49

CLAIRE QUERIA IR COM ele. Argumentou que Eric não deveria ir sozinho, e, quando ele respondeu que não estaria sozinho, ela disse que Kellen era um estranho e, na opinião dela, estar na companhia de um estranho era como estar sozinho.

— Olhe — disse ele —, no hotel você ficará a salvo e segura, se eu precisar de você.

— Sim, estarei aqui quando precisar de mim em outro lugar. Onde quer que isso seja.

— Estamos apenas indo procurar uma fonte de água mineral. Só isso. Talvez demoremos umas duas horas. Ela pode me revelar algumas coisas. Estar lá pode ser uma descoberta importante para mim.

— E se não for?

— Se não for, voltaremos para casa — disse ele, embora essa ideia o deixasse desconfortável, pois agora este lugar o envolvia como um abraço e o fazia sentir como se fosse parte dali.

Ela o olhou bem e repetiu:

— Vamos voltar para casa.

— Sim. Agora, por favor, Claire, me deixe ir para fazer isso.

— Muito bem — disse ela. — Já estou acostumada a ver você ir embora.

Ele não respondeu nada, e ela falou com uma voz suave:

— Desculpe.

— Você está sendo sincera.

Ela passou as mãos no rosto e nos cabelos, voltou a olhar para ele e disse:

— Então, vá. E não demore, para que possamos voltar logo para casa.

Ele a beijou. Ela estava tensa, e lhe devolveu o beijo com um ato formal. Tensa pelo esforço de esconder os sentimentos que guardava tão bem — raiva, traição. Era o que ela sentia agora. Ele sabia disso, e mesmo assim se dirigia para a porta. O que aquele ato fazia dele?

— Não vou demorar — disse ele. — Voltarei mais depressa do que pensa, prometo.

Claire assentiu, e depois de um silêncio desconcertante, ele abriu a porta, e disse:

— Até logo. — Ela não respondeu, e Eric fechou a porta atrás de si e avançou pelo corredor, para sumir logo de sua vista.

Kellen o esperava no estacionamento, com o motor do Porsche ligado. Os vidros estavam abertos e seus olhos protegidos por óculos escuros, embora a manhã estivesse negra, com o céu coberto de nuvens pesadas.

— Algo me diz que esta aí não é a água mineral do rótulo — disse ele ao reparar na garrafa que Eric trazia nas mãos. Estava agora apenas pela metade, talvez um pouco menos. A dor de cabeça continuava, uma dor que parecia com uma risada suave e malévola.

— Não — falou Eric ao colocar a garrafa no porta-copo do carro. — Não é a água original que está nesta garrafa.

Kellen assentiu e engrenou o carro.

— Um aviso, meu amigo, talvez essa busca não nos leve ao arremate final da trama em que nos envolvemos.

— Pensei que você sabia onde ficava o lugar.

— Eu sei onde fica o golfo. Só isso. Há muitos campos e florestas em torno dele, e como eu saberia o local exato da fonte?

— Pelo menos, nós vamos tentar — falou Eric. — Acha que a chuva vai dificultar nosso caminho? — perguntou ele, ao reparar na escuridão do céu.

— Irei o mais rápido que puder — disse Kellen.

Já estavam quase na autoestrada quando Eric falou:

— Posso lhe perguntar uma coisa?

— Vá em frente.

— Por que você entrou nessa?

— Como assim?

— Se eu fosse você, é bem provável que tivesse voltado para ­Bloomington e parado de responder aos telefonemas de um branco maluco. Por que não fez isso?

Depois de um breve silêncio, Kellen disse:

— Lembra das histórias que meu bisavô me contou sobre esse lugar? Todas aquelas teorias malucas? Bem, Everett Cage gostava de um bom papo, eu admito. Gostava de seduzir a plateia. Mas, sabe, ele não era mentiroso. Era um homem honesto, e tenho certeza de uma coisa: ele acreditava em tudo que falava. Sempre imaginei como é que ele podia acreditar nas coisas que me contava.

Fez-se outro silêncio e, então, ele disse:

— Estou começando a entender.

Josiah se viu observando as nuvens. No princípio, só foi olhar pela janela para ter certeza de que a velha senhora não estava armando nada, de que não havia um jeito dela fazer algum sinal para alguém e pedir ajuda uma vez que as cortinas estivessem abertas. Mas a janela mostrava apenas um campo e a vista do céu no lado oeste. As nuvens estavam concentradas, instáveis com um rodamoinho cujas camadas iam do topo para baixo e de volta para o topo. O céu sobre o quintal estava cinzento e pálido, mas, para o lado oeste, parecia um hematoma, e o vento soprava forte na casa e assobiava quando vinha em rajadas ocasionais. Alguma coisa naquele céu turbulento o agradava. Ele deu um sorriso, cuspiu tabaco na janela e olhou para a mancha marrom que deslizava pelo vidro. O mais engraçado é que ele não se lembrava de jamais ter colocado na boca um pedaço de fumo de mascar. Nunca tivera esse hábito, pois quando tinha 14 anos vomitara ao fazer sua primeira tentativa e jamais quis saber daquilo de novo. Mas ali estava a mancha descendo pelo vidro.

Aguardou até quase as 9 horas para se ajoelhar ao lado de Anne McKinney e lhe passar o celular. Àquela hora, Shaw e a mulher já teriam acordado, e ainda era cedo demais para terem ido embora. Danny estava lá de guarda para o caso de deixarem o hotel, mas o telefone não tocou.

— Chegou a hora da senhora tomar parte nisso — disse ele. — É um papel menor, Sra. McKinney, mas nem por isso menos importante. Em outras palavras, é um papel no qual não posso permitir que a senhora... quais são as palavras que me faltam? Foder com tudo. Não posso permitir que a senhora foda com tudo.

Ela levantou os olhos e não fez outra coisa senão piscar. Estava com medo dele — tinha de estar —, mas não queria demonstrar, e havia uma parte de Josiah que admirava isso. No entanto, essa parte não era grande como a parte que não iria tolerar essa coragem por muito tempo.

— Se você está pensando em fazer mal às pessoas — disse ela —, não conte comigo.

— A senhora não tem a menor ideia do que estou pensando em fazer. Lembre-se disso. Mas, ouça-me: se não fizer esta chamada, muita gente irá se machucar. E aqui por perto só consigo ver uma pessoa por onde começar.

— Você está ameaçando uma mulher de idade. Que tipo de homem você...

— A senhora não tem a mínima ideia do tipo de homem que sou. Mas vou lhe dar uma dica: imagine a alma mais negra que jamais tenha visto. E então, velha, acrescente mais um pouco de preto.

Ele avançou para cima dela, com o celular nas mãos e os olhos fixos nos seus.

— Agora, tudo o que você precisa fazer é ligar e dizer um punhado de palavras da maneira certa. Se isso acontecer, tenho a impressão de que sairei por aquela porta e a senhora poderá continuar sentada aí, apreciando seu maldito céu, como gosta. Mas se não...

Ele fechou a boca e sacudiu a cabeça.

— Sou um homem ambicioso. Não paciente.

Ela tentou manter o olhar firme, mas sua boca tremia um pouco, e, quando ele pressionou o telefone contra sua mão enrugada, sentiu o medo percorrendo todo o seu corpo.

— Ligue para o hotel — disse ele. — A senhora disse que ele queria a água, não? Bem, diga a ele que pode vir pegá-la. A senhora lhe dará toda a água que tem, mas ele precisa vir logo, pois você irá se ausentar da cidade por alguns dias.

— Ele não vai acreditar nisso.

— Bem, é melhor fazer com que acredite. Porque, se não acreditar, teremos que arranjar uma tática completamente nova. E, do jeito que estou me sentindo, não acho que gostaria de ver o que acontece quando sou obrigado a usar minha criatividade.

Passou a espingarda para o lado e encostou-a na beirada do sofá, de modo que a boca do cano ficou virada para o rosto dela.

— Anne, puta velha — disse —, isso não tem nada a ver com você. Mas não queira mudar a maneira com que me sinto quando no front de batalha.

— Está bem — falou ela. — Vou ligar. Mas, qualquer que seja o resultado que imaginou, asseguro-lhe que não será como planejou. As coisas nunca são assim.

— Não se preocupe comigo. Sou um homem capaz de me adaptar às circunstâncias.

Ela digitou o número do hotel no celular, mas ele o tirou da mão dela e o colocou no ouvido para ter certeza de que não fizera a ligação intencionalmente errada. A voz que atendeu falou:

— West Baden Springs — e Josiah, numa voz grossa e com certo charme, disse:

— Gostaria de falar com um hóspede, o Sr. Eric Shaw, por favor.

— Um momento — respondeu a mulher, e Josiah passou o telefone de volta para Anne McKinney. Em seguida, ficou sob um dos joelhos no chão, em frente ao sofá, com a mão apoiada no cabo da arma e um dedo em volta da proteção do gatilho.

— Alô? — disse Anne, com a voz um tanto confusa. Ele moveu a arma, para inspirá-la e ela disse: — Gostaria de falar com o senhor Shaw. — Parou um pouco e continuou: — Ah. — E fez uma pausa, durante a qual Josiah pôde ouvir uma voz feminina do outro lado da linha, e Anne respondeu: — Sim, está bem. Um recado? Eu...

Josiah assentiu com veemência.

— Bem, sim, gostaria de deixar um recado. Meu nome é Anne McKinney. Nós nos encontramos... ah, falou sobre mim? Bem, veja, ele queria algo que tenho. Algumas garrafas de Água Plutão. Eu quero dá-las a ele, mas preciso que venha logo buscá-las, pois terei que me ausentar da cidade.

Ela falava o mais rápido que podia, e Josiah moveu a espingarda para que o cano ficasse a centímetros do queixo dela.

— Isso é tudo. Por favor, diga-lhe que venha ver Anne McKinney. Ele sabe onde moro. Passe esse recado para ele. Obrigada.

Ela colocou o telefone de lado e Josiah pegou-o e desligou, encarando-a com uma expressão amarga. Aquele não era o desempenho que ele queria. Ela estava muito nervosa, muito estranha. Ele quis botar para fora um pouco de sua raiva, mas o medo já estava estampado no rosto enrugado da velha, e ele não estava a fim de gritar. Então, voltou-se para o lado oposto, indo na direção da janela com a espingarda em mãos, observando as nuvens que se aproximavam.

— Ela disse que ele saiu? — falou de costas para ela.

— Sim. E disse que daria o recado.

— Essas notícias não são boas — falou Josiah se referindo a Danny, que valia ainda menos do que ele pensava, pois deixara Shaw sair sem o avisar. Filho de uma puta. Não podia mais contar com ninguém no mundo, a não ser consigo mesmo.

Ligou para o primo. Explodiu em cima dele, antes que ele pudesse falar qualquer coisa, perguntando que diabos ele está fazendo lá, por que Shaw saíra e Danny não vira nada, pois não passava de um merdinha, e...

— Eu estou seguindo o Shaw, Josiah! Dá um tempo, eu estou seguindo o cara.

— E por que não me ligou para dizer isso?

— Ele saiu há menos de cinco minutos! Estou na cola dele para ver aonde ele vai.

Josiah apertou a ponte do nariz e respirou fundo.

— Bem, droga, da próxima vez, me ligue no momento em que eles começarem a se mover. Para onde eles estão indo?

— Na direção de Paoli. O rapaz negro está dirigindo o Porsche. Foi bom que eu o vi saindo, uma vez que ele não pegou o próprio carro.

— Então, continue a segui-los — disse Josiah, sem vontade de elogiar Danny. — Fique atrás deles, mas não os deixe perceber que você os está seguindo e também não os perca de vista.

— Estou fazendo o melhor que posso, mas o rapaz negro dirige como...

— Fique atrás deles e me ligue quando chegarem a algum lugar.

Não tinham se afastado muitos quilômetros da cidade quando o celular de Eric tocou. Era Claire.

— Alô? — disse ele. — O que aconteceu?

— Aquela velha senhora ligou. Ela quer lhe dar a Água Plutão.

— Está bem. Vou ligar para ela daqui a pouco. Agora, não tenho tempo para...

— Ela disse que irá se ausentar da cidade por alguns dias, e, se você quiser as garrafas, terá de pegá-las logo. Ela parecia chateada.

Ausentar-se da cidade por uns dias? Estranho ela não ter mencionado isso antes.

— Ela disse para onde estava indo?

— Não. Apenas que, se você quisesse a água, deveria ir pegá-la hoje.

Droga. Ele não tinha tempo para um atraso como aquele, mas também não podia recusar uma oferta tão especial. Não agora, quando suas mãos não paravam de tremer, sua cabeça latejava e aquelas garrafas que enchera com a água do hotel não serviam para nada. Talvez a água de Anne também não fosse servir mais, porém era melhor ter a chance de haver uma rede da corda bamba.

— Espere um momento — disse. Abaixou o celular e falou com Kellen: — Ei, você acha que no caminho para este lugar vamos passar pela casa de Anne McKinney?

— Estamos indo na direção oposta. Mas podemos voltar.

Ele não queria voltar. Queria ver o lugar onde ficava o velho galpão do Granger, e o céu se tornava cada vez mais ameaçador, anunciando que mais tempestades estavam a caminho. Mas o atraso valeria a pena se pudesse pôr as mãos em mais algumas garrafas...

— Irei encontrá-la — falou Eric para Claire. — Detesto ter que me demorar mais por causa disso, porque quero logo encontrar o tal lugar de que lhe falei e, além disso, parece que vai chover.

— Estou assistindo à TV. A previsão do tempo diz que são esperadas fortes tempestades para todo o dia de hoje.

— Ótimo. Gostaria muito de pegar uma boa chuva na floresta, mas já que ela precisa se ausentar...

— Eu posso ir pegá-las para você — disse Claire.

Ele hesitou.

— Não. Nós concordamos que era mais seguro se você ficasse...

— Eric, ela é uma senhora idosa. Imagino que posso ir até lá sem problema.

— Não acho que seja uma boa ideia.

— Na verdade, queria poder ver uma dessas garrafas.

Ele se lembrou da maneira como ela lhe perguntou sobre a garrafa logo que chegou ao hotel, como se estivesse testando-o ou procurasse por uma prova tangível de suas histórias malucas.

— Está bem — disse ele. — Deixe-me explicar onde fica a casa dela.