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HAVIA UMA GARÇONETE NO bar que Eric achou parecida com Claire: ar gracioso, cabelos pretos brilhantes e sorriso fácil. Por causa disso, decidiu não prolongar muito o seu drinque. Pediu outra cerveja e foi para o quarto, tirou os sapatos e deitou-se na cama, com a intenção de descansar por alguns minutos. Ficou óbvio que a viagem e a bebida foram suficientes para produzir um sono pesado, pois, quando voltou a abrir os olhos, o relógio na cabeceira mostrava que já haviam passado quase duas horas, uns bons trinta minutos depois das 5 horas da tarde. Hora de trabalhar.
Levantou-se entre resmungos, ainda meio sonolento, equilibrou-se em pé e foi buscar a maleta. Nela havia um bloco onde rascunhara as prioridades desse projeto. Tudo o que tinha programado para hoje era se encontrar com o estudante que postara o tópico sobre Campbell na internet, mas também queria filmar o máximo que pudesse.
Dentro da maleta, encontrou, além do bloco, a garrafa de Água Plutão, e se lembrou que precisava descobrir mais sobre ela e, se possível, a idade que tinha.
Ao retirar a garrafa da maleta, Eric poderia jurar que ela estava ainda mais fria do que da última vez que a tocara, em Chicago. Sempre estivera fria, mas agora parecia recém-saída da geladeira. Era difícil de acreditar, considerando a última experiência que teve com ela, mas, de alguma forma, a bebida parecia quase tentadora. Quase refrescante.
— De jeito nenhum — disse ele ao pensar em dar outro gole. Jamais colocaria aquilo no estômago de novo. Não dá para saber o que havia de errado com ela. Aquela coisa poderia até matá-lo.
Entretanto, abriu a tampa mais uma vez. Aproximou o nariz do gargalo e inspirou o ar, preparando-se para ter o estômago revirado por aquele cheiro horrível.
Mas não o sentiu. Talvez algo muito fraco, mas nada comparado ao fedor da última vez. Na verdade, seu cheiro agora era suave, doce. Muito estranho. Deve ter liberado todo o cheiro ruim da primeira vez em que fora aberta. Pode ser que se fazia assim antigamente, deixavam a água em repouso antes de bebê-la.
Ah, diabos, pensou, vá em frente e pelo menos molhe a língua.
Derramou umas poucas gotas na mão em concha, levou-a até perto do rosto e colocou a ponta da língua em contato com ela, esperando pelo pior.
Não era tão ruim. Apenas um gosto adocicado, praticamente imperceptível. Talvez tivesse mesmo que respirar. Mas não tinha coragem de engoli-la novamente. De jeito nenhum.
Recolocou a tampa e saiu do quarto.
Naquela primeira tarde seria melhor somente dar um giro por lá. Começou com umas tomadas da cúpula, do átrio e do resto esplendoroso do interior, e, em seguida, foi para fora, explorar as redondezas. Havia um punhado de prédios rochosos — bonitos, porém pequenos — que outrora abrigavam as fontes de água mineral. Um chafariz se destacava no centro do jardim, e Eric descobriu um pequeno cemitério no topo do morro, com vista para a cúpula. Fez algumas gravações experimentais do terreno ao filmar o hotel através das lápides, e ficou satisfeito com o resultado. Aquele local tinha que fazer parte do que quer que viesse a ser o filme — sempre que fosse possível filmar alguma coisa grande com lápides em primeiro plano era obrigatório incluir na obra.
Ele desceu a montanha, impressionado pelo calor que fazia naquela primeira semana de maio, sua camisa quase colada nas costas e sua testa molhada de suor. Foi até o fim da alameda de tijolos — passando por um homem ainda mais suado, que segurava um cortador de grama e que lhe devolveu o cumprimento com um olhar extremamente mal-humorado —, posicionou-se sob os arcos de pedra e filmou o hotel. O sol ainda estava alto e fazia a cúpula brilhar. Achou que seria perfeito se pudesse pegar um pôr do sol no ângulo certo, uma bota de fogo mergulhando sobre os lampiões antigos justamente na hora em que estes se acendessem.
Não havia falta de opções e ângulos por lá; o lugar oferecia um potencial visual tão grande como Eric jamais vira em qualquer outro. Fez alguns planos, do lado exterior, a partir dos arcos, com um lento zoom que subia a alameda de tijolos devagar, na tentativa de criar o efeito de uma caminhada até o hotel. Em seguida, voltou ao carro e foi para French Lick. Era possível ir a pé, se não tivesse que carregar o equipamento sob aquele sol abrasador.
Uma vez dentro, teve que dar um pouco mais de crédito ao hotel de French Lick — era realmente incrível à sua maneira. Pareceria extraordinário numa pequena cidade como essa não fosse por seu irmão maior estrada acima. Ao entrar, Eric sentiu certa pena de Thomas Taggart. Ele construíra um hotel fantástico só para acabar tendo sua beleza ofuscada por outro meio quilômetro adiante. Mas é assim que as coisas são, sempre tem alguém com algo um pouco melhor que você.
Filmou o hotel e o cassino de forma aleatória, e acabou parando para beber outra cerveja num bar do subsolo, onde as paredes eram enfeitadas com chaves elétricas antigas. Enfim, a bebida estava gelada e a iluminação era suave, o que aliviou sua dor de cabeça. Não tinha certeza de qual era a causa dela. Ele nunca fora dado a dores de cabeça, mas esta danadinha persistiu pelo dia todo. Pode ser que estivesse para ficar doente.
Jantou no bufê do cassino calmamente, não tendo nada para fazer até as 9 horas, quando deveria se encontrar com o estudante. O rapaz dissera a Eric que viria de Bloomington naquela noite, e assim eles combinaram de se encontrar mais tarde para um drinque no bar do hotel. Não trocaram outras informações nos e-mails e, portanto, Eric não fazia ideia de quão útil o garoto poderia ser.
Quando voltou para o lado de fora, o terreno estava banhado por enormes sombras e o sol desaparecia por detrás das montanhas cobertas de árvores. Havia uma estrada secundária que ligava os dois hotéis e o cassino, usada pelos jogadores para irem de um lugar ao outro. Foi por esse caminho que voltou. À sua frente ia um velho Chevy Blazer com o silencioso furado; à esquerda, o declive das montanhas cheio de árvores alinhadas; e à direita, um vale baixo com trilhos de trem. Quatro veados pastavam no vale, olhando curiosos e sem medo para os carros que passavam. Ele dirigia com os vidros abertos e o braço apoiado na porta, o pensamento em Claire, sem prestar atenção nenhuma no entorno, até ver as folhas.
Elas estavam bem à direita, num campo pequeno que ficava entre os trilhos do trem e um córrego. Um amontoado de folhas que ficaram sob a neve no inverno, aguentaram as chuvas da primavera e cozinharam sob o sol fora de estação, até se unirem e ficarem como um pergaminho. Ele afastou os olhos da estrada, enquanto a Blazer à sua frente estalava e rugia. Desviou para o lado, colocou o pé no freio, virou a direção e fez com que o Acura parasse no acostamento, observando.
As folhas giravam em círculo, elevando-se alguns metros do chão, mas se mantinham unidas, num redemoinho perfeito. Era o tipo de coisa que podia ser vista em Chicago, onde os ventos sopravam desse modo entre os prédios, encurralados por toneladas de concreto e aço, forçados a se comportar de maneira incomum. Porém, aqui, ao ar livre, onde o ar parecia se movimentar apenas do oeste e sem nada para mudar sua direção, aquele círculo era estranho. Até o próprio vento parecia inconstante ao conferir uma instabilidade àquelas folhas dançantes e giratórias. Sim, a palavra era aquela: instabilidade.
Deixou o motor em ponto morto, abriu a porta e saiu. Com o vento, sentiu a camisa colar ao redor do corpo e viu uma nuvem de poeira quente levantar-se da estrada, que entrou por suas narinas e trouxe um cheiro que lhe lembrou o trabalho que fazia nas férias da faculdade: transportar areia em carrinhos de mão para uma construtora do Missouri. Deixou o carro ligado e saiu da estrada, ouvindo o sinal sonoro que indicava que a porta ficara aberta. Andou até a pequena encosta coberta de grama alta no lado oposto. Daí foi até os trilhos e parou. Fixou seu olhar naquelas folhas.
Agora, o redemoinho estava mais forte e atraía mais folhas. Já tinha pelo menos 2,5 metros de altura e 1,5 metro de diâmetro no topo e talvez 30 centímetros na base. Girava em sentido horário, com o movimento ora ascendente, ora descendente, mas sempre num círculo perfeito.
Por um momento, ficou completamente fascinado pelo espetáculo, a respiração presa e os olhos esbugalhados, e então sua cabeça voltou a raciocinar e disse: Vá pegar a câmera, idiota.
Correu para o Acura e tirou a câmera e o tripé da mala, certo de que, quando virasse para a frente, as folhas teriam caído no chão e o momento fantástico teria terminado. Mas, não. Elas continuavam a girar, e ele subiu a encosta de cascalho onde ficavam os trilhos. Colocou a câmera no tripé e começou a filmar.
Para filmar aquilo, queria o menor zoom possível e a lente grande angular, para captar aquele estranho momento. A luz era pouca na penumbra do crepúsculo, mas ainda assim era suficiente. Por trás do redemoinho de folhas, os veados ficaram parados na beira da linha das árvores e o observavam. Ele permaneceu com o olho no visor durante alguns segundos até que os bichos levantaram as orelhas e, em saltos rápidos, desapareceram entre as árvores, um atrás do outro, silenciosamente. Depois que o último deles sumiu, Eric começou a perceber um ruído, inicialmente baixo, mas que aumentava de volume com muita rapidez. O vento fazia parte desse som — tinha mais vento em seus ouvidos do que no ar. Forte e vibrante. Acima, havia algo a mais no ápice do som. Leve e agudo. Um violino.
Agora, surgia um terceiro som, mais baixo do que o do violino e o do vento, e, de pronto, Eric pensou se tratar das cordas de um violoncelo ou de um contrabaixo. Porém, o som foi aumentando e pôde-se perceber que não era causado por um instrumento musical, mas por alguma máquina; era o som de engrenagens que pulsavam em ritmo constante. O som de violino aumentou até se tornar um guincho frenético, e desapareceu como que por encanto; o vento cessou e as folhas despencaram do ar e se espalharam pelo chão, com uma delas voando através da grama e se pressionando contra a perna de Eric.
O som de motor estava mais alto do que nunca e cada vez mais próximo. O cineasta tirou os olhos da câmera, olhou para os trilhos da ferrovia e viu a nuvem: uma massa turva, escura e pesada no horizonte, que se aproximava muito depressa. Ele permaneceu parado no meio dos trilhos, observando-a, sentindo o calor do sol diminuindo em sua nuca, mas não vendo outra coisa senão a escuridão à frente, até que as nuvens se separaram e, do centro delas, surgiu um trem.
Era uma locomotiva, e a nuvem escura e maligna saía de sua chaminé, parecendo cobras grossas de vapor negro. Um apito soou e Eric sentiu uma vibração sob os pés, os trilhos tremeram sob a aproximação daquela massa, e o cascalho solto começou a se agitar.
O trem se movia mais rápido do que qualquer outra coisa que Eric já vira e ele estava de pé, exatamente no seu caminho. Foi para o lado, prendeu a ponta do sapato num dos trilhos, tropeçou e quase caiu enquanto levantava o tripé, indo parar onde as folhas agora repousavam. Quando a locomotiva passou por ele feito um trovão, teve que levantar o braço para proteger o rosto. Então, um novo apito rasgou o ar e ele viu que os vagões de carga não tinham uma cor definida, eram todos pretos ou cinzentos, com exceção de um vagão branco com o logotipo da Água Plutão em vermelho. A porta desse carro estava aberta e um homem vinha pendurado nele, com os pés dentro do vagão e o resto do corpo de fora, seu peso sustentado apenas pela mão que segurava a porta. Ele usava um terno fora de moda, com colete e um chapéu-coco. Quando o vagão se aproximou, ele olhou para Eric, sorriu e levantou o chapéu. Pareceu um gesto de agradecimento. Seus olhos castanho-escuros tinham uma aparência líquida, cintilante, e o cineasta percebeu que ele estava de pé sobre a água, e um pouco dela transbordava, brilhante, na escuridão que envolvia o trem.
Então, o veículo se foi, o último vagão de uso privativo dos ferroviários foi usado como arremate. A nuvem que o acompanhava sumiu e Eric ficou ali, com o olhar vago, para o céu, para o nada. Pela estrada, veio um carro que teve de passar pela contramão para desviar do Acura, e a mulher que o dirigia olhou curiosa para Eric, mas não diminuiu a marcha e continuou em direção ao West Baden Springs, no vácuo deixado pelo trem que ela com certeza não vira passar.