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NÃO OUVIU NENHUMA NOTÍCIA sobre Josiah ou a caminhonete. Anne ainda ouvia as ondas curtas, ali, no porão frio que tinha cheiro de umidade e poeira. Tentava manter a esperança, tentava esquecer o som da palma da mão dele ao bater no rosto daquela pobre mulher.

Não ouviu nada que pudesse lhe trazer esperança.

Havia muitos informes — ela não se lembrava de que passara algum dia de sua vida com tal nível de atividade —, mas todos eram relacionados com a tempestade. Os danos em Orleans foram severos. Ao norte, em Mitchell, os ventos derrubaram árvores e quebraram vidros das janelas dos prédios, e, na pequena cidade de Leipsic, foi noticiado um incêndio iniciado por uma linha de alta tensão que caíra sobre um celeiro. O segundo tornado, em Paoli, arrasou uma porção de trailers, alguns até com pessoas dentro.

Eram problemas urgentes, mas o que tomava a atenção de Anne agora não eram as informações sobre os danos causados do norte ao leste, mas sim sobre aquelas nuvens ao sul e ao oeste. Elas vinham acompanhadas por fortes raios, o que não acontecera da primeira vez — uma escola a 16 quilômetros foi atingida por um — e a área abaixo da tempestade estava sendo varrida por uma chuva de granizo. Dois observadores que Anne conhecia e em quem confiava relataram uma formação chamada de rabo de castor, que indica uma rotação nas nuvens de tempestade.

Entretanto, ainda mais alarmante, eram as informações de observadores que estavam na periferia dessa nova tempestade. Nas regiões vizinhas, as tempestades que haviam se formado estavam dissipando. Isso talvez agradasse a alguém que não conhecesse meteorologia, mas não era, de forma alguma, um bom sinal, pois indicava que a energia dessas tempestades mais afastadas iria ser absorvida pela frente maior, alimentando-a.

A tempestade movia-se rapidamente para o nordeste. De volta ao vale de Anne.

Ela chamou a plantonista da polícia mais uma vez, e foi informada que o detetive Brewer ainda não tivera notícias da caminhonete.

— Diga-lhe que procure mais uma vez naquela área. Ele está por lá.

A plantonista respondeu que iria dizer para o detetive fazer uma nova incursão por aquela região.

O mundo ainda não parara de girar. Eric piscou, apertou os olhos e tentou focalizar o que via, mas tudo continuava a se mover, as árvores, a terra e o céu oscilavam à sua volta. De vez em quando, a floresta escura era iluminada pelo clarão de um raio, e o trovão ribombava de um modo que o chão parecia tremer, mas não havia chuva.

Passou a língua sobre os lábios e sentiu gosto de sangue. Tentou sentar-se e sentiu uma dor profunda na clavícula. Procurou com os dedos o ferimento em sua cabeça, mas sua mão tremia tanto que não conseguiu achá-lo, e seus dedos passeavam pelo rosto como se ele fosse um cego fazendo um reconhecimento através do tato.

Estava sozinho.

Aquilo significava que Claire já não estava mais ali.

Deu um grunhido, ficou de quatro e, em seguida, conseguiu engatinhar até uma árvore, na qual se apoiou para poder ficar de pé. O mundo à sua volta inclinou-se outra vez, mas ele a agarrou com firmeza.

Para onde a teriam levado? Tinham acabado de sair; não podiam estar longe. Tinha de ir atrás deles. E rápido, pois Josiah tinha uma arma e dissera alguma coisa sobre...

Dinamite. Cinquenta litros de gasolina para ajudar...

Ele ouvira aquelas palavras, não? Seria verdade? Será que Josiah ­Bradford tinha mesmo dinamite na caçamba da caminhonete?

Quando tirarem os ossos dela do fogo...

Não havia ninguém ali que pudesse ajudar. Kellen estava lá atrás, no golfo, seu carro devia estar destruído e Claire estava com aquele homem, que já nem era mais ele mesmo. Ele estava tomado por Campbell, Eric tinha certeza agora, ouvira isso em sua voz e vira em seus olhos.

Tinha que alcançá-los.

Tinha que alcançá-los depressa.

Finalmente, Josiah tinha uma intenção, sabia qual era e como executá-la. Sentia-se como um homem que sempre procurara por algo no escuro e subitamente percebera que tinha uma caixa de fósforos em seu bolso.

Seu retorno àquele lugar, que o desviara de seu caminho do hotel e de seu objetivo principal, tinha sido misterioso, porém necessário, por razões que não compreendera muito bem no início. No entanto, depois de ter visto Shaw, entendia perfeitamente — Shaw e Campbell tinham uma ligação, um era parte do outro, uma ligação diferente da que havia entre Josiah e Campbell. Shaw fez com que o espírito de Campbell retornasse a este lugar e, de algum modo, ele conseguira entender isso. Percebeu seu significado. Campbell precisava que ele permanecesse vivo para contar a história, ninguém mais seria capaz de dar crédito a este momento quando fosse preciso recontá-lo. Eric Shaw era a exceção. Na questão do legado de Campbell Bradford, Eric Shaw era vital.

Tentavam subir a trilha o mais depressa possível. Josiah arrastava a mulher e mantinha a espingarda apontada para a frente, para Danny. Josiah encarou os olhos daquele que sempre fora seu amigo mais leal, viu o logro que seu olhar ocultava, e percebeu que Danny Hastings não era mais seu aliado.

Tudo bem. Josiah não estava sozinho naquela luta. Campbell estava com ele, e o vale não conhecia aliado mais cruel. Terminariam juntos aquele trabalho, e os obstáculos que se danassem.

Chegaram até o início da trilha e continuaram pelos campos, até o lugar em que havia deixado a caminhonete. Agora que não estavam mais na floresta, ele podia ver tanto as fazendas quanto a estrada, e percebeu que as luzes de emergência, que estavam ali piscando quando ele chegara já tinham desaparecido. Foram atender outras chamadas e resolver problemas em algum outro lugar. Calculou que, para onde quer que tivessem ido, foram para o lado errado.

A caminhonete estava no mesmo lugar, amassada e arranhada, mas pronta para tirá-los dali. Só precisava dela para uma última corrida, de poucos quilômetros.

— É aqui que vamos nos separar — falou para Danny ao passarem pelo Porsche virado para cima. — Você vai ouvir o resto da história logo, logo, espero.

— O que quer dizer?

— Não tenho tempo e nem desejo lhe dar explicações. — Ele empurrou a mulher para a traseira da caminhonete, mas, pela primeira vez, ela resistiu e tentou se livrar dele. As mãos dela ainda estavam amarradas, mas as pernas não, e ela deu um chute em seu joelho. Ele bateu nela com força, apertou seu braço e a jogou contra a lateral do carro. Essa pequena demonstração de luta fez com que achasse que a caçamba da caminhonete talvez não fosse um bom lugar para deixá-la. Em vez disso, iria colocá-la no banco do carona, para que ficasse perto dele.

Pegou o rolo de fita na caçamba e segurou-a enquanto prendia as pernas dela. Deu a volta no carro e a arrastou até o lado do carona, sem se importar com Danny, e abriu a porta. Ela ainda lutava e se debatia tanto que lhe deu uma cabeçada no rosto, o que fez com ele sentisse o gosto de sangue na boca. Então, ele a agarrou pelo pescoço e a empurrou para frente, com o joelho em seu traseiro, até colocá-la dentro da caminhonete. Acabara de fechar a porta quando Danny falou:

— Basta, Josiah.

Josiah se virou para encará-lo e viu a faca em sua mão.

Era um canivete dobrável, com uma lâmina de, no máximo, 10 centímetros, um desses que tem um botão para que se possa abri-lo depressa e parecer um cara mau. Josiah olhou para ele e deu uma gargalhada.

— Vai me cortar?

— Vou fazer o que precisa ser feito. Você decide o que vai ser.

Josiah riu outra vez, levantou a espingarda e colocou o dedo no ­gatilho.

— Faca contra arma de fogo — disse. — Se isso não descreve quão patética é a sua vida inteira, não sei o que mais poderia fazê-lo, Danny.

— O que quer que pretenda fazer, irá fazer sem ela.

— É?

— É.

— Danny, eu aperto esse gatilho e acabo com sua vida. Você entende? Esta puta não tem nada a ver com você.

— Isso não está certo, e não vou concordar com isso.

— Caramba, você está sendo um babaca nobre.

— O que o marido dela lhe disse lá atrás era verdade — falou Danny. — Este não é mais você. Não entendo o que está acontecendo, mas este não é mais você mesmo, Josiah. Nem chega perto.

— O que foi que lhe disse sobre usar esse nome?

— É isso que estou dizendo. O fantasma de Campbell entrou na sua cabeça, como ele falou. Você está falando de um jeito estranho, falando sobre Campbell como se ele estivesse sentado do seu lado. O homem está morto, Josiah, e não sei o que diabo aconteceu com você, mas o homem está morto.

— Este é um engano que vem sido cometido por muito tempo — disse Josiah. — Campbell não morreu.

Danny arrastou os pés para chegar mais perto. Não havia mais que 1,5 metro entre eles. Josiah parecia estar gostando dessa conversa e se divertia com a demonstração de heroísmo de Danny, mas não tinha tempo a perder.

— Abaixe-se e saia da frente — disse. — Eu e essa mulher temos que ir embora.

— Ela não irá com você.

— Danny...

— Estou lhe falando como amigo, Josiah, como o melhor amigo que teve nesta vida, você perdeu a merda da sua cabeça.

— Pode ser — disse Josiah —, mas vou lhe dizer uma coisa: não vou entrar sozinho no fogo. Essa puta vai comigo.

— Do que você está falando?

— Estamos indo. Vá pegar o seu carro.

Danny fez uma pausa bem longa. Olhou, em seguida, para a mulher dentro da caminhonete, botou sua língua grossa e rosada para fora e lambeu os lábios.

— Se tem alguém que vai fazer essa viagem com você, esse alguém sou eu.

— Você quer trocar de lugar com ela?

Danny assentiu.

— E eu é que sou maluco? Ela não significa nada para você, rapaz.

— Nem para você.

Josiah se sentiu inseguro de novo, a mente voltando a vagar sem rumo como fizera o dia todo, e isso o deixou zangado. Não tinha tempo para isso, e sabia muito bem o que tinha que fazer, e estivera preparado para isso até que o bundão sardento do Danny o atrasou com essa conversa fiada.

— Vá para seu carro — repetiu, com mais ênfase desta vez.

— Está bem — disse Danny —, mas ela vai comigo.

Por instantes, manteve o olhar firme em Josiah como se estivesse à procura de um blefe nele, em seguida, lambeu os lábios mais uma vez. Deu um passo em direção à mulher e Josiah apertou o gatilho.

Fazia muito tempo que ele não usava aquela espingarda e esquecera a força que tinha. Ela deu um coice em seus braços, fez seu peito tremer e quase cortou o maldito do Danny Hastings ao meio.

A mulher de Eric Shaw deixou escapar um gemido baixo e angustiado abafado pela fita, e se jogou no chão da caminhonete, encolhida debaixo do painel, como se esperasse que ele fosse atirar mais uma vez pela janela. Danny estava tão perto que o estrago em seu corpo fora catastrófico. A caminhonete, a camisa e o rosto de Josiah ficaram sujos de sangue, que mais parecia com lágrimas quentes em sua pele.

Limpou o rosto com a manga da camisa e olhou para o cadáver no chão.

O melhor amigo que você teve nesta vida...

Algo tremeu dentro dele, um enfraquecimento da determinação que tivera enquanto subia a trilha. Engoliu em seco e trincou os dentes enquanto o sangue de Danny escorria pela grama e formava poças ao lado de seus pés.

Não queria ter feito aquilo. Danny o forçara, sim, ele não queria ter atirado. Não nele. Em qualquer outro ele atiraria, mas não nele.

— Seu desgraçado — disse Josiah, ajoelhando ao seu lado e olhando para o lado esquerdo do corpo de Danny, onde o tronco estava quase separado das pernas. Teria sido diferente se tivesse um revólver, poderia ter atirado nas pernas ou em algum outro lugar para que ele não o atrapalhasse, mas que não iria matá-lo. Porém, com aquela espingarda não tinha outra opção, um tiro como aquele, àquela distância, não apenas matava, destruía.

Tocou a grama perto de seu pé e molhou os dedos com o sangue de Danny.

Não é o seu sangue, sussurrou a voz de Campbell para ele. E não é problema seu.

Entretanto, era mais difícil se concentrar, mais difícil de ouvi-lo. O toque no sangue quente de seu velho amigo o imobilizou de tal forma que era como se estivesse com blocos de concreto presos aos pés. Não conseguia se mover.

Ele não é seu parente, rapaz, e você ainda tem um trabalho a fazer.

A voz de Campbell, firme e forte durante a maior parte daquele dia — tanto que tomou conta da voz de Josiah em algumas situações —, agora parecia mais fraca. Era difícil ouvi-la, era difícil ouvir qualquer outra coisa que não fosse o eco do barulho da espingarda.

Josiah não tinha lembrança de quando conhecera Danny. Fora há muito tempo. Sempre estiveram juntos neste mundo horrível, desde o início, mais como parentes do que como amigos. Aquele estúpido filho da puta nunca parara de andar com ele. Nem mesmo naquele momento. Merda, ele foi até aquele acampamento dos madeireiros para levar coisas, mesmo depois de saber que Josiah matara um homem; veio até aqui seguindo Eric Shaw por orientações de Josiah; ficou à espera dele debaixo daquele tornado maldito.

Ainda há pouco se ofereceu para trocar de lugar com a mulher na caminhonete.

Quem mais faria tudo isso? E por quê?

Porra, rapaz, tire as mãos do sangue e afaste-se daí! Você tinha que ter ouvido. Só isso. A única coisa que você tem de fazer é ouvir. E agora você não está ouvindo.

Entretanto, ele não queria ouvir. Campbell iria lhe dizer para que fosse embora, que saísse dali, mas não lhe parecia certo ir embora e largar Danny ali. Não, não podia deixá-lo ali sozinho...

Foi a mulher quem o livrou daquelas conjecturas. Ele tinha amarrado os pulsos dela para trás com a fita, mas os dedos estavam livres, e, de algum modo, isso fez com que conseguisse alcançar a maçaneta da porta. Ele ouviu o clique da porta se abrindo, e seu pensamento abandonou Danny. Virou-se e viu os pés dela saírem da cabine e, no momento seguinte, seu corpo cair de costas no chão ao lado da caminhonete.

Ele se levantou depressa e deu a volta na caçamba para encontrá-la ali, do outro lado, caída na terra. Não tinha como sair do lugar, estava apenas fazendo confusão, como um peixe debatendo-se na areia, mas ele deu-lhe o crédito por ter tentado. Josiah se abaixou e a agarrou pela parte de trás do jeans e levantou seu corpo. Largou a espingarda e usou as duas mãos para jogá-la de volta dentro do carro. Não tinha nem mesmo fechado a porta quando ouviu um grito estranho ao longe.

Bateu a porta, agarrou a espingarda com as duas mãos, virou-se e olhou ao seu redor, para a floresta. Ouviu o mesmo grito outra vez, e agora entendeu o que ele dizia: não. Eric Shaw encontrara o fim da trilha e estava ali, em frente a eles, do outro lado do campo. Josiah colocou o dedo no gatilho e, por um momento, pensou em atirar na direção de Shaw. Entretanto, se conteve.

— Preste atenção! — gritou. — Preste atenção e escute! Você não pode fazer nada para me deter!

Deu a volta até a porta do lado do motorista, abriu-a e entrou, colocando a espingarda entre as pernas, com o cano apontado para baixo. Ligou o motor enquanto Shaw continuava a atravessar o campo, oscilando de um lado para o outro. Josiah engrenou e arrancou. Pelo retrovisor, viu o homem começar a gritar.

No final da estrada de cascalho, virou para a esquerda e enfiou fundo o pé no acelerador, fazendo os pneus carecas cantarem no pavimento molhado. Foi para o sul, com a intenção de voltar para a cidade pelo mesmo caminho em que veio. Teria que passar outra vez pelos escombros do que restara de sua casa, mas estava determinado a passar por ali como um raio, sem parar ou mesmo dar uma olhada de esguelha.

Era o que pensava, pelo menos durante os primeiros 2 quilômetros, até que a casa apareceu e ele viu que havia um carro parado em frente a ela. Era um carro da polícia. Josiah hesitou, mas não pisou no freio. Eles olhavam para os escombros, não estavam à sua procura.

Foi o que pensou, até que o carro de polícia parou atravessado, bloqueou a estrada e acendeu suas luzes.