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ELE NÃO SUBIU AO apartamento para guardar a câmera. Em vez disso, decidiu ficar com ela até a conversa acabar. No meio da travessia do átrio, Kellen fazia comentários sobre o horário do bar, mas Eric divagava, mal prestando atenção.

Não pense muito nisso, Eric, como fez com a gravação de Harrelson. Ou como fez no vale de Bear Paw. Na verdade, essas não são boas comparações. Pode ter havido algum tipo de atração naqueles casos. Alguma intuição. Mas isto agora? Aquele trem estava só na sua cabeça, meu amigo. Nada mais.

Eric estava até aliviado por estar com Kellen Cage ao seu lado. Cage lhe prometia algo valioso — uma distração. Falar com ele, tomar alguns drinques e esquecer de tudo. Esquecer o tremor nas entranhas e esta sensação tola e sinistra.

— O que vai tomar? — perguntou Cage assim que chegaram ao bar.

— Um Grey Goose com gelo e limão.

Cage virou-se e falou com o barman, enquanto Eric ia se sentar numa banqueta. Olhou para o átrio e respirou fundo. Só precisava relaxar um pouco. O que aconteceu, bem, não era nada, mesmo. Nem valia a pena analisar. Melhor esquecer.

— Então, fico muito feliz em saber que você está interessado em Campbell Bradford — disse Kellen — porque ele é uma das maiores incógnitas que tenho. Simplesmente desapareceu depois que saiu da ­cidade.

— Mas fez uma fortuna depois de se mandar — falou Eric. — Quem me contratou foi sua nora. Ela disse que a fortuna dele vale 200 milhões ou algo assim.

— Você quer dizer valia? — falou Kellen. — Não deve ter mais. Tinha. Ele tem que estar morto.

— Não, mas falta pouco.

Kellen inclinou a cabeça para trás e ergueu as sobrancelhas numa expressão atônita.

— Ele está vivo?

— Estava quando eu saí de Chicago.

O estudante sacudiu a cabeça.

— Impossível. Não pode ser o mesmo Campbell.

Eric estranhou.

— A nora dele me contou que o homem cresceu aqui e fugiu de casa quando ainda era rapaz.

— O Campbell Bradford que conheço também abandonou esta cidade. Mas já era adulto, e deixou aqui a mulher e o filho. E nasceu em 1892, ou seja, teria uns 116 anos agora, certo? Não dá para ser tão velho assim, não é?

— Ele tem 95 anos.

— Então, não é a mesma pessoa.

— Podem ser dois homens com o mesmo nome. Quem sabe o meu Campbell Bradford é filho do seu?

— Ele tinha um filho chamado William que permaneceu na cidade. — O rosto de Kellen mostrou certo desapontamento. — Diabos, você não vai poder me ajudar. Estamos falando de dois homens diferentes.

— Mas devem ter alguma relação — falou Eric. — Um nome igual numa cidade pequena como esta? Devem ter algum parentesco.

Kellen pegou seu drinque e disse:

— O Campbell que conheço era sinistro.

— Como assim?

— Houve um tempo, nos anos 1920, em que este lugar era o paraí­so dos jogadores. Rolava muito dinheiro e também muitas dívidas, e ­Campbell Bradford era o homem que mantinha o equilíbrio entre credores e devedores.

— Pela força?

— Isso mesmo. Era ele quem peitava e cobrava os devedores. Todos tinham pavor dele. Era o mal em pessoa. A história na qual estou interessado, ou seja, onde a história dele se cruza com o meu projeto, é que há uma lenda que diz que ele assassinou Shadrach Hunter depois da quebra da bolsa em 1929, no momento em que a cidade parou. É inacreditável como este lugar se esvaziou depois da Terça-Feira Negra. Num dia, isto aqui era um dos maiores resorts de elite e, no ano seguinte, estava vazio e caminhava para se tornar uma ruína. Uma mudança muito rápida, sabe?

— Quem era Shadrach Hunter?

— Era ele quem dirigia o cassino dos negros — disse Kellen. — Sim, existia um negócio desse. Começou como uma pequena roda de jogadores de pôquer num quarto sujo dos fundos e cresceu. Havia muitos negros que trabalhavam nos hotéis, mas não podiam jogar neles, e por isso iam para os dados e as cartas no cassino de Shadrach. Depois de algum tempo, entretanto, a coisa cresceu. Campbell Bradford ajudava no controle da jogatina dos brancos em todo o vale — trabalhava com Ed Ballard, o proprietário deste hotel. Só que Campbell era mais sujo que Ballard, que por sua vez estava longe de ser honesto — mas não tinha nada a ver com a jogatina de Shadrach. Segundo a lenda, Shadrach era avarento e cobrava sempre algum dinheiro de cada jogo e o acumulava. Carregava sempre um revólver na cintura e só andava na companhia de dois guarda-costas gigantescos.

“Bem, depois que a bolsa quebrou e a cidade fechou, o dinheiro sumiu. Nesse meio-tempo, Shadrach Hunter foi assassinado e Campbell Bradford desapareceu, abandonando sua família sem deixar um tostão. — Kellen abriu as mãos. — É assim que a lenda se desenrola. Sei de muitas histórias, mas conheço poucos fatos. Esperava que você pudesse me fornecer alguns.”

— Tudo o que tenho é um velho milionário moribundo em Chicago com o mesmo nome.

— É possível que seja a mesma pessoa?

— Ele é velho, mas não tem 116 anos.

— Bem, amanhã vou colocá-lo em contato com um homem chamado Edgar Hastings — avisou Kellen. — Estou interessado em saber o que ele irá lhe dizer. Ele conhecia a família, e é uma das últimas pessoas vivas que se lembra com clareza de Campbell Bradford. Campbell tem um bisneto aqui também, mas eu não o procuraria.

O rapaz deu um sorriso seco, e Eric perguntou:

— Por quê?

— Ele é meio grosseiro. Edgar me alertou e disse que seria melhor não o procurar, mas ignorei seu conselho e fui até a casa dele. Não demorou dois minutos para ele me expulsar de lá. Atirou uma garrafa de cerveja no meu carro quando eu saía de lá.

— Quanta gentileza.

— Muito hospitaleiro, sem dúvida. Mas tenho certeza de que ele será tão útil para você quanto foi para mim. Então, Edgar é tudo que tenho a oferecer.

— Tudo bem.

— Como foi que você entrou nessa? — perguntou Kellen. — Sempre quis ser cineasta ou foi um hobby que acabou virando profissão ou...?

Ele deixou a voz escorregar até o fim e ficou à espera de uma resposta. A pergunta fora feita inocentemente, mas Eric sentiu que a raiva o estava consumindo. Teve vontade de gritar: Eu era um cineasta e, se não tivesse tido algumas dificuldades ou se uns poucos babacas não tivessem surgido no meu caminho, você estaria me pedindo um autógrafo neste exato ­momento.

— Formei-me em cinema — respondeu ele com um esforço enorme para voltar à tranquilidade. — Depois, fui para a Califórnia e trabalhei lá por uns tempos. Fiz direção de fotografia em algumas produções.

— Alguma coisa que eu conheça?

Sim, coisas que ele conhecia. Mas, se lhe dissesse os nomes, a pergunta seguinte seria inevitável: E em que filmes tem trabalhado agora? E qual seria sua resposta? Por que, quer dizer que não viu o vídeo que fiz do casamento dos Anderson? Ou o da cerimônia fúnebre de Harrelson? Em que planeta você esteve, cara?

— Provavelmente não — respondeu. — Não aguentei ficar lá e voltei para Chicago, onde comecei meu próprio negócio.

Kellen assentiu.

— Direção de fotografia: o que isso significa, na realidade?

— Você dirige os câmeras e a equipe de iluminação. O diretor é quem manda num filme como um todo, é óbvio, mas o diretor de fotografia é quem cuida das imagens.

— Fazendo as que o diretor quer?

Eric deu um pequeno sorriso.

— Fazendo as que ele precisa. Às vezes, elas coincidem com o desejo do diretor, mas nem sempre.

Kellen demonstrava grande interesse, mas Eric não queria ir mais profundamente nessa conversa, e então disfarçou:

— Sabe, de fato eu gostaria de fazer algumas tomadas aqui — disse, só para mudar o foco.

— Neste local há muito material para uma filmagem — falou Kellen. — Veja só aquela lareira.

Eric virou a cabeça e olhou para a lareira que ficava perto do bar. Ela, como o resto do hotel, era linda e enorme. A frente fora construída com pedras do rio, com um mural pintado acima da fachada. Ele mostrava águas azuis e campos verdes exuberantes, o hotel ao fundo, do lado esquerdo, atrás de uma castanheira. No canto superior direito, assentado sobre uma cascata, via-se Sprudel — o companheiro do Plutão de French Lick, o deus das profundezas. Parecia mais um gnomo do que um demônio, mas foi o suficiente para fazer com que Eric se lembrasse do trem, o que lhe deu arrepios. Ele vira o trem. Não tinha qualquer dúvida disso. Então, o que diabos aquilo significava? Que estava ficando louco?

— Houve um tempo em que colocavam troncos de 4 metros dentro dela para que fossem queimados — falou Kellen. — Imagine. É como cortar um poste pelo meio e colocá-lo na lareira. Você devia filmá-la.

Eric concordou, pegou a câmera, mas não a colocou no tripé. Em vez disso, apoiou-a no ombro, ligou-a, focalizou o mural e observou quando a figura de Sprudel ocupou todo o espaço da lente.

Um homem de smoking tocava um piano de cauda grande, não muito distante do bar. Eric se voltou para filmá-lo, e o pianista, quando o viu, olhou na direção da câmera e piscou. Por algum motivo, esse gesto aparentemente ingênuo fez com que Eric perdesse o foco, abaixasse e desligasse a câmera, para em seguida colocá-la de volta no estojo. Quando endireitou o corpo, sentiu certa tontura enquanto pontos de luz flutuavam defronte de seus olhos ao olhar as garrafas nas prateleiras do bar.

— Foi rápido — falou Kellen.

— As luzes não estão boas — murmurou Eric pegando seu drinque. Deu um longo gole e piscou várias vezes, na esperança de que a visão voltasse ao seu estado normal. Mas não voltou.

O tamanho da rotunda o oprimia e lhe provocava uma sensação estranha de vertigem, embora ele estivesse equilibrado sobre uma base sólida, onde sentia os pés firmes se apoiarem no chão. O problema é que o lugar era muito aberto e muito grande. Ele e Kellen estavam parados na extremidade do bar, que chegava até o átrio, e do outro lado o balcão continuava numa pequena área fechada revestida de lambris de madeira com uma iluminação suave. De repente, sentiu urgência de ir para lá. Para dentro de um espaço menor e mais escuro.

Mas Kellen Cage continua a falar sobre o hotel Waddy e seu time de negros da Liga de Beisebol, chamado de Plutões. Eric colocou uma das mãos em cima do balcão e um pé na barra de metal abaixo para se firmar, e deu outro gole no seu Grey Goose. Deixe o homem falar, não se assuste. Não há nada estranho aqui. Está tudo bem.

Sua boca estava seca apesar do drinque, e a voz de Kellen Cage parecia vir de muito longe e provocava um certo eco. As luzes do átrio aumentaram gradativamente — devagar, porém de forma perceptível —, como se alguém estivesse no controle e girasse o botão para regular sua intensidade. A dor de cabeça voltou com um leve latejar na base do crânio, e aquele bufê enorme começou a lhe revirar o estômago.

Apoiou-se no balcão com as duas mãos, inclinando o corpo sobre o frio tampo de granito. Estava prestes a interromper Kellen Cage para lhe dizer que precisava ir para o lado de fora tomar um pouco de ar fresco, quando um novo som substituiu o estranho eco das conversas à sua volta. Música, uma melodia clara, pura e bonita. Cordas. Um violoncelo ao fundo, talvez, mas no primeiro plano um violino que tocava a música mais doce que Eric jamais ouvira. Era um som suave, uma carícia, e ele sentiu o ar preso saindo de seus pulmões, a dor de cabeça melhorar e o estômago aquietar-se. O violoncelo tocava uma nota grave, longa, mas o violino cobriu-o com uma nota mais alta, exuberante. Eric ficou entusiasmado por tanta beleza e girou o pescoço para descobrir a fonte daquele som. Tinha que ser ao vivo, ele tinha experiência com todo o tipo de equipamento de gravação e sabia que ainda não inventaram nada capaz de reproduzir com tamanha fidelidade o som de um instrumento.

O átrio estava vazio, com exceção de poucas pessoas em algumas poltronas, nenhuma banda à vista, além do pianista. Ele se virou para vê-lo novamente, quando a música do violino diminuiu de volume e a melodia a tornou suave e melancólica. O pianista mantinha sua cabeça inclinada, e suas mãos deslizavam sobre as teclas, em total desarmonia com o som das cordas. Mas a sonoridade do violino saía do piano. Não havia dúvida quanto a isso. A coisa acontecia a menos de 10 metros, e Eric tinha um ótimo ouvido e uma visão melhor ainda. Estava convicto de que a música do violino saía por baixo da tampa da cauda do piano.

— Você gosta mesmo de música, hein? — falou Kellen Cage.

Eric ainda encarava o piano, com a esperança de que surgisse algo que mostrasse que ele estava errado, mas nada surgiu — o instrumento, de alguma maneira, estava tocando uma melodia de cordas. A melodia de cordas mais bonita que ele já ouvira. Mas o movimento das mãos do músico não combinava com o tempo da composição. Elas não tocavam o que se ouvia.

— Que música é esta? — perguntou, a voz quase um sussurro.

— Como? — disse Cage, aproximando-se e exalando um forte cheiro de colônia.

— Qual é o nome dessa música?

Kellen Cage afastou-se e olhou Eric de forma curiosa, dando um sorriso amarelo.

— Você está brincando comigo? É aquela música do filme Casablanca. Todo mundo a conhece. “As Time Goes By”.

Mas não era isso que Eric escutava. Porém, ao observar o ritmo da peça pelos movimentos das mãos do pianista, viu que o estudante estava certo.

— Estou falando da música do violino — disse Eric.

— Violino? — disse Kellen, e de repente o smoking do pianista desaparecera. Fora substituído por um terno amarrotado e um chapéu-coco, e, se Kellen disse mais alguma coisa, Eric não ouviu. Grudou os olhos no músico, cujo rosto estava escondido debaixo do chapéu. Perto dele, a uma distância de 1,5 metro, viu um rapaz magro de pé com um violino no ombro e os olhos completamente fechados. Vestia roupas que não eram do seu tamanho: os braços ossudos saíam das mangas e as calças muito curtas deixavam suas meias expostas. O cabelo louro não era cortado há semanas. No chão, aos seus pés, estava aberto o estojo do violino, e dentro dele, algumas notas e moedas.

Por instantes, eles continuaram tocando aquele dueto suave, o rapaz sempre de olhos fechados. De súbito, o pianista levantou a cabeça, encarou Eric e deu um largo sorriso. Quando o fez, a linda melodia de cordas fragmentou-se novamente num frenesi violento de notas aterrorizantes.

O cineasta abriu a mão e largou seu copo, que bateu na beirada do balcão e se espatifou no chão, espalhando cacos em todas as direções. No instante em que o vidro se quebrou, a música sumiu, com uma nota cortada ao meio, como se alguém tivesse arrancado o fio da tomada. Com ela, foi-se também o rapaz do violino, e o homem com o chapéu­coco foi substituído pelo pianista, que franziu a testa, mas não parou de tocar. Baixou a cabeça outra vez e Eric ouviu a canção, “You must remember this, a kiss is just a kiss...”

“As Time Goes By.” Famosa após o filme Casablanca. Kellen estava certo, todo mundo a conhecia.

— Oh, precisaremos de um lenço se você quiser terminar esse drinque — disse o barman com um sorriso jocoso. Eric sentiu a mão de Kellen sobre o braço, uma pegada forte.

— Está tudo bem? Eric? Você está bem?

Agora sim. Pelo menos, num certo nível. Já em outro...

— Você se incomoda se formos a outro lugar? — perguntou Eric. — Deve haver outro local onde possamos beber alguma coisa que não seja aqui.

Kellen Cage o observou intrigado, mas assentiu, bebeu o resto do seu drinque e largou o braço de Eric.

— Com certeza. Há outros lugares.

Eric sentiu-se melhor assim que saíram. Estava um tempo agradável, devia ser pouco mais de 8 horas da noite, e o sol levara a umidade embora e deixara o exterior com um ar fresco e agradável, temperado com uma brisa leve.

— Você não parecia estar bem lá dentro — disse Kellen, enquanto davam a volta no prédio para chegar ao estacionamento.

— Fiquei um pouco tonto.

— Que conversa era aquela sobre violinos?

— Não era nada, só estava meio confuso.

A única ação sensata a tomar seria cumprimentar Kellen, dizer-lhe que o papo fora ótimo, voltar ao seu quarto e dormir. Entretanto, algo parecia empurrá-lo adiante, rumo a outro lugar. Queria ficar longe do hotel.

— Vamos para o cassino? — perguntou Kellen ao se aproximarem do estacionamento.

Eric sacudiu a cabeça.

— Não, prefiro ir para algum lugar — sem tantas luzes — mais tranquilo, menor.

O estudante apertou os lábios, pensativo.

— Para ser franco, não há muitas opções por aqui. Entretanto, há um pequeno bar lá em cima na estrada. Chama-se Rooster’s. Já almocei lá algumas vezes. Tem uma mulher bastante simpática atrás do balcão, pelo menos.

— Ótimo.

Kellen levantou a mão, apertou um botão em seu chaveiro e as lanternas do carro piscaram. Era um Porsche Cayenne preto que parecia ser novinho em folha.

— Devem pagar melhor aos estudantes do que pagavam no meu tempo — disse Eric.

— Nada disso, comprei-o com meus próprios investimentos. Acertei na mosca.

— Ah, com certeza.

Kellen sorriu.

— Ainda vou encontrar um branco que acredite em mim.

— É só uma questão de tempo! — disse Eric enquanto dava a volta, abria a porta e sentava no banco de couro do carona. — Mas é um carro muito bom, apesar de tudo.

— Meu irmão me deu de presente — disse Kellen. — No meu aniversário de 25 anos.

Eric arregalou os olhos.

— É um belíssimo presente. O que seu irmão faz na vida?

— Já vou lhe mostrar — falou Kellen, e não disse mais nada enquanto ligava o motor e saía do estacionamento. Eric também não perguntou. Em uma outra noite, talvez ficasse mais curioso. Mas agora, tudo o que desejava era descansar a cabeça no encosto do assento, fechar os olhos e acreditar que, quando eles se abrissem de novo, as únicas coisas que veriam seriam deste mundo.