DESAPARECIDA HÁ OITO DIAS
Procurámos em todos os cantinhos da casa do meu pai, o que não levou muito tempo, dado estar tão pateticamente vazia. Nos armários, nos roupeiros. Puxei os cantos dos tapetes para ver se iam para cima. Espreitei para dentro das máquinas de lavar e secar, enfiei uma mão pela chaminé. Até procurei atrás do autoclismo.
— Muito Padrinho da tua parte — disse Go.
— Se fosse muito Padrinho, teria encontrado o que estávamos à procura e teria saído aos tiros.
Tanner estava de pé no meio da sala do meu pai, a puxar pela ponta da sua gravata verde-lima. Eu e Go estávamos sujos de poeira e fuligem, mas, de alguma forma, a camisa branca de Tanner resplandecia, como se conservasse algum do glamour estroboscópico de Nova Iorque. Estava a olhar fixamente para o canto de um armário, a morder o lábio, a puxar pela gravata, a pensar. Provavelmente, o homem tinha levado anos a aperfeiçoar aquele visual: o visual Cala-te, cliente, que eu estou a pensar.
— Não gosto disto — disse ele finalmente. — Temos aqui uma série de problemas não contidos, e eu não vou à polícia até termos as coisas muito controladas. O meu primeiro instinto é antecipar-me à situação, comunicar a existência daquelas coisas no barracão, antes que nos apanhem por causa disso. Mas se não soubermos o que é que Amy quer que encontremos aqui, e não soubermos qual o estado de espírito de Andie... Nick, tem algum palpite quanto ao estado de espírito de Andie?
— Chateada — disse eu encolhendo os ombros.
— Quer dizer, isso deixa-me muito, mas muito nervoso. Basicamente, estamos numa situação muito delicada. Precisamos de contar à polícia sobre o barracão. Temos de ser nós a levar a essa descoberta. Mas quero explicar-lhe o que vai acontecer, quando o fizermos. E o que vai acontecer é isto: eles irão atrás de Go. Será uma de duas opções. Primeira: Go é sua cúmplice, andava a ajudá-lo a esconder estas coisas na sua propriedade e o mais provável é que saiba que matou Amy.
— Vá lá, não pode estar a falar a sério — disse eu.
— Nick, teríamos sorte com essa versão — disse Tanner. — Eles podem interpretar isto como quiserem. Que tal esta hipótese: foi Go quem roubou a sua identidade e que arranjou esses cartões de crédito. Foi ela quem comprou as porcarias todas que estão ali dentro. Amy descobriu, houve um confronto e Go matou Amy.
— Então, vamos antecipar-nos a isso — disse eu. — Contamos-lhes sobre o barracão de lenha e contamos-lhes que Amy está a incriminar-me.
— Creio que é má ideia no geral, e neste momento é muito má ideia se não tivermos Andie do nosso lado, porque teríamos de contar-lhes acerca de Andie.
— Porquê?
— Porque se formos à polícia com a sua história de que Amy o incriminou...
— Porque é que continua a dizer a minha história, como se fosse uma coisa que eu inventei?
— Ah! Bem observado. Se explicarmos à polícia como Amy o está a incriminar, temos de explicar porque é que ela o está a fazer. Porquê? Porque descobriu que tem uma namorada muito jovem e bonita por fora.
— Temos mesmo de lhes contar isso? — perguntei.
— Então? Amy incriminou-o pela sua morte porque estava... o quê? Aborrecida?
Comprimi os lábios.
— Temos de lhes dar o móbil de Amy, não funciona de outra maneira. Mas o problema é que se pusermos Andie à porta deles, como um presente, e se eles não acreditarem na teoria da tramoia, então acabámos de lhes dar o móbil para Nick ter cometido homicídio. Problemas de dinheiro, sim. Mulher grávida, sim. Namorada, sim. É o triunvirato do homicida. Vai dentro. As mulheres vão fazer fila para fazê-lo em tirinhas com as unhas. — Começou a andar de um lado para o outro. — Mas se não fizermos nada e a Andie for ter com eles por sua iniciativa...
— Então, o que é que fazemos? — perguntei.
— Creio que os polícias hão de rir-se nas nossas costas, se dissermos neste momento que Amy o tramou. É um argumento pouco sólido. Eu acredito em si, mas é pouco sólido.
— Mas as pistas da caça ao tesouro... — comecei.
— Nick, nem eu compreendo essas pistas — disse Go. — São coisas tão íntimas entre ti e Amy. Só temos a tua palavra de que te estão a levar a... situações incriminatórias. Quer dizer, sinceramente: jeans rotas e pala na cabeça significa Hannibal?
— E casinha castanha significa a casa do vosso pai, que é azul — acrescentou Tanner.
Conseguia sentir as dúvidas de Tanner. Precisava de lhe mostrar realmente o carácter de Amy. As suas mentiras, o seu espírito vingativo, o seu gosto pelo ajuste de contas. Precisava de outras pessoas que confirmassem o que eu dizia — que a minha mulher não era a Incrível Amy, mas a Vingativa Amy.
— Vamos ver se conseguimos contactar hoje com Andie — disse Tanner, por fim.
— Não é um risco esperar? — perguntou Go.
Tanner acenou afirmativamente.
— É um risco. Temos de agir depressa. Se aparecer outra prova, se a polícia conseguir um mandado de busca para o barracão de lenha, se a Andie for ter com a polícia...
— Não vai — disse eu.
— Ela mordeu-te, Nick.
— Não vai. Neste momento, está chateada, mas ela... Não acredito que me fizesse uma coisa dessas. Ela sabe que estou inocente.
— Nick, disse que esteve com Andie durante cerca de uma hora, na manhã em que Amy desapareceu, não foi?
— Sim. Desde cerca das dez e meia até quase ao meio-dia.
— Então, onde é que esteve entre as sete e meia e as dez? — perguntou Tanner. — Disse que saiu de casa às sete e meia, certo? Onde é que foi?
Mordi a bochecha.
— Onde é que foi, Nick? Preciso de saber.
— Não é relevante.
— Nick! — ralhou Go.
— Fiz apenas o que faço às vezes, de manhã. Finjo que me vou embora, depois vou de carro até à parte mais deserta do nosso complexo e... uma dessas casas tem uma garagem destrancada.
— E? — disse Tanner.
— Leio revistas.
— Desculpe?
— Leio números antigos da revista onde trabalhava.
Ainda sentia saudades da minha revista — escondia exemplares, como pornografia, e lia-os às escondidas, porque não queria que ninguém sentisse pena de mim.
Levantei os olhos e tanto Tanner como Go sentiram muita, mas muita, pena de mim.
Fui de carro a minha casa depois do meio-dia e fui recebido por uma rua cheia de carrinhas das notícias e repórteres acampados no meu relvado. Não consegui entrar no meu caminho de acesso, fui obrigado a estacionar em frente de casa. Respirei fundo e depois saí do carro. Atacaram-me como pássaros esfomeados, a debicar e a esvoaçar, a sair da formação e voltando a juntar-se. Nick, sabia que Amy estava grávida? Nick, qual é o seu álibi? Nick, matou Amy?
Consegui entrar em casa e tranquei-me lá dentro. Havia janelas de cada lado da porta, por isso enchi-me de coragem e puxei as persianas para baixo, enquanto as máquinas fotográficas disparavam e me gritavam perguntas. Nick, matou Amy? Depois de correr as persianas, foi como tapar um canário para passar a noite: o barulho lá à frente parou.
Fui ao andar de cima e satisfiz o meu desejo de tomar um duche. Fechei os olhos e deixei que o chuveiro dissolvesse o pó de casa do meu pai. Quando os voltei a abrir, a primeira coisa que vi foi a gilete cor-de-rosa de Amy no prato do sabonete. Parecia agoirenta, malevolente. A minha mulher era louca. Estava casada com uma louca. É a lengalenga de todos os idiotas: Casei com uma cabra psicopata. Mas eu sentia uma pontinha de satisfação: eu tinha mesmo casado com uma cabra psicopata autêntica e genuína. Nick, aqui tens a tua mulher: a maior manipuladora do mundo. Não era tão idiota como pensara. Idiota, sim, mas não numa escala grandiosa. A traição tinha sido uma medida preventiva, uma reação subconsciente aos cinco anos em que estivera preso a uma louca: é claro que havia de me sentir atraído por uma rapariga simples e de trato fácil. É como quando as pessoas com carência de ferro sentem desejos de carne vermelha.
Estava a enxugar-me quando tocaram à campainha. Meti a cabeça de fora da casa de banho e ouvi a voz dos repórteres novamente em ação: Acredita no seu genro, Marybeth? Como é que se sente ao saber que vai ser avô, Rand? Acha que Nick matou a sua filha, Marybeth?
Estavam lado a lado, na soleira da minha porta, de expressão carregada e costas rígidas. Havia cerca de uma dúzia de jornalistas, paparazzi, mas faziam o barulho de duas vezes mais. Acredita no seu genro, Marybeth? Como é que se sente ao saber que vai ser avô, Rand? Os Elliotts entraram murmurando saudações e de ar cabisbaixo, e eu fechei a porta às câmaras. Rand pôs-me uma mão no braço e retirou-a de imediato sob o olhar de Marybeth.
— Desculpem, estava no duche. — O meu cabelo ainda estava a pingar, molhando os ombros da minha t-shirt. O cabelo de Marybeth estava oleoso, a roupa amarrotada. Olhou para mim como se eu estivesse doido.
— Tanner Bolt? Isso é a sério? — perguntou ela.
— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer, Nick: Tanner Bolt? Isso é a sério? Ele só representa gente culpada. — Aproximou-se mais e agarrou-me o queixo. — O que é que tens na bochecha?
— Urticária. É do stresse. — Afastei-me dela. — Isso que diz sobre Tanner não é verdade, Marybeth. Não é. Ele é o melhor que há. Preciso dele neste momento. A única coisa que a polícia está a fazer é a centrar as atenções em mim.
— Disso não há a menor dúvida — disse ela. — Parece a marca de uma dentada...
— É urticária.
Marybeth soltou um suspiro irritado e dobrou a esquina em direção à sala.
— Foi aqui que aconteceu? — perguntou. O seu rosto tinha colapsado numa série de sulcos: papos sob os olhos e maçãs do rosto sem firmeza, lábios descaídos.
— Pensamos que sim. Também houve alguma espécie de... altercação ou confronto na cozinha.
— Por causa do sangue. — Marybeth tocou na otomana, testou-a, levantou-a alguns centímetros e deixou-a cair. — Quem me dera que não tivesses posto tudo no lugar. Assim, é como se nunca tivesse acontecido nada.
— Marybeth, ele tem de viver aqui — disse Rand.
— Ainda não consigo perceber como... quer dizer, e se a polícia não tiver descoberto tudo? E se... não sei. Parece que desistiram. Como se tivessem simplesmente deixado a casa. Aberta a qualquer pessoa.
— Tenho a certeza de que levaram tudo — disse Rand, e apertou-lhe a mão. — Porque é que não pedimos se podes ver as coisas de Amy, para poderes escolher alguma coisa especial, está bem? — Olhou de relance para mim. — Não te importas, Nick? Seria reconfortante ter qualquer coisa dela. — Virou-se outra vez para a mulher. — Aquela camisola azul que a avó tricotou para ela.
— Não quero a porcaria da camisola azul, Rand!
Ela sacudiu a mão dele e começou a andar de um lado para o outro na sala, a agarrar em coisas. Empurrou a otomana com a ponta do pé.
— É esta a otomana, Nick? — perguntou ela. — Aquela que disseram que estava virada ao contrário, mas não devia estar?
— Sim, é essa.
Ela parou de andar, voltou a empurrá-la com o pé e viu que se mantinha de pé.
— Marybeth, tenho a certeza de que Nick está exausto — Rand olhou-me de relance com um sorriso cúmplice —, tal como todos nós. Creio que devíamos fazer aquilo para que cá viemos e...
— Foi para isto que eu vim cá, Rand. Não foi para vir buscar uma estúpida camisola de Amy a que me pudesse agarrar, como se tivesse três anos. Eu quero a minha filha. Não quero as coisas dela. As coisas dela não significam nada para mim. Quero que Nick nos diga o que diabo se está a passar, porque isto tudo já começa a cheirar mal. Nunca, mas nunca, me senti tão parva em toda a minha vida. — Começou a chorar, a limpar as lágrimas, claramente furiosa consigo mesma por estar a chorar. — Nós confiámos-te a nossa filha. Confiámos em ti, Nick! Diz-nos apenas a verdade! — Pôs o indicador trémulo debaixo do meu nariz. — É verdade? Tu não querias o bebé? Já não amavas Amy? Fizeste-lhe mal?
Apeteceu-me bater-lhe. Marybeth e Rand tinham criado Amy. Ela era literalmente produto da sua obra. Tinham-na criado. Tinha vontade de lhes dizer: A vossa filha é que é o monstro nesta história, mas não podia — não até termos contado à polícia —, por isso continuei atónito, a tentar pensar no que podia dizer. Mas a ideia que dava era que estava a jogar à defesa.
— Marybeth, eu nunca faria...
— Eu nunca faria, eu nunca poderia, é a única coisa que ouço da tua maldita boca. Sabes que mais? Já nem sequer suporto olhar para ti. A sério. Há alguma coisa de errado contigo para agires da forma como tens agido. Mesmo que se dê o caso de estares totalmente inocente, nunca te perdoarei por teres aceitado tudo isto com tanta descontração. Dir-se-ia que perdeste a porcaria do guarda-chuva! Depois de tudo o que Amy deixou para trás por tua causa, depois de tudo o que ela fez por ti, e é isto que ela recebe em troca. Isto... Tu... Não acredito em ti, Nick. Foi isso que vim cá dizer-te. Já não acredito em ti.
Ela começou a soluçar, virou costas e saiu porta fora, enquanto os operadores de câmara a filmavam todos excitados. Entrou no carro, e dois repórteres encostaram-se ao vidro da janela, batendo nele, tentando fazer com que ela dissesse alguma coisa. Na sala, conseguíamos ouvi-los a repetir o nome dela, sem parar. Marybeth... Marybeth...
Rand ficou dentro de casa, de mãos nos bolsos, a tentar descobrir que papel havia de representar. A voz de Tanner — temos de manter os Elliotts do nosso lado — era como um coro grego ao meu ouvido.
Rand abriu a boca e eu precedi-o:
— Rand, diga-me o que posso fazer.
— Di-lo simplesmente, Nick.
— Digo o quê?
— Não quero perguntar, e tu não queres responder. Eu percebo isso. Mas preciso de te ouvir dizer isso. Que não mataste a nossa filha.
Ele riu-se e chorou ao mesmo tempo.
— Meu Deus, não consigo pensar com clareza — disse Rand. Estava a ficar rosado, corado, uma queimadura nuclear. — Não consigo perceber como é que isto pode estar a acontecer. Não consigo perceber! — Continuava a sorrir. Uma lágrima rolou-lhe pelo queixo e caiu no colarinho da camisa. — Di-lo simplesmente, Nick.
— Rand, eu não matei Amy nem a magoei de nenhuma maneira. — Ele manteve os olhos cravados em mim. — Acredita em mim? Acredita que eu não a magoei fisicamente?
Rand tornou a rir-se.
— Sabes o que eu estava prestes a dizer? Estava prestes a dizer que já não sei no que hei de acreditar. E depois pensei: isso é a deixa de outra pessoa. A deixa de um filme e não algo que eu devesse estar a dizer, e por um segundo pergunto-me: será que estou num filme? Posso deixar de estar neste filme? Depois, percebo que não. Mas, por um segundo, pensei: Vou dizer uma coisa diferente e tudo isto mudará. Mas não vai mudar, pois não?
Com um rápido aceno de cabeça à Jack Russell, virou-se e seguiu a mulher até ao carro.
Em vez de me sentir triste, senti-me alarmado. Antes mesmo de os Elliotts terem abandonado o caminho da entrada, estava a pensar: Temos de ir ter com a polícia rapidamente, com a maior brevidade. Antes que os Elliotts começassem a falar em público do facto de terem perdido a confiança. Precisava de provar que a minha mulher não era quem fingia ser. Não era a Incrível Amy, mas sim a Vingativa Amy. Lembrei-me de repente de Tommy O’Hara — o tipo que telefonou três vezes para a linha de informações, o tipo que Amy acusara de a violar. Tanner tinha obtido alguns elementos sobre ele: não era o irlandês viril que eu imaginara a partir do nome, não era bombeiro nem polícia. Escrevia para um website humorístico com base em Brooklyn, um trabalho decente, e a fotografia que o identificava como colaborador revelou um tipo magro com óculos de armações escuras e uma quantidade desconfortável de cabelo forte e preto, com um sorriso sardónico e uma t-shirt de uma banda chamada os Bingos.
Ele atendeu ao primeiro toque.
— Sim?
— Daqui fala Nick Dunne. Telefonou-me por causa da minha mulher, Amy Dunne. Amy Elliott. Preciso de falar consigo.
Ouvi uma pausa, esperei que ele me desligasse na cara, tal como Hilary Handy.
— Volte a ligar-me daqui a dez minutos.
Assim fiz. O barulho de fundo era de um bar, eu conhecia aquele som suficientemente bem: o murmúrio dos clientes, o estrépito dos cubos de gelo, os estranhos surtos de ruído, quando as pessoas pediam bebidas ou chamavam amigos. Tive um ataque de saudades do meu próprio bar.
— Pronto, obrigado — disse ele. — Tive de vir para um bar. Esta conversa precisa de um uísque. — A sua voz tornou-se progressivamente mais próxima, mais cava: conseguia imaginá-lo debruçado sobre uma bebida, a proteger a boca com a mão enquanto falava ao telefone.
— Bem — comecei. — Recebi as suas mensagens.
— Certo. Ela continua desaparecida, não é? A Amy?
— Sim.
— Posso perguntar-lhe o que acha que aconteceu? — disse ele. — A Amy?
Porra, queria uma bebida. Fui à cozinha — a melhor coisa a seguir ao meu bar — e servi-me de uma. Andava a tentar ser mais cuidadoso com o álcool, mas sabia tão bem: o cheiro de um uísque escocês, uma sala às escuras com o sol ofuscante lá fora.
— Posso perguntar-lhe porque é que me telefonou? — retorqui.
— Tenho acompanhado as notícias — disse ele. — Você está lixado.
— Pois estou. Queria falar consigo porque pensei que era... interessante o facto de ter tentado entrar em contacto comigo. Tendo em conta o que aconteceu. A acusação de violação.
— Ah, sabe disso.
— Sei que houve uma acusação de violação, mas não acredito necessariamente que seja um violador. Queria ouvir o que tinha a dizer.
— Pois. — Ouvi-o beber um gole do seu uísque, acabar com ele, agitar os cubos de gelo. — Vi a história nas notícias, uma noite. A sua história. A história de Amy. Estava na cama a saborear comida tailandesa. A tratar da minha vidinha. Aquilo deixou-me mesmo a bater mal. Ela, depois destes anos todos. — Chamou o barman para pedir outro. — Por isso, o meu advogado disse que eu não devia falar consigo de maneira nenhuma, mas... que posso eu dizer? Sou demasiado boa pessoa. Não posso deixá-lo na ignorância. Meu Deus, quem me dera que ainda se pudesse fumar nos bares. Esta conversa precisa de um uísque e de um cigarro.
— Conte-me acerca da tal acusação de estupro. Da violação.
— Como eu estava a dizer, tenho visto as notícias e os meios de comunicação andam todos a tramá-lo. Quer dizer, você é o homem. Por isso, eu devia ficar sossegado no meu canto — não preciso daquela rapariga outra vez na minha vida, mesmo que tangencialmente. Mas porra! Quem me dera que alguém me tivesse feito este favor.
— Então, faça-me o favor — pedi.
— Primeiro que tudo, ela retirou as acusações, sabe disso, não sabe?
— Sei. Fez aquilo de que foi acusado?
— Vá-se lixar. Claro que não fiz nada disso. E você, fez?
— Não.
— Ora aí está.
Tommy voltou a pedir o seu uísque.
— Deixe-me perguntar-lhe: o seu casamento era bom? Amy era feliz?
Fiquei calado.
— Não precisa de responder, mas palpita-me que não. Amy não era feliz. Fosse qual fosse a razão. Nem sequer lhe vou perguntar. Sou capaz de adivinhar, mas não lhe vou perguntar. Mas sei que deve saber disto: Amy gosta de fazer de Deus quando não está feliz. Deus do Antigo Testamento.
— Querendo dizer com isso?
— Que ela gosta de castigar — disse Tommy. — Duramente. — Riu-se para o telefone. — Olhe, devia ver-me — disse ele. — Não tenho propriamente aspeto de um macho alfa violador. Pareço um imbecil. Sou um imbecil. A canção mais apropriada para mim no karaoke é «Sister Christian», por chorar alto. Eu choro sempre com o Padrinho II. — Tossiu depois de um gole. Parecia a altura certa para o descontrair.
— Fredo? — perguntei.
— Fredo, meu, isso mesmo. Pobre Fredo.
— Foi desta para melhor.
A maior parte dos homens considera o desporto como a língua franca dos gajos fixes. Para um fanático de filmes, aquilo era o equivalente a discutir uma grande jogada num jogo de futebol famoso. Ambos conhecíamos a deixa, e o facto de ambos a conhecermos eliminava pelo menos um dia de conversa da treta do tipo será que nos damos bem?
Ele pediu outra bebida.
— Foi tão absurdo.
— Conte-me.
— Não está a gravar isto, nem coisa do estilo, não? Está alguém a escutar a conversa? É que eu não quero isso.
— Somos só nós. Eu estou do seu lado.
— Bem, conheci Amy numa festa, isto foi para aí há uns sete anos, e ela era tão fixe. Hilariante e estranha e... fixe. Houve ali um clique, e isso não me acontece com muitas raparigas, pelo menos raparigas como Amy. Por isso, fico a pensar... bem, primeiro fico a pensar que estou a ser enganado. O que é que ela não me estará a dizer? Mas começamos a namorar, e namoramos durante alguns meses, dois ou três meses, e é aí que eu descubro qual é o senão: ela não é a rapariga com quem eu pensava namorar. É capaz de citar coisas divertidas, mas não gosta realmente de coisas divertidas. Prefere não se rir. Na verdade, também preferiria que eu não me risse ou que não fosse divertido, o que é esquisito, já que é esse o meu trabalho. Mas, para ela, é tudo uma grande perda de tempo. Quer dizer, eu nem sequer consigo perceber porque é que ela começou a namorar comigo, pois parece-me perfeitamente claro que nem sequer gosta de mim. Isto faz sentido?
Acenei afirmativamente e engoli um trago de uísque.
— Sim, faz.
— Por isso, começo a dar desculpas para não sair tantas vezes. Não ponho fim à relação porque sou um idiota e ela é linda. Tenho esperança que as coisas mudem. Mas começo a dar desculpas com alguma regularidade: fiquei retido no trabalho, estou em cima do prazo, tenho um amigo na cidade, o meu macaco está doente, qualquer coisa. E começo a sair com outra rapariga, tipo a sair com ela, tudo muito descontraído, nada de especial. Pelo menos, é o que eu penso. Mas Amy descobre — ainda hoje não sei como, mas, ao que parece, tinha montado vigilância ao meu apartamento. Mas... merda...
— Beba qualquer coisa.
Ambos engolimos um trago.
— Uma noite, Amy vai lá a casa, eu andava a encontrar-me com a outra rapariga para aí há um mês, bem, Amy passa por lá e volta a ser como costumava. Arranjou um DVD pirata de um humorista de que eu gosto, um espetáculo clandestino em Durham, e trouxe hambúrgueres. Ficamos a ver o DVD e ela põe a perna por cima da minha, aninha-se contra mim e... desculpe. Ela é sua mulher. Bem, a questão é que a rapariga sabe como puxar por mim. E acabamos...
— Tiveram sexo.
— Sexo consensual, sim. E ela vai-se embora e está tudo bem. Um beijo de despedida à porta, o tratamento completo.
— E depois?
— Quando dou por isso, tenho dois polícias à porta, fizeram as perícias de violação a Amy e ela tem «ferimentos consistentes com violação». E tem marcas de ter estado amarrada nos pulsos e, quando revistam o meu apartamento, encontram duas gravatas presas à cabeceira da minha cama enfiadas junto ao colchão, e as gravatas são, passo a citar, «consistentes com as marcas de ter estado amarrada».
— E tinha-a amarrado?
— Não, o sexo nem sequer foi assim tão... tão, percebe? Eu fui apanhado totalmente desprevenido. Ela deve tê-las atado lá quando me levantei para ir à casa de banho ou qualquer outra coisa. Ou seja, estava metido num caso sério. As perspetivas eram muito más. E depois, de repente, retirou as queixas. Duas semanas mais tarde, recebi um bilhete anónimo, dactilografado, a dizer: Talvez penses duas vezes da próxima vez.
— E não voltou a ter notícias dela?
— Nunca mais.
— E não tentou apresentar queixa contra ela, nem nada do género?
— Hum, não. Não, porra! Fiquei apenas satisfeito por ela ter desaparecido. Depois, na semana passada, estava sentado na cama a saborear a minha comida tailandesa e vejo a notícia sobre Amy. Sobre si. Esposa perfeita, aniversário de casamento, inexistência de corpo, uma situação extremamente desagradável. Juro que fiquei alagado em suor. Pensei: Foi Amy, passou para o homicídio. Caraças! Estou a falar a sério! Aposto que o que ela tramou para si foi bem tramado. Devia estar cheio de medo!