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DANNY DEMOROU UNS QUARENTA minutos para voltar com os celulares. De início, Josiah o esperava no lado de dentro do galpão, perto da porta aberta. Entretanto, após algum tempo, ele se viu do lado de fora, encostado nas tábuas velhas da parede do galpão. Do lado do galpão havia uma árvore. Agora, a chuva não passava de um chuvisco leve que molhava sua pele com delicadeza e, então, resolveu sair de onde estava e escolher outro lugar onde podia se sentar encostado na parede e deixar que a chuva caísse sem que o molhasse. Estava ali quando viu os faróis de um carro se aproximando e pensou que deveria se esconder dentro da floresta até ter certeza de que era Danny, mas não saiu do lugar. Por alguma razão, não estava nem um pouco preocupado com quem fosse o visitante.

Era o Oldsmobile, entretanto, e Danny o encostou perto do galpão. Abriu sua porta enquanto o motor continuava ligado.

— O que você está fazendo aí sentado na chuva?

— Matando tempo — disse Josiah, incomodado tanto pela pergunta quanto pela expressão de Danny. Pela maneira com que ele o olhava, parecia estar diante de um louco. — Trouxe os telefones?

— Sim.

— Então, traga-os aqui. E desligue esses faróis.

Voltaram para o galpão e Danny ligou uma das lanternas potentes à bateria, enchendo o interior do local com sua luz branca

— Achei que isso poderia ser útil — falou ele. Trouxera também algumas garrafas de água e um pouco de carne desidratada, e Josiah apenas grunhiu um agradecimento, mas não gostou da lanterna. Crescera acostumado com o escuro, e agora era como se tivesse um carinho especial pela escuridão.

Atendendo às suas ordens, Danny comprou os celulares e um carregador de bateria que Josiah podia ligar no acendedor de cigarros do carro. Tirou um dos telefones da embalagem e começou a carregá-lo.

— Não entendi por que você precisa de dois.

— Se vou ligar para essas pessoas de Chicago, você acha que seria uma boa ideia ligar para você do mesmo número?

— Ah — falou Danny. — Bem pensado. O cara para quem você vai ligar, o número dele estava na pasta que você roubou?

— Sim.

— Mas ainda não entendi como você vai conseguir tirar algum dinheiro dele.

— O caso é que uma pessoa pode se perder em detalhes se for bastante insistente ao persegui-los. Não quero que nada me impeça de avançar. Esse homem pagou algumas centenas de dólares para alguém vir até aqui e ficar em frente à minha casa, Danny. Pagou outro homem para vir aqui falar com Edgar. Porra, pode até ter pagado também àquele que falou que era estudante. Mas a papelada que peguei fala alguma coisa sobre mim que imagino valer um centavo ou dois para esse cara. Se ontem à noite valia alguma coisa, ainda vale hoje.

— Mas, ontem à noite, o detetive não estava morto.

— Essa é uma observação razoável.

— Josiah, por que você não pega o dinheiro que eu tenho e...

— Você foi até o hotel para ver Shaw?

— Não, você me falou para trazer os telefones antes.

— Certo. Bem, agora estou com eles.

Danny franziu o cenho.

— Está bem, estou indo. Você só quer saber se ele está lá, não é?

— E para onde irá, caso saia. Você anotou os números dos telefones que foram comprados, certo?

— Anotei.

— Bem, use o primeiro. Nem pense em ligar para o segundo, só para o primeiro, entendeu? Ligue se o vir saindo de lá.

Danny hesitou, assentiu e se dirigiu à porta. Parou quando já estava quase do outro lado, deu meia-volta e olhou para Josiah, cujo rosto parecia uma lua iluminada pela luz da lanterna.

— Então, você vai ligar pra este cara e pedir dinheiro? Assim, sem mais nem menos?

— É tudo o que preciso para início de conversa — respondeu Josiah. — Imagino que possa existir uma dificuldade ou outra pelo caminho.

A noite chegou e se firmou, e a chuva caía silenciosa, porém ininterruptamente. Anne estava sentada na sala de estar com um livro no colo, mas não o lia. A intensidade de seu desejo era surpreendente para ela, e o senso de urgência fazia com que olhasse o relógio que marcava cada minuto do dia na expectativa de que a água fizesse efeito.

Venha, pensou, deixe-me ver o que ele está vendo. Deixe-me voltar para aquele tempo que não pude apreciar o bastante quando fazia parte dele, deixe-me ver os rostos e ouvir as vozes outra vez.

Nada aconteceu. O ponteiro menor marcou sete, oito e, depois, nove horas, e ela não viu nada além das familiares paredes de sua casa. Pensou em beber mais um pouco da água, mas a escada parecia tão íngreme e os resultados tão incertos que resolveu permanecer ali, sentada em sua cadeira. Ela vira o quanto Eric Shaw teve que beber para que suas visões começassem e sabia que ingerira a mesma quantidade. Por que, então, ele podia ver o passado e ela não?

Foi se deitar depois de ler um pouco, desligou a luz e observou as sombras inquietas, enquanto a lua lutava por um espaço entre as nuvens. A água não funcionara com ela. Ficou um pouco nauseada depois que a bebera, mas não vira nada. Correu um risco em vão. Como foi capaz de permitir uma coisa dessas? A água poderia tê-la envenenado; ou pior, desencadeado o mesmo tipo de perturbação que Eric Shaw experimentava, que lhe trazia tanto sofrimento e ­dependência.

Por mais que esses pensamentos fossem lógicos, ela ainda não conseguia se conformar. Entendeu logo o risco que corria, mas a recompensa havia se mostrado tão tentadora... e continuava a ser.

Talvez tudo tenha começado com a garrafa dele, a que ele disse pertencer a Campbell Bradford. Talvez você não visse nada até beber um pouco daquela água. Teria que ligar para ele de manhã, verificar se já havia recebido de volta a garrafa de Bradford, na esperança de que fosse funcionar com ela da mesma forma que funcionou com ele. Parecia valer a pena tentar.

Entretanto, ela tinha a impressão de que não iria funcionar. Poderia beber a água dele e, ainda assim, não ver nada, continuar presa no presente, no presente solitário desta casa vazia, enquanto todos os que ela amava continuariam a existir apenas através de lembranças e fotografias desbotadas. Por que Eric podia ver o passado e ela não? Por que algumas das magias do mundo eram acessíveis a uns poucos e se ocultavam dos demais?

As visões nunca viriam para ela, não importa quanta água bebesse. Teria que ficar à espera delas, sem qualquer esperança, da mesma forma que esperava a grande tempestade: com fé, paciência e a confiança de que ela seria necessária, de que havia uma razão para permanecer vigilante. Ainda precisariam dela algum dia; precisariam de seu conhecimento, de seu olho treinado e também de seu radioamador. Tinha certeza disso.

Mas talvez não. Talvez aquilo fosse uma farsa, uma tolice infantil que nunca iria acabar. Talvez a tempestade jamais viesse.

— Chega — sussurrou para si. — Chega disso, Annie.

Então, o sono tomou conta dela. Desceu com a velocidade e o peso de um longo dia repleto de atividades incomuns. Pouco antes de adormecer teve a impressão de ter ouvido um leve som de assobio.

O vento estava de volta.