Olhei para o meu relógio: sete e sete.
Estava num elevador antigo, observando o número dos andares, subindo.
Saí do elevador.
Um menino vestindo pijama azul está de pé por lá, esperando.
Ele pegou a minha mão e me levou pelo corredor, pelo carpete puído, entre as paredes sujas, em meio aquele cheiro.
Chegamos a uma porta e paramos.
Coloquei os dedos sobre a maçaneta e girei.
Estava aberta.
Quarto 77.
Acordei no chão, com uma terrível dor pelo corpo.
Coloquei uma das mãos sobre a cabeça, sentindo o sangue seco.
Ergui a mão, o quarto foi tomado por uma luz brilhante.
Uma luz matinal, uma luz matinal que vinha de fora, que vinha do parque, onde um vapor se levantava dos lombos dos pôneis e dos cavalos.
E me sentei sob aquela luz matinal, naquele mar de papéis rasgados, de móveis destruídos, voltando a reunir as fotos e as anotações.
Eddie, Eddie, Eddie... em todos os lados.
Entretanto, com todos os cavalos da rainha, com todos os homens da rainha, era impossível reconstituir Eddie.
Assim como eu seria incapaz de reconstituir Jack.
Tentei me levantar, senti um gosto ruim na boca, fui até a pia e cuspi.
Ergui o corpo e abri o registro, atirando água cinzenta e fria no meu rosto.
No espelho, eu o vi, e me vi.
Membros de palha e desejo de vime, pisando em patas, em patas de cavalos, cavalos chineses.
Olhei para o meu relógio.
Já passava das sete.
Sete e sete.
E me sentei no meu carro, no estacionamento do Redbeck, tocando a ponta do meu nariz, tossindo.
Liguei o motor, desliguei o rádio e parti.
Segui em direção a Wakefield, passando pelos pôneis e cavalos parados no parque, pelas pilhas negras onde antes estavam as fogueiras, e segui pela Ossett, descendo a Dewsbury, com escórias negras onde antes estavam os campos, passei pela RD News e depois por Batley, entrando em Bradford.
Parei na rua dela, estacionando ao lado de um alto carvalho que apresentava suas melhores folhas estivais.
Verde.
Bati novamente.
Fazia frio nas escadas, fora do sol, com as folhas batendo nas janelas.
Coloquei os dedos na maçaneta e girei.
Entrei.
O apartamento estava em silêncio e escuro, não havia ninguém em casa.
Fiquei parado na entrada, ouvindo, pensando naquele local acima da RD News, naqueles locais onde nos escondíamos.
Entrei na sala, na sala onde nos encontrávamos, com as cortinas laranjas fechadas, e me sentei na cadeira onde sempre me sentava, e resolvi esperar por ela.
A blusa cor de creme e a calça da mesma cor naquela primeira vez. Os joelhos nus e arranhados na última vez.
Dez minutos depois, eu me levantei e fui à cozinha, coloquei água para ferver.
Esperei que fervesse, enchi uma xícara e voltei à sala.
E me sentei no escuro, esperando por Ka Su Peng, imaginando como chegara ali, listando todas elas:
Mary Ann Nichols, assassinada em Buck’s Row, agosto de 1888.
Annie Chapman, assassinada na Hanbury Street, setembro de 1888.
Elizabeth Stride, assassinada na Berner’s Street, setembro de 1888.
Catherine Eddowes, assassinada na Mitre Square, setembro de 1888.
Mary Jane Kelly, assassinada na Miller’s Court, novembro de 1888.
Cinco mulheres.
Cinco assassinatos.
Senti a onda se aproximando, a maldita onda, lambendo os meus pés e as minhas meias, subindo pelas minhas pernas:
O que aconteceu com o nosso jubileu?
A onda se aproximava, a maldita onda, lambendo os meus pés e as minhas meias, subindo pelas minhas pernas:
Carol Williams, assassinada em Ossett, janeiro de 1975.
Uma mulher.
Um assassinato.
Senti as águas subindo, as malditas Águas da Babilônia, aqueles rios de sangue numa era feminina, com os guarda-chuvas abertos, banhos de sangue, poças de sangue, uma chuva vermelha, branca e azul.
Joyce Jobson, atacada em Halifax, julho de 1974.
Anita Bird, atacada em Cleckheaton, agosto de 1974.
Theresa Campbell, assassinada em Leeds, junho de 1975.
Clare Strachan, assassinada em Preston, novembro de 1975.
Joan Richards, assassinada em Leeds, fevereiro de 1976.
Ka Su Peng, atacada em Bradford, outubro de 1976.
Marie Watts, assassinada em Leeds, maio de 1977.
Linda Clark, atacada em Bradford, junho de 1977.
Rachel Johnson, assassinada em Leeds, junho de 1977.
Janice Ryan, assassinada em Bradford, junho de 1977.
Dez mulheres.
Seis assassinatos.
Quatro ataques.
Halifax, Cleckheaton, Leeds, Preston, Bradford.
A onda de sangue, a inundação de sangue.
Fechei os olhos, com o chá frio nas mãos, naquela sala ainda mais fria. Ela se inclinou, afastando os cabelos, e ouvi mais uma vez a sua música, a nossa música:
Absolver e perdoar, um fim à penitência?
Eu queria mijar.
Ah, Carol.
Abri a porta, acendi a luz e lá estava ela.
Deitada na banheira, com água vermelha, carne branca, cabelos azuis; seu braço direito caído para um lado, sangue pelo chão, profundas serpentes nos seus pulsos.
Fiquei de joelhos.
Tirei o seu corpo da banheira, da água, enrolei-a numa toalha e tentei recobrar sua vida.
Fiquei de joelhos.
Balancei o seu corpo para frente e para trás, seu corpo frio, seus lábios azuis, os buracos negros nas suas mãos, os buracos negros nos seus pés, os buracos negros na sua cabeça.
Fiquei de joelhos.
Chamei o seu nome, implorei, contei a verdade, dei um basta nas mentiras, tudo para que ela abrisse os olhos, para que ouvisse o meu nome, para que ouvisse a verdade.
Eu te amo, eu te amo, eu te amo...
E ela disse:
— Eu te amo, Jack. Preciso te amar.