Antiga cidade inglesa de merda? Como essa antiga cidade inglesa de merda pode continuar existindo! E a bem conhecida e enorme chaminé cinzenta de sua antiga fábrica? Como isso pode estar por aqui! Não há qualquer centelha de ferro enferrujado no ar, de nenhum ponto do panorama. Mas o que é essa centelha que surge, e quem a ativou? Talvez tenha surgido por ordem da rainha, para combater uma horda de ladrões da Commonwealth, um a um. É isso, pois os pratos são tocados e a rainha segue ao seu palácio numa longa procissão. Dez mil espadas brilham sob a luz do sol, e um número três vezes maior de dançarinas atiram flores. Seguem-se elefantes brancos enfeitados nas cores vermelha, azul e branca, inúmeros, e os seus domadores. Ainda assim, a chaminé se ergue ao fundo, onde não deveria estar, sem qualquer fumaça contorcendo-se no espigão soturno. Espere! A chaminé é tão baixa quanto um espeto enferrujado no topo de um postigo de um antigo leito cambaleante. Espere! Eu tenho mais de 25 anos, e os sinos tocam de alegria. Espere.
O telefone tocava.
Eu sabia que era Bill. E sabia o que ele queria de mim.
Estiquei o corpo em direção ao outro travesseiro marrom, aos livros antigos e amarelados, às cinzas espalhadas, e atendi:
— Residência dos Whitehead.
— Apareceu outra. Preciso de você aqui.
Desliguei o telefone e me deitei entre os lençóis e cobertores.
Fiquei olhando para o teto, para os adornos do lustre, para a pintura gasta e para as rachaduras.
E pensei nela, e pensei nele, enquanto os sinos da Saint Anne repicavam no amanhecer.
O telefone voltou a tocar, mas eu fechei os olhos.
Acordei do meu sonho banhado em suor, como um estuprador, e rezei para que aquele sonho não fosse meu. Do lado de fora, as árvores, remanescentes de salgueiros, estavam suadas, o rio corria escuro como uma caixa envernizada, e a Lua e as estrelas, no pano estendido lá em cima, espreitavam o meu coração nebuloso.
The World’s Forgotten Boy.
Atravessando o piso gasto, arrastei minha velha bolsa Dickens em direção à cômoda, parando em frente ao espelho, vendo os ossos solitários que preenchiam o terno surrado dentro do qual eu dormi, sonhei e me ocultei.
Love you, love you, love you...
E me sentei na frente da cômoda, num banco feito na época da faculdade, e tomei um gole de uísque, pensando em Dickens e no seu Edwin, em tudo isso.
Eddie, Eddie, Eddie.
E cantarolei:
One Day my Prince Will Come, ou talvez If I’d Have Known You Were Coming I’d Have Baked a Cake?
As mentiras que contamos e as que não contamos:
Carol, Carol, Carol.
Que pessoa maravilhosa.
Tudo esporrado no chão do meu banheiro, nas minhas costas, buscando o papel higiênico.
Limpei o sêmen da minha barriga e enrolei os lençóis, formando uma bola, afastando-os de mim.
As Tentações do Santo Jack.
Mais uma vez, o sonho.
Mais uma vez, a mulher morta.
Mais uma vez, o veredito e a sentença chegando.
Mais uma vez, tudo acontecia mais uma vez.
Acordei no chão, de joelhos, ao lado da cama, com as mãos em prece, agradecendo a Jesus Cristo, meu salvador, por não ser o assassino do sonho, agradecendo por estar vivo e por ter me perdoado, pois eu não a matara.
A caixa de correio fez um barulho.
Vozes de crianças gritando pelo buraco da porta:
Jack drogado! Jack bêbado! Vá se foder, Jack de merda!
Eu não saberia dizer se era de manhã ou de tarde, ou se era apenas mais uma gangue de meninos sem ter o que fazer e que, sob aquele sol terrível, tinha sido enviada para testar a minha paciência.
Rolei na cama e voltei a ler Edwin Drood, esperando que alguém viesse e me afastasse um pouco de tudo aquilo.
O telefone tocava novamente.
Que alguém salve a minha alma.
— Você está bem? Sabe que horas são?
Horas? Eu nem sabia em que ano estávamos, mas fiz que sim e disse:
— Não consegui sair da cama.
— Certo. Pelo menos está aqui. Com desculpas esfarrapadas e tudo o mais.
Talvez o normal fosse que eu estivesse sentindo falta de tudo aquilo, da agitação e das discussões da redação, dos seus sons e cheiros, mas eu odiava e morria de medo de tudo aquilo. Odiava e morria de medo, assim como odiava e morria de medo dos corredores e salas de aula da escola, com seus sons e cheiros.
Eu tremia.
— Esteve bebendo?
— Durante quarenta anos.
Bill Hadden sorriu.
Ele sabia que eu estava devendo, eu sabia que ele pedia para fazer as contas. Mas, olhando para as minhas mãos, eu não era capaz de imaginar por quê.
Os preços que pagamos, as dívidas que incidem.
Tudo para nunca jamais.
Ergui os olhos e perguntei:
— Quando a encontraram?
— Ontem de manhã.
— Perdi a coletiva de imprensa, então?
Bill voltou a sorrir.
— Vai sonhando...
Suspirei.
— Soltaram um comunicado ontem à noite, mas a coletiva foi marcada para as onze de hoje.
Olhei para o meu relógio.
Estava parado.
— Que horas são?
— Dez — ele respondeu, forçando um sorriso.
Peguei um táxi na frente do prédio do Yorkshire Post em direção ao mercado Kirkgate e me sentei num parapeito, sob o sol fraco da manhã, junto a todos os demais anjos tolos, tentando entender tudo aquilo. Mas o fundo da calça do meu terno fedia, e o colarinho estava cheio de caspa, e eu não conseguia tirar “The Little Drummer Boy” da minha cabeça, e estava cercado de bares, todos fechados por mais uma hora, e havia lágrimas nos meus olhos, terríveis lágrimas que não cessaram durante quinze minutos.
— Olha quem apareceu... — disse o sargento Wilson, que continuava na sua mesa.
— Oi, Samuel — cumprimentei, fazendo um gesto com a cabeça.
— Quanto tempo! — ele disse.
— Nem tanto.
Ele sorria.
— Está aqui para a coletiva de imprensa?
— Talvez tenha vindo para cuidar da minha boa saúde...
— Jack Whitehead? Boa saúde? Nunca. — Ele apontou para as escadas. — Você conhece o caminho.
— Infelizmente.
Não estava tão cheio quanto eu imaginava que estaria, e eu não reconheci ninguém.
Acendi um cigarro e me sentei no fundo da sala.
Havia várias cadeiras à frente, e um funcionário colocava cerca de dez garrafas de água na mesa. Imaginei se deixaria que eu ficasse com uma, mas sabia que não.
A sala começou a ficar cheia de homens que pareciam jogadores de futebol, e duas mulheres entraram. Por um momento, pensei que uma delas fosse Kathryn, mas, quando ela me olhou, notei que não.
Acendi outro cigarro.
Uma porta se abriu à frente e os policiais entraram, com ternos e gravatas manchados de suor, pescoços e rostos vermelhos, pareciam não ter dormido.
De repente, a sala ficou lotada, sem ar.
Era segunda-feira, 30 de maio de 1977.
Eu estava de volta.
Obrigado, Jack.
George Oldman, no centro da mesa, começou a falar:
— Obrigado. Tenho certeza de que já sabem — ele sorria — que o corpo de uma mulher foi encontrado em Soldier’s Field, Roundhay, no início da manhã de ontem. O corpo foi identificado como sendo da senhora Marie Watts, antes conhecida como Marie Owens, de 32 anos, que morava na Frances Street, em Leeds.
“A senhora Watts foi vítima de um ataque particularmente brutal, cujos detalhes ainda não podemos revelar nesta fase da investigação. No entanto, um exame preliminar, feito pelo professor Farley, do Departamento de Medicina Legal da Universidade de Leeds, determinou que a senhora Watts foi morta com um golpe forte na cabeça, dado com um objeto sem ponta e pesado.”
Um golpe forte, e eu notei que não deveria estar ali, deixando que me levassem de lá.
Soldier’s Field. Sob uma capa de chuva barata, com um suéter com gola alta e sutiã rosa esgarçado sobre seus seios grandes e flácidos, as vísceras escapando das feridas de seu estômago.
Oldman dizia:
— A senhora Watts morava em Leeds desde outubro do ano passado, quando veio da região de Londres, onde dizem ter trabalhado em vários hotéis. Estamos particularmente interessados em conversar com qualquer pessoa que possa nos oferecer mais informações sobre a senhora Watts e sobre sua vida em Londres.
“Também gostaríamos de fazer um apelo a qualquer pessoa que esteve nas imediações de Soldier’s Field no sábado à noite ou no domingo de manhã. Pedimos que entrem em contato conosco apenas para afastarmos hipóteses equivocadas. Estamos particularmente interessados em conversar com os motoristas dos seguintes carros: um Ford Capri branco, um Ford Corsair vermelho ou marrom e um Land Rover escuro.
“Mais uma vez, repito, estamos tentando rastrear esses veículos e seus motoristas para afastar hipóteses equivocadas, e nada mais. Qualquer informação recebida será estritamente confidencial.”
Antes de continuar, Oldman tomou um gole de água.
— Além disso, gostaríamos de deixar um apelo ao senhor Stephen Barton, morador da Frances Street, em Leeds, para que viesse até aqui. O senhor Barton era amigo da vítima e pode ter informações valiosas sobre as últimas horas de vida da senhora Watts.
Oldman fez uma pausa, depois sorriu.
— Repito que queremos afastar hipóteses equivocadas, e gostaríamos de enfatizar que o senhor Barton não é um suspeito.
Mais uma pausa, e Oldman murmurou algo aos dois homens sentados ao seu lado.
Tentei me lembrar dos nomes: Noble e Jobson eu conhecia, os outros quatro eram familiares.
Oldman disse:
— Como alguns de vocês sem dúvida sabem, existem algumas semelhanças entre este assassinato e os de Theresa Campbell, em junho de 1975, e Joan Richards, em fevereiro de 1976. As duas eram prostitutas e trabalhavam na região de Chapeltown.
A sala explodiu, e eu permaneci sentado, chocado por Oldman ser tão explícito, pois ele não costumava agir assim.
George movia as mãos para cima e para baixo, tentando acalmar o público:
— Senhores, gostaria de terminar.
Mas não conseguiu deter os ânimos, ninguém poderia.
Foi pior do que eu imaginava que seria, foi mais do que eu imaginava que seria: calcinha branca solta numa das pernas, sandálias ao lado das coxas.
Oldman parou, armando-se com o seu melhor olhar, até que a sala ficasse calada.
— Como eu dizia — ele continuou —, algumas semelhanças não podem ser ignoradas. Ao mesmo tempo, não podemos afirmar categoricamente que os três assassinatos são obra do mesmo indivíduo. No entanto, uma possível conexão nos faz seguir uma linha de investigação.
“E, para terminar, gostaria de anunciar a formação de uma força-tarefa sob comando do detetive chefe superintende Noble, aqui presente.”
E instalou-se o caos. A sala era pequena para tantos homens e tantas perguntas. À minha volta, homens de pé, gritando para Oldman e seus rapazes.
George Oldman sorria, olhando para todos eles. Apontou para um dos repórteres, fazendo sinal de que não ouvia sua pergunta, fingindo indignar-se por não conseguir entendê-lo. E levantou as mãos, como quem diz: “Agora chega”.
O barulho cessou, as pessoas sentaram na beirada de suas cadeiras prontas para o ataque.
Oldman apontou para o homem que continuava de pé.
— Sim, Roger?
— Essa última vítima, Marie Watts, também era prostituta?
Oldman olhou para Noble, e Noble curvou o corpo em direção ao microfone de Oldman, dizendo:
— Nesse ponto da nossa investigação, não podemos confirmar nem negar essa suposição. No entanto, recebemos informações de que a senhora Watts era conhecida na cidade como sendo o que poderíamos chamar de “mulher da vida”.
Mulher da vida.
E todos pensaram: “Puta”.
Oldman apontou para outro homem.
Este se levantou e perguntou:
— Que similaridades fizeram vocês investigarem essa possível conexão?
Oldman sorriu.
— Como eu já disse, alguns detalhes sobre o caso ainda não podem vir a público. No entanto, existem algumas similaridades, como a localização dos assassinatos, a idade e o estilo de vida das vítimas e a forma como foram mortas.
Eu me afogava:
Sangue, espesso, negro, sangue pegajoso, seus cabelos enrolados a pedaços de ossos e massa cinzenta, encharcando-se lentamente sobre a grama de Soldier’s Field, e me encharcando lentamente.
Do fundo da sala, ergui a mão acima da água.
Oldman me olhou, franziu a testa por um momento, depois sorriu, dizendo:
— Jack?
Eu fiz que sim.
Algumas pessoas que estavam na frente da sala voltaram-se para trás.
— Sim, Jack? — ele perguntou novamente. Levantei-me devagar e perguntei:
— Até agora, apenas esses três assassinatos estão sendo considerados?
— Até agora, sim.
Oldman apontou para outro homem.
Eu voltei a me sentar, aliviado, com as perguntas e respostas voando ao meu redor.
Por um momento, fechei os olhos e me deixei levar.
No início, o sonho é pesado, escuro e chega a cegar; depois, lentamente, as coisas tomam forma, girando devagar, em círculos.
Abro os olhos, e ela permanece lá:
De camisola branca da Marks & Spencer, molhada de sangue escuro, sangue vindo do buraco aberto por ele.
Janeiro de 1975, um mês após Eddie.
O fogo no fundo dos meus olhos, eu sinto o fogo no fundo dos meus olhos e sei que ela está novamente lá, brincando com fósforos no fundo dos meus olhos, acendendo os seus faróis.
Cheia de buracos, por todas aquelas cabeças cheias de buracos. Cheia de buracos, todas essas pessoas cheias de buracos. Cheia de buracos, Carol cheia de buracos.
— Jack?
Havia uma mão no meu ombro, e voltei.
1977.
Era George, havia um policial segurando a porta para ele, e a sala estava vazia.
— Ficou perdido lá atrás?
E me levantei, com a boca cheia de ar e cuspe, suja.
— George — cumprimentei, apertando sua mão.
— Que bom te rever — ele disse, sorrindo. — Como vai?
— Você sabe.
— Sei — ele disse, fazendo que sim, pois sabia exatamente como eu estava. — Espero que esteja bem.
— Você me conhece, George.
— Certo. Quero que diga a Bill, da minha parte, espero que ele esteja cuidando bem de você.
— Vou dizer.
— Bom te rever — ele repetiu, seguindo em direção à porta.
— Obrigado.
— Ligue se precisar de alguma coisa — disse, atravessando a porta, e dizendo ao jovem policial: — É o melhor jornalista que já conheci, aquele homem.
E eu, o melhor jornalista que George Oldman já conheceu, fiquei sentado, sozinho, naquela sala vazia.
Voltei ao coração de Leeds, fazendo um tour por aquele inferno seco e abafado.
Meu relógio parou novamente, e me estiquei para escutar os sinos da catedral, tentando vencer todo o barulho. Música alta em todas as lojas por onde eu passava, as raivosas buzinas dos carros, palavras quentes em todas as esquinas.
Procurei os pináculos no céu, mas só havia fumaça. O Sol do meio-dia estava alto e quente na minha testa.
No momento em que alguém caminhava bem na minha frente, desviando-se à direita ao passar por mim, coloquei uma das mãos na frente dos olhos. Depois me virei e vi uma sombra escura desaparecendo num beco.
Busquei a tal sombra, mas ouvi o som de patas de cavalos sobre o pavimento atrás de mim, e quando me virei tudo o que havia era um caminhão de cerveja tentando entrar na rua estreita.
Pressionei o meu rosto contra a parede e deixei que passasse, ficando com tinta vermelha na parte da frente do meu terno e nas minhas mãos.
Dei um passo para trás e olhei para o muro antigo, e para uma palavra escrita em vermelho:
Tofete.
Fiquei de pé no beco, observando a palavra secar, sabendo que já estivera ali antes, que já vira aquela sombra antes, em algum lugar.
— Hoje não é um bom dia para ficar andando por aí coberto de sangue — disse Gaz Williams, editor de esportes, sorrindo.
Stephanie, uma das tipógrafas, não sorria. Olhou para mim, triste, e perguntou:
— O que aconteceu?
— Maldita tinta fresca — respondi, sorrindo.
— Isso é o que você diz... — comentou Gaz.
A conversa foi leve, como sempre. George Greaves, o único que trabalhava por lá há mais tempo que eu ou Bill, estava com a cabeça apoiada na mesa, cochilando após o almoço. Um aparelho de rádio estava ligado em algum lugar, na estação local, com o som de máquinas de escrever e telefones, e centenas de fantasmas me esperando na minha mesa.
Eu me sentei e tirei a capa da máquina de escrever, colocando uma folha em branco e me preparando para trabalhar, de volta às raízes.
Datilografei:
POLÍCIA PROCURA ASSASSINO SÁDICO DE MULHERES
Os detetives estão atrás do homem que matou a senhora Marie Watts, de 32 anos, deixando o seu corpo num parque não muito distante do centro de Leeds. O corpo da senhora Watts, moradora da Francis Street, em Leeds, foi encontrado por um homem que corria pelo parque ontem de manhã.
O cadáver estava no Soldier’s Field, em Roundhay, próximo à escola Roundhay e ao hospital Roundhay Hall. O detetive-chefe superintendente Peter Noble disse que a mulher apresentava graves feridas na cabeça, além de outras que não quis explicitar. O assassino era um sádico, provavelmente um pervertido sexual.
Embora essas declarações não sejam comuns, o subdiretor de polícia, George Oldman, confirmou que a polícia está investigando possíveis conexões com outros dois assassinatos de mulheres em Leeds, casos que não foram resolvidos:
Jun. de 1975: Theresa Campbell, de 26 anos, mãe de três filhos, moradora da Scott Hall Avenue, encontrada morta no parque Prince Philip.
Fev. de 1976: Joan Richards, de 45 anos, mãe de quatro filhos, de New Farnley, encontrada morta num beco sem saída de Chapeltown.
Dizem que a última vítima, a senhora Watts, mudou-se para Leeds, vinda de Londres, em outubro do ano passado. A polícia gostaria de conversar com qualquer pessoa que tenha informações sobre ela, também conhecida como Marie Owens. A polícia também gostaria de conversar com o senhor Stephen Barton, morador da Francis Street, em Leeds, e amigo da senhora Watts. Acredita-se que ele tenha informações sobre as últimas horas de vida da vítima. No entanto, os policiais deixaram bem claro que o senhor Barton não é suspeito.
O subdiretor de polícia, Oldman, também pediu que qualquer pessoa que esteve nos arredores de Soldier’s Field no último sábado vá à delegacia. A polícia está particularmente interessada nos motoristas de um Ford Capri branco, de um Ford Corsair vermelho escuro e de um Land Rover. O senhor Oldman deixou claro que está à procura dos motoristas desses carros unicamente para afastar hipóteses equivocadas, e que qualquer informação será tratada com total sigilo.
Quem tiver qualquer informação deverá entrar em contato com a delegacia mais próxima ou com o Departamento de Homicídios, telefonando para Leeds: 461212.
Tirei o papel da máquina e li.
Nada mais que uma pilha de palavras horrorosas, juntas, formando uma cadeia de horrores.
Queria tomar um drinque, fumar um cigarro e sumir dali.
— Terminou? — perguntou Bill Hadden, atrás de mim.
Fiz que sim e entreguei o papel a ele, como se fosse algo que eu tivesse encontrado.
— O que você acha?
Nuvens se aproximavam do lado de fora da janela, deixando a tarde cinzenta, lançando uma espécie de calmaria sobre a cidade e a redação, e eu fiquei sentado, esperando Bill terminar de ler, sentindo-me mais solitário que nunca.
— Excelente — ele disse, sorrindo.
— Obrigado — agradeci, esperando que uma orquestra começasse a tocar, que os créditos finais subissem e as lágrimas rolassem.
Mas não...
— O que vai fazer agora?
Eu me recostei na cadeira e sorri.
— Quero muito tomar um drinque. E você?
Aquele homem grandalhão, com rosto vermelho e barba branca, suspirou e fez que não, dizendo:
— É um pouco cedo pra mim.
— Pra beber não existe cedo demais, apenas tarde demais.
— Nos vemos amanhã, então? — ele perguntou, esperançoso.
Eu me levantei da cadeira, piscando os olhos sem muita vontade e sorrindo.
— Claro.
— Certo.
— George? — gritei.
George Graves ergueu os olhos de sua mesa.
— Oi, Jack, o que foi?
— Vamos ao Press Club?
— Certo, mas vai ter que ser rápido — respondeu, sorrindo para Bill.
No elevador, George acenou para a redação, e eu me curvei, pensando: “Um homem pode servir ao seu tempo de muitas formas”.
Press Club, escuro como sempre.
Nem me lembrava da última vez que estivera ali, mas George me ajudava.
— Porra, essa foi boa.
Eu não tinha ideia do que ele falava.
No bar, Bet também olhou para mim.
— Quanto tempo, Jack!
— É...
— Como vai, meu querido?
— Tudo bem. E você?
— As minhas pernas já não são tão jovens.
— Você não precisa delas — sorriu George. — Fique como nós, sem pernas. Certo, Jack?
Todos sorrimos, e eu me lembrei de Bet, de suas pernas e das vezes que eu imaginei que poderia viver para sempre, de quando eu realmente queria isso, antes de saber que esta poderia ser uma terrível maldição.
— Uísque? — perguntou Bet.
— Muitas doses — respondi.
— Certo.
Todos sorrimos, eu com uma ereção e um uísque.
Do lado de fora lá estava eu, puto da vida, encostado numa parede com a palavra ÓDIO pintada em tinta branca.
Sem motivo, sem razão, apenas ÓDIO.
As letras se distorciam, e eu me perdia entre elas, entre as coisas que deveria ter escrito e as que escrevi.
Histórias, estaria contando outras histórias no bar.
Gângsters de Yorkshire e policiais de Yorkshire, e mais tarde Cannock Chase e o Pantera Negra.
Histórias, apenas histórias. Com poucas histórias reais, histórias verdadeiras, as que me levavam até lá e me colocavam diante de uma parede onde estava escrito ÓDIO.
Clare Kemplay e Michael Myshkin, os tiroteios do Strafford, o assassino Exorcista.
Todo cão tem o seu dia, todo gato também, e todo Napoleão tem um Waterloo.
Histórias verdadeiras.
Preto e branco contra uma parede que falava ÓDIO.
Passei os dedos sobre a tinta.
E lá estava eu, imaginando para onde tinham ido todos os skinheads?
E lá estavam eles, todos ao meu redor.
Cabeças raspadas e hálito de cerveja.
— Então, vovô — disse um deles.
— Cai fora, babaca — respondi.
Ele deu um passo à frente dos amigos.
— Por que resolveu dizer isso, seu velho idiota, nojento? Vou ter que acabar com você agora, sabia?
— Tente — desafiei, e ele imediatamente me deu um soco, fazendo com que eu parasse de me lembrar, interrompendo minhas memórias por alguns momentos.
Por alguns poucos momentos.
Eu a segurava na rua, entre os meus braços, com sangue nas minhas mãos, sangue no rosto dela, sangue nos meus lábios, sangue na sua boca, sangue nos meus olhos, sangue nos seus cabelos, sangue nas minhas lágrimas, sangue nas suas lágrimas.
Mas nem uma mágica poderia nos salvar, e eu virei o corpo e tentei me levantar, e Carol pediu: “Fique!”. Mas já tinham se passado vinte e cinco anos ou mais, e eu precisava ir embora, precisava deixá-la sozinha na rua, naquele rio de sangue.
Ergui os olhos e tudo o que vi foi Laws, o reverendo Laws, a Lua e ele.
Carol se fora.
Eu estava de pé no meu quarto, com as janelas abertas, preto e azul, como a noite.
Tomei uma dose de uísque para limpar o sangue dos meus dentes, com um gravador junto aos lábios:
“Hoje é dia 30 de maio de 1977, Ano Zero, Leeds, e eu estou de volta ao trabalho...”
Queria dizer mais, não muito mais, mas as palavras não me obedeciam, e apertei a tecla stop, seguindo em direção à cômoda, abrindo a última gaveta e olhando para as pequenas fitas em suas pequenas caixas, todas com suas datas e locais escritos com letras pequenas, como todos os livros da minha juventude, todos os meus Jack, o Estripador, e os doutores Crippens, Seddons e Buck Ruxton, e peguei um ao acaso (ou pelo menos foi o que pensei), depois me deitei, com os pés sob os lençóis sujos, olhando para o teto velho, no instante em que os seus gritos tomaram o quarto.
Acordei no meio da noite escura pensando: “E se ele não estiver morto?”.