— Tem algo estranho no ar — disse Hadden.
— O quê?
— Eles acham que aconteceu novamente e que conseguiram pegar alguém.
— Está brincando?
— Não.
— O Estripador?
— É o que parece.
— Bobagem. Quem te disse isso?
— Um passarinho...
— Um passarinho muito pequeno?
— Stephanie.
— E como ela ficou sabendo?
— Em Bradford.
— Merda!
— Isso foi quase o que eu disse.
— O que você quer que eu faça?
— Quero que faça algumas ligações pra mim.
Merda.
De volta à minha mesa, peguei o telefone e disquei para Millgarth.
— Samuel?
— Oi, Jack.
— O que aconteceu? — perguntei.
— O que você quer dizer?
— Você sabe o que eu quero dizer.
— Ah, não. Eu não sei.
— Tudo bem, mas quando vai resolver parar de bancar o garotinho bobo e começar a ganhar um pouco o que te faz feliz?
— Em meia hora, mais ou menos.
Olhei para o meu relógio.
Merda.
— Onde?
— No Scarborough?
— Combinado — concordei, desligando.
Olhei mais uma vez para o relógio, verifiquei a minha maleta e saí.
Eu era o primeiro a entrar no Scarborough.
Coloquei a minha cerveja em cima do telefone e disquei.
— Sou eu.
— Não consegue ficar longe, certo? — ela perguntou, rindo.
— Não.
— Apenas algumas horas se passaram.
— Mas sinto a sua falta.
— Eu também. Imaginei que fosse para Manchester.
— Sim, talvez. Mas queria te ligar.
— Legal.
Eu sorri e disse:
— Obrigado pelo fim de semana.
— Não, obrigada você.
— Ligo quando voltar.
— Estarei esperando.
— Adeus, então.
— Adeus, Jack.
Ela desligou primeiro, eu coloquei o fone no gancho, peguei a minha cerveja e caminhei em direção a uma mesa com tampo de cobre, num canto.
Eu estava de pau duro.
Olhei para o meu relógio, queria pegar o trem das 12h30, no máximo.
Caso não tenham agarrado aquele veado, claro.
Eu podia ouvir a chuva batendo nas janelas.
— Que maldito verão — disse o barman, do outro lado do salão.
Concordei, terminei a cerveja e voltei ao bar, onde pedi dois bitters e um pacote de batatas salgadas e vinagre.
De volta à mesa, olhei novamente para o meu relógio.
— Espero que não esteja duro — disse o sargento Samuel Wilson, sentando-se.
— Porra! — resmunguei.
— E feliz porra de Natal pra você também — ele disse, sorrindo. — O que aconteceu com a sua mão?
— Eu me cortei.
— E que merda estava fazendo?
— Cozinhando.
— Porra...
Ofereci uma batata.
— Então?
— O quê?
— Samuel...?
— Jack...?
— Porra, que merda é essa?
— Vá em frente, o que você andou escutando por aí? — ele perguntou, suspirando.
— Estão dizendo que vocês têm um corpo em Bradford e um culpado.
— E?
— Dizem que é o Estripador.
Wilson terminou de beber sua cerveja e sorriu, com espuma nos lábios.
— Samuel...?
— Quer outra, Jack?
Terminei de beber e voltei ao bar.
Quando me sentei de volta, ele já estava sem a capa de chuva.
Olhei para o meu relógio.
— Não estou te prendendo aqui, certo, Jack?
— Não, mas eu deveria ir a Manchester ainda esta tarde. No entanto, tudo dependerá do que você me contar. Se tiver algo interessante.
Ele fungou.
— Diz aí, quanto um homem ocupado como você está disposto a oferecer a um pobre trabalhador como eu?
— Depende do que você tiver. Você sabe como isso funciona.
Ele pegou um pedaço de papel dobrado e agitou na minha cara, dizendo:
— Um memorando interno, de Oldman.
— Vinte?
— Cinquenta.
— Que se foda! Estou apenas confirmando o que escutei. Se você tivesse vindo direto ao seu velho amigo Jack ontem, esta poderia ser uma história diferente, né?
— Quarenta.
— Trinta.
— Trinta e cinco?
— Fechado.
Ele me deu o papel, e eu li:
Ao meio-dia de domingo, dia 12 de junho, o corpo de Janice Ryan, de 22 anos, prostituta, foi encontrado escondido sob um velho sofá num terreno baldio próximo à White Abbey Road, em Bradford.
Após a autópsia, declarou-se que a morte foi consequência de várias lesões na cabeça, lesões causadas por um instrumento contundente. Calcula-se que a vítima morreu sete dias antes de ser encontrada, em razão do estado de decomposição do corpo.
Também se calcula que, diante dos padrões encontrados, esta morte não está conectada, repito, não está conectada, aos demais crimes conhecidos como Assassinatos do Estripador.
Até este momento não foi oferecida qualquer informação à imprensa sobre o crime.
E me levantei.
— Aonde você vai?
— Foi ele — eu disse, seguindo em direção ao telefone.
— E as minhas trinta e cinco libras?
— Um minuto.
Peguei o fone e disquei.
O telefone dela tocou, tocou e tocou.
Avise às prostitutas que deixem as ruas, pois sinto que tudo acontecerá novamente.
Voltei a discar.
O telefone dela tocou, tocou e...
— Alô?
— Onde você estava?
— No banheiro, por quê?
— Aconteceu outra vez.
— Outra vez?
— Sim. E foi ele. Em Bradford. No mesmo local.
— Não.
— Por favor, não saia de casa. Chegarei tarde.
— Quando vai chegar?
— O mais rápido que puder. Não saia.
— Certo.
— Promete?
— Prometo.
— Tchau.
Ela desligou.
Caminhei de volta à mesa, tendo visões de móveis ensanguentados, buracos e cabeças:
Estou avisando com antecedência, então a culpa será sua e delas.
Eu me sentei.
— Você está bem?
— Estou — menti.
— Não parece.
— Então eles pegaram alguém?
— Sim.
— Quem?
— Sei lá...
— Vamos...
— Ninguém sabe, só os de alta patente.
— Pra que tanto segredo?
— Sei lá, porra!
— E estão dizendo que não é o Estripador, certo?
— Sim, é o que dizem.
— Mas o que você acha?
— Sei lá, Jack. É estranho.
— Você ouviu algo mais? Qualquer coisa?
— Quanto?
— Cinquenta, se for coisa boa.
— Tem gente dizendo que certas pessoas foram afastadas, mas você não ouviu nada disso da minha boca, certo?
— Por conta disso?
— É, foi o que disseram.
— Gente de Millgarth?
— Foi o que disseram.
— Quem foi afastado?
— O detetive inspetor Rudkin, o seu amigo Fraser e o detetive Ellis.
— Ellis?
— Mike Ellis. O babaca gordo de boca grande.
— Não conheço. Estão dizendo que eles mataram essa mulher de Bradford?
— Jack, eu não diria isso. Foram apenas afastados, é tudo o que eu sei.
— Porra!
— É verdade.
— Você ficou surpreso?
— De Rudkin, não. De Fraser, sim. E de Ellis também, mas todo mundo odeia esse cara.
— Um babaca?
— Um completo babaca.
— Mas todos sabiam que Rudkin estava sujo?
— Ele não tem toda essa fama à toa...
— Porra! Sério?
— Quando trabalhava na Divisão de Costumes, era famoso por manter mais do que as ruas limpas.
— E Fraser?
— Você o conhece. Ele é o “Senhor Limpeza”. O Coruja sempre o ajudou.
— O Maurice Jobson? Por quê?
— Fraser está casado com a filha de Bill Molloy, certo?
— Claro — concordei, suspirando. — E o maldito Bill está com câncer, certo?
— Certo.
— Interessante...
— Se você acha... — supôs Wilson, dando de ombros.
Olhei para o meu relógio.
— Melhor livrar-se disso — ele disse, apontando para o pedaço de papel sobre a mesa.
Fiz que sim e guardei no meu bolso, pegando a minha carteira.
Contei as notas sobre a mesa e entreguei uma de cinquenta a ele.
— Ótimo, senhor — ele disse, piscando o olho e levantando-se para ir embora.
— Caso descubra algo mais, ligue pra gente.
— Claro que sim.
— Estou falando sério. Se realmente estiverem com o Estripador, quero ser o primeiro a saber.
— Entendido — ele disse, abotoando a capa de chuva e indo embora.
Olhei para o meu relógio e fui em direção ao telefone.
— Bill? Aqui é Jack.
— O que você conseguiu?
— É uma história estranha. Encontraram uma prostituta morta debaixo de um sofá, em Bradford.
— Eu avisei, Jack. Eu avisei.
— Mas estão dizendo que não foi trabalho do Estripador.
— Então por que estão escondendo da gente?
— Não sei, mas é exatamente isso o que eu acho. Acho que um dos oficiais estragou tudo, e algumas pessoas foram afastadas.
— Sério?
— São os rumores em Millgarth.
— Quem teria sido afastado?
— O sargento Fraser, John Rudkin e mais alguém.
— O detetive inspetor John Rudkin? Por quê?
— Não sei. Talvez não tenha nada a ver com isso. Mas é estranho, certo?
— É.
— Um informante nos avisará em primeira mão caso escute alguma coisa.
— Ótimo. Vou deixar a manchete da primeira página em aberto.
— Mas acho melhor não dizer por quê.
— Você vai mesmo para Manchester?
— Acho que sim. Mas talvez volte por Bradford.
— Mantenha o contato, Jack.
— Adeus.
E me sentei no trem, fumei e bebi uma cerveja quente, depois peguei um sanduíche e abri um livro barato: Jack, o Estripador: a solução final.
Quando o trem passava por Huddersfield, eu cochilava, pois a cerveja ruim e o sono se misturavam, e acordei com as colinas e a chuva, com o cabelo contra a janela suja, vagando.
Dei uma olhada no meu relógio: sete e sete.
Eu atravessava os Moors, caminhava pelos Moors, e encontrei uma cadeira, uma cadeira de couro com espaldar alto, e uma mulher vestida de branco ajoelhada na frente da cadeira, com as mãos unidas, rezando, e os cabelos sobre o rosto.
Então me curvei e tirei os cabelos do seu rosto. Era Carol, depois Ka Su Peng. Ela se levantou e fez um sinal para um ponto bem no meio do seu vestido branco, onde uma palavra estava escrita com sangue:
“uaM”.
E lá nos Moors, com todo o vento e a chuva, ela tirou o vestido branco pela cabeça, mostrando seu ventre amarelado e profundo, depois voltou a vesti-lo, do lado avesso, e a palavra escrita com sangue era:
“Mau”.
E um menino pequeno, vestindo pijama azul, saiu de trás da alta cadeira de couro, levando-a pelos Moors, e eu fiquei de pé, sob a chuva, olhando para o meu relógio, que estava parado:
Sete e sete.
Acordei, com a cabeça contra a janela, e olhei para o meu relógio.
Peguei minha pasta e me tranquei no banheiro.
Fiquei sentado no vaso, que não parava de sacolejar, e peguei a revista pornográfica.
Spunk.
Clare Strachan em toda a sua maldita glória.
Mais uma vez de pau duro, verifiquei o endereço e voltei ao meu assento e ao sanduíche ainda pela metade.
No caminho de Stalybridge a Manchester, tentei organizar toda aquela história do Wilson, relendo a nota de Oldman, imaginando que merda Fraser poderia ter feito e sabendo que, naqueles dias, qualquer suspeita poderia ser real.
Subornos e armações, horas extras suspeitas e despesas falsas, documentos negligentes ou falta de documentos.
O maldito John Rudkin na porra da lixeira do Senhor Limpeza.
Sem qualquer ideia clara, voltei à janela, à chuva e às fábricas, aos filmes de terror locais, lembrando-me das fotografias de campos de concentração que o meu tio trouxera da guerra.
Eu tinha quinze anos quando a guerra acabou, e naquele momento, em 1977, estava sentado num trem, com a cabeça contra o vidro escurecido, sob aquela maldita chuva, no maldito norte, imaginando se tudo aquilo realmente acontecera.
Eu pensava em Martin Laws e no Exorcista quando entramos na estação Victoria.
Fui direto ao telefone:
— Alguma coisa?
— Nada.
Do lado de fora da estação, segui para Oldham Street.
Oldham Street, número 270, tudo escuro e banhado pela chuva, com sacos de lixo rasgados do lado de fora, MJM Publishing no terceiro andar.
Parei no sopé da escadaria e sacudi a minha capa de chuva.
Ainda encharcado, subi.
Bati na porta e entrei.
Era um escritório grande, cheio de móveis, mas vazio, com uma porta que dava para outro escritório nos fundos.
E havia uma mulher sentada numa mesa próxima à porta dos fundos, datilografando.
Fiquei de pé próximo ao balcão ao lado da porta e tossi.
— Sim? — ela disse, sem erguer os olhos.
— Gostaria de conversar com o proprietário, por favor.
— Com quem?
— Com o dono.
— Quem é o senhor?
— Jack Williams.
Ela deu de ombros e pegou o velho telefone da sua mesa.
— Tem um senhor aqui que gostaria de falar com o dono. O nome dele é Jack Williams.
Ela permaneceu sentada, fazendo que sim, depois cobriu o fone e perguntou:
— O que o senhor quer?
— Negócios.
— Negócios — ela repetiu, depois fez que sim novamente e perguntou:
— Que tipo de negócios?
— Pedidos.
— Pedidos — ela disse, fazendo que sim pela última vez, depois desligando.
— Então? — perguntei.
Ela revirou os olhos.
— Deixe o seu nome e telefone, e ele ligará de volta.
— Mas eu vim de Leeds.
Ela deu de ombros.
— Que droga! — reclamei.
— É...
— Eu poderia pelo menos saber qual o nome dele?
— Ele se chama Alto Senhor e Maldito Poderoso — ela respondeu, tirando o papel da máquina de escrever.
— Não sei como você consegue trabalhar para um homem desses.
— Não pretendo ficar aqui por muito tempo.
— Está saindo, então?
Ela parou de fingir trabalhar e sorriu.
— Fico até a próxima sexta-feira.
— Sorte a sua.
— Espero que sim.
— Gostaria de ganhar um dinheiro extra para a sua aposentadoria?
— Minha aposentadoria? Está me chamando de velha, seu idiota?
— Um dinheirinho pra guardar de reserva?
— Só um dinheirinho?
— Vinte?
Ela se aproximou de mim, com um leve sorriso.
— Quem é você exatamente?
— Um rival nos negócios, digamos.
— E o que você quer por vinte libras?
— Vai me ajudar, então?
Ela deu uma olhada em volta e piscou.
— Depende do que você quer de mim.
— Conhece a revista Spunk?
Ela voltou a revirar os olhos, mordeu os lábios e concordou.
— Vocês mantêm uma lista das modelos?
— Modelos?
— Você sabe o que eu quero dizer...
— Sei.
— Sabe?
— Sei.
— Endereços, telefones?
— Provavelmente, se alguém registrou, mas duvido que mantenham algum controle.
— Seria ótimo se conseguisse alguns nomes e outras coisas mais sobre essas modelos.
— Mas por que você quer isso?
Dei uma olhada em volta e disse:
— Olha, vendi um lote antigo de Spunk para Amsterdã. Consegui um bom dinheiro por elas. Se o seu chefe está sem tempo pra ganhar um dinheiro com isso, talvez você possa me ajudar.
— Vinte?
— Vinte.
— Não posso fazer isso agora — ela disse.
Olhei para o meu relógio.
— Que horas você sai?
— Às cinco.
— No sopé da escadaria, às cinco?
— Vinte?
— Vinte.
— Até lá, então.
Em plena rodoviária Piccadilly, entrei numa cabine telefônica e disquei.
— Sou eu.
— Cadê você?
— Ainda em Manchester.
— E quando volta pra casa?
— Assim que puder.
— Vou colocar uma roupa bonita, então.
Do lado de fora, a chuva não parava de cair, a cabine vermelha estava toda molhada.
Eu já estivera ali antes, naquela mesma cabine, há vinte e cinco anos, com a minha noiva, que esperava o ônibus para Altrincham para ver a sua tia, e ela usava um anel novo no dedo, e o casamento estava marcado para dali a uma semana.
— Tchau — eu disse, mas ela já tinha desligado.
Caminhei sobre toda aquela sujeira e fiquei dando voltas pela rodoviária por algumas horas, entrando e saindo de cafés, sentando em cadeiras úmidas e tomando cafés ralos, esperando, vendo sombras escuras passeando na chuva, todos tentando driblar os pingos, as lembranças, as dores.
Olhei para o meu relógio.
Era hora de ir.
Já eram quase cinco quando encontrei outra cabine de telefone na Oldham Street.
— Alguma novidade?
— Nada.
Faltando cinco minutos para as cinco, eu estava encharcado no sopé da escadaria.
Dez minutos depois, ela desceu.
— Preciso voltar — ela disse. — Ainda não terminei.
— Conseguiu o que te pedi?
Ela me deu um envelope.
Eu dei uma olhada.
— Está tudo aí. Tudo o que temos.
— Acredito em você — eu disse, entregando o dinheiro.
— Foi um prazer negociar com o senhor — ela disse, sorrindo e voltando a subir as escadas.
— Tenho certeza que sim — respondi. — Tenho certeza.
Voltei à Victoria, onde me disseram que o trem para Bradford sairia de Piccadilly.
Corri como louco e peguei um táxi no último minuto.
Eram quase seis horas quando cheguei lá, mas havia um trem pronto para sair e consegui alcançá-lo.
O vagão cheirava a roupa molhada e fumaça de cigarro, e eu me sentei ao lado de um casal de idosos de Pennistone e seus sanduíches velhos.
A mulher sorriu, eu sorri de volta, e o marido deu uma boa dentada numa grande maçã vermelha.
Abri o envelope e peguei as folhas de papel dobradas, papel xerocado, três no total.
Havia listas de pagamentos, em dinheiro ou cheque, de fevereiro de 1974 a março de 1976, pagamentos a lojas de fotografias, laboratórios, fotógrafos, papéis, tinta e modelos.
Modelos.
Segui a lista, sem fôlego:
Christine Bowen
Catherine Macey
Susan Baker
Tracy Olsen
Nicola Knox
Fiona Sutton
Linda Shay
Stephanie White
Jane Hogan
Barbara Miller
Clare Morrison
Teresa Lane
Alison Wilcox
Jane O’Neill
Sharon Pearson
Liz McDonald
Heidi Toyer
Michelle May
Melanie Freeman
Emily Radford
Jane Dixon
Jane Ryan
Mary Shore
Marcella Oldroyd
Carolyn Ellis
Gaye Catton
Helen Mills
Patricia Oscroft
Mona Balston
Julie Toy
Grace Dalgliesh
Sarah Raine
Sue Penn
Tudo ficou parado, morto.
Clare Morrison, também conhecida como Strachan.
Tudo ficou parado.
Peguei as anotações de Oldman.
Jane Ryan, Janice.
Tudo...
Sue Penn, Su Peng.
Tudo ficou parado...
Ka Su Peng.
Tudo morto.
Naquele trem, naquele trem de lágrimas, naquele trem que atravessava infernos sem disfarce, pequenos infernos descobertos, tudo envolto em sinos que tocavam baixinho, pequenos sinos, naquele trem, ouvindo aqueles sinos baixinhos, que tocavam no fim do mundo:
1977.
1977, o ano em que o mundo se quebrou.
O meu mundo.
A senhora ao meu lado terminou de comer o último sanduíche e fez uma pequena bola com o papel laminado, com ovo e queijo presos aos seus dentes falsos, migalhas de pão entre o pó das suas bochechas, sorrindo para mim, uma gárgula, e o seu marido cravando os dentes na maçã vermelha e gorda, naquele mundo grande e vermelho, vermelho, vermelho.
1977.
1977, o ano em que o mundo ficou vermelho.
O meu mundo.
Eu precisava ver as fotos.
O trem se arrastava.
Eu precisava ver as fotos.
O trem parou em outra estação.
As fotos, as fotos, as fotos.
Clare Morrison, Jane Ryan, Sue Penn.
Eu chorava e queria descer, queria me acalmar, mas quando tentei não consegui.
Havia peças perdidas.
1977.
1977, o ano em que o mundo se partiu em pedaços.
O meu mundo.
Submergindo, morrendo, aquela maldita, aquela maldita cama, e aqueles segredos submarinos que me levavam à tona, que me levantavam da cama.
Encalhado, molhado.
1977.
1977, o ano em que o mundo submergiu.
O meu mundo.
Era 1977, e eu precisava ver as fotografias, tinha de ver aquelas fotografias, as fotografias.
1977, o ano em que...
1977.
O meu mundo.
Uma fotografia imaginária.
Vou colocar uma roupa bonita...
Não desci em Bradford, só troquei de trem para Leeds, sentando-me em outro trem que passava lentamente pelo inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno.
Inferno.
Em Leeds, corri sob a chuva pesada ao longo da Boar Lane, cambaleando, ultrapassando as barreiras de segurança, voando, seguindo em direção a Briggate, caindo, entrando na Joe’s Adults Books.
— Spunk? Edições antigas.
— Ao lado da porta.
— Você tem todos os exemplares?
— Não sei. Dê uma olhada.
De joelhos, com uma pilha de revistas à minha frente, eu deixava as repetidas de lado e segurava todos os exemplares diferentes que encontrava, todos envoltos em plástico.
— Só essas?
— Talvez mais algumas lá atrás.
— Eu quero.
— Tudo bem, tudo bem.
— Todas.
Fiquei parado, de pé, esperando Joe ir lá atrás, parado sob a luz rosa e brilhante, com os carros do lado de fora vencendo a chuva, e os homens ali dentro me olhando.
Joe voltou com seis ou sete revistas nas mãos.
— Essas?
— Acho que são todas.
Olhei e contei treze ou quatorze.
— Ainda é publicada?
— Não.
— Quanto é?
Ele tentou arrancar as revistas da minha mão e perguntou:
— Quantas você tem aí?
Contei, atirando-as no balcão e voltando a segurar todas.
— Treze.
— 8,45.
Entreguei uma nota de dez.
— Quer uma sacola? — ele perguntou.
Mas eu fui embora antes de responder.
No banheiro do mercado, com a porta trancada, no chão, abri as embalagens de plástico, com os dedos voando entre as páginas, entre fotos e desenhos, fotos de bundas, de peitos, de bocetas, de clitóris, de bocetas cabeludas e bocetas sujas, de sangue, de bocetas vermelhas, até encontrar — até encontrar aquela boceta amarela.
É por isso que as pessoas morrem.
É por isso que as pessoas.
É por isso.
Entrei em outra cabine telefônica e disquei.
— George Oldman, por favor.
— Quem é?
— Jack Whitehead.
— Um momento.
Fiquei parado na cabine.
— Senhor Whitehead?
— Sim.
— O escritório do subdiretor de polícia Oldman não aceita mais ligações da imprensa. O senhor poderia, por favor, ligar para o detetive inspetor Evans, no...
Desliguei e vomitei no interior da cabine telefônica vermelha.
Eu estava na minha cama, uma cama lotada de papéis e pornografia, rezando, e o telefone tocando, tocando e tocando, a chuva contra a janela, batendo e batendo, o vento contra as persianas, soprando e soprando, as batidas na porta da frente, batendo e batendo.
— O que aconteceu com o nosso jubileu?
— Acabou.
— Foi pensado como remissão e perdão, mas terminou em penitência?
— Não sou capaz de perdoar o que não conheço.
— Eu, sim, Jack. Eu tenho de fazer isso.
O telefone tocava, tocava e tocava, e ela estava ao meu lado na cama.
Ergui sua cabeça para soltar o meu braço, para me levantar.
Com os pés descalços, fui buscar o telefone.
— Martin?
— Jack? Sou eu, Bill.
— Bill?
— Meu Deus, Jack? Onde você esteve? Onde esteve enquanto o inferno nos invadia?
Fiquei de pé no escuro, negando com a cabeça.
— A verdade é que a prostituta morta de Bradford é simplesmente a maldita namorada de Fraser, e é ele quem está preso.
Dei uma olhada para a cama, ela continuava lá.
Jane Ryan, Janice.
Bill dizia:
— Então, Bradford recebeu uma carta do Estripador, e não disseram nada a Oldman nem a ninguém, mas eles a imprimiram na edição matinal e venderam ao Sun.
Fiquei parado por lá, no escuro.
— Jack?
— Puta que pariu — eu disse.
— Uma merda, cara. Melhor vir pra cá.
Eu me vesti na penumbra, na penumbra, e a deixei deitada na cama.
Nas escadas, olhei para o meu relógio.
Parado.
Do lado de fora, caminhei em direção à rua e à loja paquistanesa na esquina, onde comprei o Telegraph & Argus.
E me sentei num muro baixo, encostado numa cerca, e li.
O ESTRIPADOR ESCREVEU A OLDMAN?
Ontem de manhã, o Telegraph & Argus recebeu a seguinte carta de um homem que se diz o assassino Jack, o Estripador de Yorkshire.
Exames realizados por especialistas independentes e informações de fontes policiais confiáveis levam o Telegraph & Argus a crer que a carta é genuína, e não é a primeira enviada por este homem.
Nós, do Telegraph & Argus, no entanto, acreditamos que o público britânico deveria ter o direito de julgar por si mesmo.
Do inferno.
Querido George,
Sinto muito se, por razões óbvias, não posso lhe dizer o meu nome. Sou o Estripador. Fui chamado de maníaco pela imprensa, mas não por você, que me chama de esperto, pois sabe que é isso o que sou. Você e os seus homens não sabem que os retratos publicados nos jornais me fizeram rir e que essa história de que eu me mataria não tem fundamento. Ainda tenho coisas a fazer.
O meu objetivo é livrar as ruas das vagabundas. Meu único arrependimento é de que essa menina Johnson tenha mudado de rotina aquela noite, mas eu avisei a vocês e ao XXXX XXXXXXXXX do Post.
Vocês dizem que vamos pelo número cinco, mas há uma surpresa em Bradford, uma surpresa a ponto de ser descoberta.
Avise às prostitutas para saírem das ruas, pois sinto que acontecerá novamente.
Sinto muito por essa jovem.
Atenciosamente,
Jack, o Estripador.
Talvez eu escreva novamente, não tenho certeza, mas a última merecia o que aconteceu. As putas estão cada vez mais jovens. Da próxima vez será mais velha, espero.
A manchete seguinte:
A POLÍCIA E O POST SABIAM?
Eu estava sentado no muro baixo, com um gosto ruim na boca, sangue nas mãos, chorando.
É por isso que as pessoas morrem.
É por isso que as pessoas.
É por isso.