53

ERIC FICOU EM SILÊNCIO e olhou para Kellen enquanto o vento fazia com que as copas das árvores se dobrassem e girassem no ar.

— Se sua experiência tem mais a ver com sangue do que com a água — disse Kellen —, talvez estejamos perdendo nosso tempo aqui em cima.

Ele não respondeu. Kellen continuou:

— Talvez não valha a pena achar a tal fonte. Se não há nada com a água...

— Tem algo de especial naquela água — disse Eric. — Acho que ela foi o equilíbrio para o sangue dele. O contrapeso.

Uma chuva pesada começava a cair agora. Ele limpou a água da testa, afastou-se de Kellen e olhou para as árvores castigadas pelo vento. Sua cabeça latejava e suas mãos tremiam. A agonia estava próxima de novo, o fruto de uma água envenenada, da ira de um homem, e ele não tinha reserva alguma para lutar contra aquilo. O diabo é que aquele lamentável sentimento de derrota tinha muito pouco a ver com o medo do que estava por acontecer. Não, era o entendimento do que não podia acontecer: a continuação daquela história, o misterioso mergulho naquele mundo oculto e a glória que poderia ter trazido com ele. Agora, percebia como isso fora uma bobagem. O que pensava sobre a fama que teria graças a seus dons estranhos também era uma besteira; quando muito teria sido apenas uma estrela digna de um tabloide barato, um fracassado que bebeu sangue velho de uma garrafa e se apresenta como um vidente com poderes paranormais.

— Um contrapeso? — disse Kellen.

Eric assentiu.

— Tudo mudou com a água de Anne, aquela que não continha sangue. A história que me foi mostrada era uma advertência.

— De quê?

— Do que eu fiz — disse Eric. — Eu o trouxe de volta.

Campbell Bradford. Seu espírito, seu fantasma, seu mal ou qualquer outro termo. Eric Shaw o trouxe de volta para o vale, e foi a água que lhe permitiu que visse isso; apossou-se de seu corpo e o forçou a beber mais, para que visse ainda mais. Ele não conseguiu entender isso na ocasião. Em algum momento ao longo do caminho, ele deixou de perceber por completo o propósito daquilo, e começou a fantasiar sobre o que a água poderia fazer por ele, pensou nela como uma dádiva, em vez do que era na realidade: um alerta.

— Agora, elas pararam, não é? — disse Kellen. — As visões se foram.

— Sim. Elas pararam. — Eric pensava no sangue da garrafa e no jeito com que Campbell Bradford encarou-o na noite passada quando disse: Estou ficando mais forte.

Havia uma razão para o fim de suas visões. O passado não estava mais onde devia estar. O passado estava aqui.

Josiah precisava que aquele barulho de sirene parasse. Estava lhe dando nos nervos, e destruindo sua concentração, que deveria estar focada na mensagem de Danny.

Golfo de Wesley Chapel. Era onde Shaw estava agora. No lugar sagrado da infância de Josiah. Não fazia o menor sentido, mas, ainda assim, soava como a declaração mais lógica que já ouvira. Era óbvio que era lá que estavam. É claro. Alguma coisa estava em andamento, algo que sua cabeça não soube bem como explicar, mas que deveria parar de tentar. Devia deixar a ficha cair. Parar de tentar descobrir quais eram as regras — porque não havia nenhuma, ou, pelo menos, nenhuma que fosse capaz de entender. Não era sua responsabilidade traçar seus próprios planos agora, mas sim ouvir os planos que foram traçados para ele.

Tudo o que precisa fazer é ouvir...

Sim, isso era tudo. Fora avisado horas atrás, e ainda continuava a lutar contra aquilo, fazer seus próprios planos e achar que poderia resolver tudo sozinho. Apenas ouvir, era a única coisa que precisava fazer. Tinha um guia agora, uma mão na escuridão, e queria ouvir, mas aquela maldita sirene continuava a guinchar e a gritar...

— Pare com isso! — gritou, apertando a arma com a mão, como se pudesse para fazê-la parar com alguns tiros para o ar, silenciar todo este mundo maldito.

— Só vai parar depois que as nuvens passarem — disse Anne McKinney. — Aquela nuvem está rodando. Ele pode vir até o solo.

— Um tornado? — disse ele. — Um tornado está vindo para cá?

— Não está vindo para cá. Vai ser bem sobre as nossas cabeças se vier a descer. Mas pode atingir as cidades. Atingir os hotéis.

Ela falou aquilo como se fosse a própria definição do horror.

Josiah falou:

— Espero que este tornado filho da puta o faça. Espero que desça sobre aquela droga de cúpula e que a transforme numa pilha de vidros e pedras.

Aquela ideia o deixou eletrizado e o levou de volta à janela. Ficou olhando para o leste, como se fosse capaz de ver o local.

Sou eu que tenho de destruí-lo, pensou. Não a maldita tempestadeeu.

— Você não acredita que eu possa fazer isto, acredita? — disse ele. — Bem, minha caminhonete está cheia de dinamite e eu poderia fazer o serviço. Pode apostar que sim.

Anne não respondeu. Ele fechou os olhos e os abriu em seguida, sacudiu a cabeça e tentou pensar na tarefa que tinha pela frente. Toda hora tinha que forçar sua mente a voltar para o agora e para o depois do agora, como um homem que tenta atravessar o convés de um navio que balança e o joga sem parar de um lado para o outro. Aquela lenga-lenga com a vaca velha não importava mais, ele tinha mais o que fazer. Entretanto, precisava decidir o que faria com ela. Encarou-a enquanto fazia ponderações, e, ao seu lado, o vidro da janela chacoalhava no caixilho. Era melhor amarrá-la. O problema é que ela estava na frente da janela grande, e qualquer pessoa que passasse iria vê-la. Mas havia um porão na casa. Sem telefone, ela poderia gritar até arrebentar os pulmões, que ninguém a ouviria. Então, iria amarrá-la e levá-la lá para baixo.

Atravessou a sala e abriu uma porta. Viu que dava num banheiro. Tentou uma segunda porta e viu os degraus da escada que descia para a escuridão, e sentiu o cheiro de umidade. Sim, ali seria ótimo. Faria com que ela descesse antes de amarrá-la, para que ficasse mais fácil.

Ia justamente lhe dizer para se levantar quando ouviu uma porta de carro batendo.

Voltou rapidamente para a janela, olhou a chuva e viu o carro que parara ali. Não era a polícia, mas um Toyota sedã que ele nunca vira. A porta do lado do motorista se abriu e uma mulher alta, de cabelos escuros, saiu com as mãos sobre a cabeça para se proteger da chuva. Ela desapareceu de vista e se dirigiu para a varanda, para a porta da frente.

— Quem chegou? — perguntou Anne McKinney.

— Cale a boca, sua cadela — disse Josiah. — Nem um pio. Se falar alguma coisa, atiro em quem veio nos visitar. Você decide. — Levantou a espingarda, atravessou a sala e foi até a porta da frente. Nem tinha chegado até lá e a campainha tocou. Abriu uma fresta da porta com a mão esquerda, e manteve a arma escondida atrás da abertura.

A mulher não deu mostras de que esperava alguém diferente de Josiah. Disse apenas o seguinte:

— Espero não ter errado de endereço. Estou procurando a senhora McKinney.

Quando vista de perto, a moça era ainda mais bonita. O tipo de mulher da qual Josiah só se aproximaria depois de umas dez cervejas, porque as chances dela lhe dar um fora seriam muito grandes, e ele não tolerava ser rejeitado. O cabelo dela era preto e brilhante como as asas de um corvo, num rosto perfeito e um corpo que despertaria muitos olhares, apesar de ser um pouco magra. Enquanto Josiah a estudava, ela se virou para ver a tempestade que uivava, e disse:

— É uma sirene de tornado?

— Sim — disse Josiah. — É melhor você entrar logo.

— Você acha que dá tempo de eu voltar para o hotel antes que ele chegue? Parei aqui apenas para pegar algumas garrafas da água de Anne.

Algumas garrafas de água. Até agora, ele não avaliara a sua importância, mas isso trouxe um sorriso espontâneo ao seu rosto, um sorriso tão autêntico como há tempos não sorria, e disse:

— Entendo. Veio buscá-las para o Sr. Shaw, não?

— Isso mesmo.

— Vou buscá-las para você, mas entre e venha ver a Sra. McKinney até que esse barulho pare. É a única opção segura. Por favor.

Ela olhou hesitante para o carro uma última vez na mesma hora em que um galho grande de uma das árvores quebrou e caiu no chão. Ela se voltou para ele e disse:

— Acho que você tem razão. — E entrou.

Josiah fechou a porta antes que ela visse a arma.