

— E dizer que estou tendo abstinência de uma água mineral? Que estou vendo gente morta? Deveria explicar essas coisas a um policial no meio de um interrogatório que investiga meu suposto papel num assassinato?

Aquele parecia um terrível déjà-vu, um retorno a ocasiões passadas em que Eric gritava com ela por sua incapacidade de entender, de simplesmente não sacar as coisas, e ela respondendo com silêncio.

Alguns segundos se passaram. Quando ela voltou a falar, o tom de voz era cuidadoso, comedido, o que sempre deixava Eric ainda mais furioso, porque o fazia se sentir inferior. Dane-se a compostura dela, o controle constante.

— Entendo que possa ser um pouco difícil — disse ela. — Só fico preocupada, pois, se você não ofereceu uma explicação, pode ter gerado problemas apenas para si mesmo.

— Já estou cheio de problemas, Claire. Podemos acrescentar mais um à lista, porra.

— Está bem — disse ela. — É uma maneira de encarar as coisas.

Eric coçou a testa de novo, mas, dessa vez, não tinha dor de cabeça. Por que ele alfinetava Claire? Por que a situação sempre tinha que acabar assim?

— Onde você está?

— Na casa de meus pais.

Como ele desejou que ela dissesse que estava em um hotel. Agora, Paulie podia protegê-la e limpar mais uma das cagadas de Eric. Era provável que o homem estivesse se divertindo muito com aquilo.

— Acho que este lugar não é bom. Se alguém estiver procurando por você, este será um o primeiro da lista.

— Mas temos uma boa segurança aqui.

Era verdade. Eles estavam no 26º andar de um edifício de luxo faceado ao lago Michigan. Ia levar um bom tempo até que alguém conseguisse chegar lá em cima.

— Meu pai está fazendo umas ligações — disse ela.

— Como? Por que diabos ele está fazendo ligações?

— Para descobrir algo sobre o homem que foi assassinado. O tal de Gavin Murray.

— Porra, Claire, a última coisa que preciso é seu pai desencavando mais merda disso.

— É mesmo? Pois para mim parece que você precisa de ajuda, Eric. Parece que você precisa de algumas respostas. Como quem contratou esse cara, e por quê?

Fez-se um silêncio rancoroso. Ela estava coberta de razão sobre a necessidade de respostas, e Paul era muito bem relacionado na comunidade legal de Chicago. Era altamente provável que conseguisse alguma coisa.

— Fale para ele começar com a família Bradford — respondeu por fim. — Começar por Alyssa e depois ver quem está por trás dela. Alyssa encerrou sua relação de trabalho comigo hoje, mas não foi por decisão própria. Ela estava seguindo instruções de alguém. O único conselho que ela me deu foi sair daqui. Grande sugestão, não? Ah, ela disse também que o velho Campbell está morto. Quem quer que ele fosse, está morto.

— O quê? Como aconteceu?

— Morreu no hospital, acho. Ela desligou sem me dar maiores detalhes.

— Que ótimo. Uma pessoa a menos para confirmar o que você contou à polícia.

— De qualquer modo, ele não conseguia mais falar— disse Eric, pensando, em seguida, exceto comigo. Ele podia falar comigo, sem problema. Mas não vamos dividir isso com a polícia, não ainda.

— Você já teve alguma notícia do exame da água? — perguntou ela.

— Não. Preciso ligar de volta para Kellen. E, depois, para a polícia.

— Acho que você não deveria fazer isso. Meu pai disse que não deveria.

— Não posso largá-los para lá, Claire. Você mesma falou isso.

— Não estou dizendo para você largá-los para lá. Mas papai disse que, nessas circunstâncias, você não deveria falar nada com a polícia sem um advogado presente.

— Mas eu sou só uma testemunha.

— Você disse a eles o que sabia, não?

— E o detetive falou que queria me fazer mais umas perguntas, e eu...

— As perguntas que ele quer lhe fazer, Eric, são para saber se você tem algum caso de abuso de drogas, álcool ou conduta violenta.

O quê?

— Estas foram as primeiras perguntas que o detetive me fez, quando ligou para saber de você. Era isso o que eu iria lhe explicar, mas você me cortou. Ele pareceu desapontado quando eu disse que nossa separação foi tranquila e que não estávamos brigados. Em outras palavras, nunca diga que eu não posso mentir por você.

Essa doeu.

— Não acredito que ele ligou para você — disse Eric.

— Bem, ele ligou. E, quando falei com meu pai o assunto da conversa, a resposta dele foi que você precisava arranjar um advogado. Seu passado não é relevante, a menos que o considerem como suspeito.

— Então, seu pai acha que não devo, de maneira nenhuma, voltar a conversar com eles? — perguntou Eric, odiando ter que dar crédito ao conselho de Paul Porter, mas reconhecendo que o homem tinha vasta experiência em advocacia criminal.

— Não se você já deu seu depoimento. Meu pai disse que arranjará um advogado para você...

— Eu mesmo posso arranjar um advogado.

— Tudo bem. Ótimo. É isso o que você precisa fazer, e depois voltar para casa. Só não pode mais continuar aí. Não pode.

A resposta veio rapidamente, sem que ao menos Eric pensasse nela:

— Mas a água está aqui.

— A água? Bem, pegue a sua garrafa, volte para casa e vá consultar um médico! É isso o que precisa fazer.

— Não sei — disse, ainda surpreso pela própria resposta. A água está aqui? Ela saiu de sua boca sem querer.

— O que você não sabe? Será que não ouviu a si mesmo me contando o que está acontecendo? Você está doente. A água está lhe deixando doente, muito doente.

O que ela dizia era bastante lógico, claro, mas parecia errado, demasiadamente errado.

— A água da Anne é diferente — disse ele. — Quando a bebo, Camp­bell está no passado e fica lá. Se não beber mais a água da garrafa original, a que agora não está comigo, ficarei bem.

— Ouça — falou Claire —, ou você vem pra cá, ou eu vou pra essa cidade.

— Não é uma boa ideia.

— É bem melhor do que você ficar aí sozinho, Eric. É isso mesmo o que quer? Com tudo o que está acontecendo ao seu corpo e à sua mente, você quer ficar aí sozinho?

Não, ele não queria. E a ideia de ficar com ela... ele tentava expulsar essa ideia da cabeça há semanas. Pare de desejá-la, dissera para si, pare de precisar dela.

— Vou para aí — disse ela, com firmeza e convicção agora. — Vou sair daqui pela manhã e vamos voltar para casa juntos.

Ele pensou nas semanas de silêncio, na maneira como sempre esperou por ela, até o dia em que Claire ligou para ele pela primeira vez, e Eric não mais precisou demonstrar que a desejava. Agora, lá vinha ela de novo, pronta para entrar no carro e vir atrás dele. Enquanto isso, o processo de divórcio ainda incompleto que ele requerera flutuava entre ambos. Por que, ele queria perguntar, por que você ainda está querendo fazer isso?

— Não sei se você deveria vir para cá — disse ele. — Até que cheguemos a um acordo...

— Vou sair amanhã de manhã — respondeu ela. — E estou cagando para qualquer merda de acordo até lá.

Isso fez com que Eric desse um sorriso. Ela raramente falava palavrões, só quando realmente se inflamava com algo, e ele costumava caçoar dela quando isso acontecia, tanto nos momentos em que ela tentava esconder essa característica quanto nos que a deixava à mostra. Durante a final do campeonato, por exemplo, quando os Bears foram derrotados pelos Colts.

— Vou ligar quando estiver chegando — disse ela. — E até lá, por favor, você pode ficar perto do hotel? Por favor?

— Está bem — disse ele, fascinado e confuso pela conversa que acabaram de ter, sem tocar no rompimento, e pela maneira com que ela retomou com extrema facilidade o seu papel de esposa. Justamente na hora em que ele precisava tanto dela. Por quê?

— Ótimo — disse ela. — Fique aí e mantenha-se a salvo.