54
DE ONDE ESTAVA, ANNE não conseguia ver a porta da frente, e o barulho do vento e da sirene a impediam de entender as palavras, mas o som gentil e educado da voz daquela desconhecida fez com que se sentisse tão mal que teve que apertar o estômago com as mãos. Foi um sentimento que ela só teve uma ou duas vezes na vida, a última vez quando abriram as portas da ambulância e ela viu Harold lá dentro, pensando que ele ainda não tinha partido, embora todo mundo soubesse que sim.
Um minuto depois, a estranha estava na sala. Era uma mulher linda, de cabelos escuros e olhar amedrontado. Anne tentou encontrar os olhos dela e passar para eles algum conforto, mas Josiah a empurrou para uma cadeira ao lado da janela e lhe disse que aquela espingarda tinha dois canos, prontos para dar cabo das duas.
Fez com que se sentasse numa velha cadeira de espaldar reto que Anne estofara e forrara há alguns anos. Em seguida, pegou a fita que trouxera e cortou um pedaço. Ela começou a resistir, mas o homem ergueu a arma, apontou-a para Anne e falou:
— Se resistir, eu mato esta puta velha. Experimente só. Quero ver.
A mulher encarou Anne por um longo tempo, um olhar que levou lágrimas aos olhos da idosa, e, então, deixou que Josiah passasse a fita em volta de seus pulsos, prendendo-os. Anne apenas olhava, sem poder fazer nada. O pânico que ela conseguiu controlar quando estava ali sozinha com Josiah voltara tão forte que ela o sentia em seu coração, estômago e nervos, com tudo passando depressa e de forma muito barulhenta, da mesma maneira que seus sinos de vento se agitavam durante uma tempestade forte como aquela.
— O velho Lucas vai atender minhas ligações agora — dizia Josiah, enquanto cortava mais um pedaço de fita e a enrolava em volta dos braços dela, juntando-os. — Desta vez, ele vai tomar cuidado com o tom de voz.
Lucas? Quem é esse Lucas?
— Eu não conheço nenhum Lucas — afirmou a mulher que acabara de chegar.
— Mentira! Você é a puta da mulher dele, que mandou gente para cá com a intenção de espreitar minha casa e fazer perguntas sobre a minha família...
— Essa não sou eu.
Ele bateu nela. Foi um tapa de mão aberta, que deixou uma marca branca em seu rosto, mas não sangrou, e o som da carne na carne deixou Anne sem fôlego e fez com que brotassem mais lágrimas em seus olhos. Não na minha casa, pensou ela. Oh, não, não na minha casa...
— Não quero mais saber de mentiras! — berrou Josiah. Anne implorava mentalmente para que a outra mulher ficasse em silêncio. Josiah ficava calmo quando alguém concordava com ele. Mas, em vez disso, ela ignorou o tapa e voltou a responder:
— Eu não sou quem você pensa que...
Veio um segundo tapa, e Anne deu um grito, mas a mulher não se calou.
— Sou a mulher de Eric, Eric Shaw. É isso que sou! Não sei de nada sobre Lucas Bradford. Nem ele. Estamos apenas tentando...
Desta vez, ele desistiu do tapa e resolveu pegá-la pelos cabelos e sacudi-la. Ela deu um grito de dor, a cadeira se desequilibrou e fez com que caísse no chão, ainda falando:
— Estamos tentando ir embora daqui enquanto a polícia procura descobrir o que aconteceu. Não conheço nenhum Lucas Bradford! Você entende? Eu não o conheço e ele não me conhece. Ele não tem nada a ver comigo. Não significo nada para ele.
Josiah se virou, pegou a faca de cozinha de Anne que estava em cima da mesa, segurou-a à altura da cintura com a lâmina apontada para ela.
— Não, Josiah! — gritou Anne. — Não na minha casa, não machuque ninguém na minha casa.
Ele parou. Ela ficou surpresa, pois não esperava aquela reação, mas ele parou no meio da investida e girou seu rosto para encará-la.
— Vou lhe pedir que não use mais esse nome — disse. — Se quiser minha atenção, pode me chamar de Campbell. Entendeu?
Anne não sabia o que dizer. A única coisa que conseguiu fazer foi encará-lo com o queixo caído. Ele a deixou de lado e voltou para a mulher, apoiou-se num dos joelhos e agarrou-a outra vez pelos cabelos, e, por eles, ergueu sua cabeça e aproximou a lâmina da faca de sua garganta. Continuar a ver uma cena daquelas foi demais para Anne; ela fechou e apertou os olhos enquanto lágrimas mornas escorriam por eles e tentavam alcançar os sulcos das rugas de suas bochechas.
— Procure na minha bolsa — disse a mulher, com a voz entrecortada, ainda caída no chão. — Se vai me matar, deve pelo menos saber quem eu sou.
Por um bom tempo, Anne ficou sem ouvir qualquer ruído, e estava morrendo de medo que ele tivesse feito um corte silencioso com a faca, deixando a vida da pobre mulher se esvair em sangue no chão de sua sala de estar. Em seguida, ao ouvir as tábuas do assoalho rangendo, abriu os olhos e viu que ele se levantava e se dirigia para o lado perto da porta onde a bolsa dela havia ficado caída, com o batom e o celular largados no chão. Josiah agarrou a bolsa e a virou de cabeça para baixo. Surgiu uma chuva de papéis, moedas e cosméticos, que se espalharam pelo chão. No meio deles, fazendo um barulho mais firme, caiu uma carteira. Josiah atirou a bolsa contra a parede, abriu o fecho da carteira e começou a remexer o conteúdo. Ficou bastante tempo em silêncio, encarando o objeto. Então, fechou a carteira e olhou para a mulher na cadeira virada.
— Claire Shaw — falou.
— Como eu lhe disse.
Ele parecia quase calmo encarando-a, mas, de alguma forma, Anne agora estava com mais medo do que antes.
— Você é a esposa dele — falou ele. — A esposa de Eric Shaw.
— Isso mesmo. E nenhum de nós conhece Lucas Bradford. Não temos nada a ver com os Bradford. Se o que você quer é dinheiro, posso lhe arranjar, mas você tem que acreditar que não temos nada a ver com os Bradford! Posso lhe arranjar dinheiro — repetiu ela. — Minha família... meu pai... posso arranjar...
Sua voz foi diminuindo à medida que ele se aproximava dela. Ainda estava com a faca na mão, mas agora se ajoelhou e pegou mais um pouco da fita. Cortou, com a faca, um pedaço pequeno. Ela ia dizer mais alguma coisa, quando ele se inclinou e colou a fita sobre sua boca. Depois, pressionou o punho por cima dela para ter certeza de que estava bem colada.
— Não a machuque — falou Anne, baixinho. — Por favor, Josiah, não há motivo para machucar ninguém. Você ouviu o que ela disse, eles não têm nem ideia...
— O quê? — falou ele. — O que foi que acabou de dizer?
Demorou um segundo para que ela percebesse que ficara aborrecido por ter usado aquele nome. Queria que ela tivesse se referido a ele como Campbell. E agora, estava ali, de pé, defronte ao desenho feito com sangue que deixara na janela, pedindo para ser identificado como um homem morto. Ela jamais ouvira tamanha loucura.
— Não a machuque — repetiu num sussurro. — Por favor, Campbell, não a machuque.
Ele riu. Mostrou os dentes num largo sorriso, como se o uso do nome Campbell fosse algo delicioso de se ouvir, e Anne sentiu uma gota de suor descendo por sua espinha.
Com o sorriso ainda nos lábios, andou até a janela. Um momento depois, Anne percebeu que ele não olhava para fora, mas sim para ela, para a figura de sangue que desenhara e que agora estava seca sobre o vidro.
— Bem — disse ele —, e agora? Você me falou para ouvir. Eu tentei. E esta cadela não vale nada para mim. Não é nada. Estou aqui, de pé, com as mãos vazias, como sempre estive. Mas estou pronto para ouvir. Estou tentando ouvir.
O vento fazia o vidro bater contra o velho caixilho, enquanto ele continuava em pé, e o olhava como se houvesse algo ali para lhe oferecer alguma ajuda. Claire Shaw ainda estava no chão, imóvel, assistindo a tudo aquilo impressionada e horrorizada.
— Você está certo — disse Josiah para a janela. — Você está certo. É claro que ela não vale nada para mim, ninguém jamais valeu. Mas não é disso que se trata. Eu não preciso dos dólares. Eu preciso de sangue.
A boca de Anne ficou seca e seu coração disparou de novo.
— Vou cuidar delas primeiro — disse Josiah, com a voz mais suave, pensativo. — Finalizar o que precisa ser finalizado e depois voltar para o hotel. Eles irão se lembrar de mim quando isto for feito, não? Eles se lembrarão de nós quando tivermos acabado.
Virou a cabeça e olhou para Anne.
— Levante-se.
— O quê? Eu não...
— Levante-se e desça para o porão. Agora.
— Não a machuque — disse Anne. — Não machuque esta mulher dentro da minha casa.
Josiah deixou a faca cair no chão, pisou nela e pegou a espingarda. Levantou-a e apontou o cano para o rosto de Anne.
— Desça para o maldito porão. Não vou perder meu tempo amarrando-a, sua puta velha.
Foi somente aí, quando ele falou pela segunda vez, que ela percebeu o que lhe estava sendo oferecido — o aparelho de radioamador, o velho e querido R. L. Drake. Uma linha com a vida.
Levantou-se. Suas pernas estavam bambas depois de ter ficado sentada por tanto tempo, e se apoiou na parede com uma das mãos para recuperar o equilíbrio e andar em direção à porta que levava ao porão. Abriu-a e começou a descer. Ao lado da porta havia um interruptor, mas ela não o ligou. Preferiu descer no escuro para que ele não pudesse ver a antiga mesa onde estava o rádio.
Ele nem esperou que ela chegasse lá embaixo. Assim que passou pela porta, a fechou com toda força. Anne ficou numa escuridão total, e se segurou no corrimão. Ela ouviu algumas batidas e percebeu que algo fora colocado contra a porta, travando a maçaneta. Bloqueara a porta e a trancara lá embaixo.
Escorregou a mão pelo corrimão e deu um passo com cuidado em meio à escuridão, e depois outro. Uma farpa se descolou da madeira e beliscou a palma de sua mão. Ela respirou fundo e parou. Lá em cima, ouviu Josiah falando algo que não conseguiu entender. Depois ouviu passos, passos demais para serem apenas dele. A porta da frente se abriu e se fechou com um estrondo. Ela ficou em silêncio e, quando ouviu o barulho do motor da caminhonete dele, pensou: Ah, não.
Eles estavam indo embora. Ele se fora e levara a mulher consigo.
Anne não tinha tempo a perder.
Deu mais um passo e desceu para a escuridão.