DESAPARECIDA HÁ ONZE DIAS
Esta noite dá a tão publicitada entrevista de Sharon Schieber a Nick. Eu ia assistir com uma garrafa de bom vinho depois de um banho quente, e gravar ao mesmo tempo, para poder tomar nota das suas mentiras. Quero anotar cada exagero, meia verdade, peta e mentira descarada que ele pronunciar, para poder reforçar a minha fúria contra ele. É que ela se esbateu depois da entrevista no blogue — uma entrevista embriagada, dada ao acaso! — e eu não posso permitir que isso aconteça. Não vou amolecer. Não sou uma palerma qualquer! Mesmo assim, estou desejosa de escutar o que tem a dizer sobre Andie, agora que ela cedeu. De escutar o seu nervosismo.
Quero assistir sozinha, mas Desi anda à minha volta durante o dia inteiro, entrando e saindo de qualquer divisão para onde me retire, como uma tempestade repentina, inevitável. Não lhe posso dizer para se ir embora, porque a casa é dele. Já tentei isso e não resulta. Ele diz que quer verificar a canalização da cave ou que quer espreitar o frigorífico, para ver o que precisa de comprar.
Isto vai continuar, penso. É assim que a minha vida vai ser. Ele vai aparecer quando quiser e ficar o tempo que quiser, vai andar por aqui a fazer conversa, e depois vai sentar-se, fazer-me sinal para fazer o mesmo, e vai abrir uma garrafa de vinho e, de repente, estaremos a partilhar uma refeição e não haverá maneira de parar com isto.
— Estou mesmo exausta!
— Dá ao teu benfeitor o prazer de um pouco mais de tempo — responde ele, passando um dedo pelo vinco das suas calças.
Ele sabe da entrevista de Nick naquela noite, por isso vai-se embora e volta com todas as minhas comidas favoritas: queijo Manchego, trufas de chocolate e uma garrafa de Sancerre gelado e, com uma expressão reprovadora, até exibe os Fritos com sabor a malagueta e queijo em que fiquei viciada quando era Amy Ozark. Ele deita o vinho. Temos um acordo tácito para não entrar em pormenores acerca do bebé, ambos sabemos da minha propensão familiar para abortos e como seria horrível para mim ter de falar disso.
— Sempre quero ver o que é que esse porco tem a dizer em seu favor — diz ele. Desi raramente diz otário ou merdoso; diz porco, o que soa mais venenoso nos seus lábios.
Uma hora mais tarde, comemos um jantar leve que Desi cozinhou e bebericámos o vinho que Desi trouxe. Deu-me um bocadinho de queijo e dividiu uma trufa comigo. Deu-me exatamente dez Fritos e, depois, escondeu o pacote. Ele não gosta do cheiro; ofende-o, diz ele, mas aquilo de que ele realmente não gosta é do meu peso. Agora, estamos lado a lado no sofá, com um cobertor macio por cima, porque Desi aumentou o ar condicionado, de forma que é outono em julho. Creio que o fez para poder acender a lareira e para forçar a situação de estarmos juntos debaixo do cobertor; parece ter uma visão outubrista de nós dois. Até me trouxe uma prenda — uma camisola violeta de gola alta para eu usar — e reparo que serve de complemento ao cobertor e à camisola verde-escura de Desi.
— Sabes que, ao longo dos séculos, sempre houve homens patéticos a maltratar mulheres fortes que ameaçavam a sua masculinidade — está Desi a dizer. — Têm psiques tão frágeis que precisam desse controlo...
Estou a pensar num tipo de controlo diferente. Estou a pensar em controlo disfarçado de afeto: Aqui tens uma camisola para o frio, minha querida! Agora, veste-a e materializa a minha visão.
Pelo menos, Nick não fazia isto. Nick deixava-me fazer o que eu queria.
Só quero que Desi se sente quieto e fique calado. Está agitado e nervoso, como se o seu rival estivesse na sala connosco.
— Chiu — digo eu, quando o meu lindo rosto surge no ecrã, depois outra fotografia, e outra, como folhas a cair, uma colagem de Amy.
— Ela era a rapariga que todas as raparigas queriam ser — disse Sharon em voz off. — Linda, brilhante, inspiradora e muito rica.
— Ele era o rapaz que todos os homens admiravam...
— Eu não — murmurou Desi.
— ... bonito, divertido, inteligente e encantador.
— Mas, a 5 de julho, o seu mundo aparentemente perfeito desabou quando Amy Elliott Dunne desapareceu no dia do quinto aniversário do casamento.
Recapitulação recapitulação recapitulação. Fotografias minhas, de Andie e de Nick. Fotografias de arquivo de um teste de gravidez e de contas por pagar. Eu fiz mesmo um trabalho incrível. É como pintar um mural, dar uns passos para trás e pensar: Está perfeito!
— Agora, em exclusivo, Nick Dunne rompe o silêncio, não só sobre o desaparecimento da mulher, como sobre a sua infidelidade e todos esses boatos.
Sinto uma onda de ternura em relação a Nick porque ele está a usar a minha gravata preferida, que comprei para ele, e que ele acha, ou achava, demasiado viva e feminina. É de um roxo brilhante que deixa os seus olhos com uma tonalidade quase violeta. No último mês, perdeu a pança de idiota satisfeito: a barriga desapareceu, as carnes do rosto evaporaram-se e a cova do queixo está mais pequena. O cabelo foi aparado, mas não cortado — tenho a imagem de Go a dar-lhe umas tesouradas, mesmo antes de aparecer no ecrã, a assumir o papel da Mãe Mo, de roda dele, a pôr saliva no polegar e a esfregar-lhe uma mancha qualquer perto do queixo. Está a usar a minha gravata e, quando levanta a mão para fazer um gesto, vejo que está a usar o meu relógio, o Bulova Spaceview clássico que lhe comprei quando fez trinta e três anos, e que ele nunca usava porque não era a cara dele, embora fosse ele sem tirar nem pôr.
— Está maravilhosamente bem arranjado para um homem que pensa que a mulher desapareceu — critica Desi. — Ainda bem que não faltou à manicura.
— Nick nunca iria à manicura — digo eu, olhando de relance para as unhas polidas de Desi.
— Vamos diretos à questão, Nick — diz Sharon. — Teve alguma coisa a ver com o desaparecimento da sua mulher?
— Não. Não. Absolutamente, cem por cento não — diz Nick, fazendo questão de sustentar o seu olhar. — Mas deixe-me que lhe diga, Sharon, que estou longe, mas muito longe, de ser inocente, ou isento de culpa, ou um bom marido. Se não estivesse tão receoso por Amy, diria que, de certa forma, o seu desaparecimento até foi bom...
— Desculpe, Nick, mas creio que há muita gente com dificuldade em acreditar que disse uma coisa dessas quando a sua mulher está desaparecida.
— É a sensação mais pavorosa e horrível do mundo e quero que ela volte, mais do que qualquer outra coisa. O que digo é que foi a forma mais brutal de me abrir os olhos. Detesto pensar que sou um homem tão horrível que foi preciso uma coisa destas para me arrancar à minha espiral de egoísmo e para me despertar para o facto de ser o filho da mãe mais sortudo do mundo. Quer dizer, eu tinha esta mulher, que era igual a mim, ou mesmo melhor do que eu em todos os aspetos, e deixei que as minhas inseguranças, em relação a perder o emprego, a não ser capaz de cuidar da minha família, ao envelhecimento, encobrissem tudo isso.
— Oh, por favor — começa Desi, e eu mando-o calar. Para Nick, o facto de admitir perante toda a gente que não é um bom homem é uma forma de morte e não da variedade petite mort.
— E, Sharon, deixe-me dizer isto. Deixe-me dizê-lo agora: eu enganei-a com outra. Desrespeitei a minha mulher. Não queria ser o homem em que me tinha tornado, mas, em vez de trabalhar a minha pessoa, optei pela saída mais fácil. Enganei-a com uma jovem que mal me conhecia. Para poder fingir ser um grande homem. Para poder fingir ser o homem que pretendia ser, inteligente, confiante e bem-sucedido, porque esta jovem não conhecia outra coisa. Esta jovem não me tinha visto a chorar agarrado a uma toalha na casa de banho, a meio da noite, por ter perdido o emprego. Não conhecia todos os meus pontos fracos e defeitos. Eu era um estúpido, que pensava que a minha mulher não me iria amar se eu não fosse perfeito. Eu queria ser o herói de Amy e, quando perdi o emprego, perdi o respeito por mim próprio. Já não podia ser esse herói. Sharon, eu sei distinguir o bem do mal. E eu procedi mal, muito simplesmente.
— O que diria à sua mulher, partindo do princípio de que ela pode estar algures por aí e que pode vê-lo e ouvi-lo esta noite?
— Diria: Amy, amo-te. És a melhor mulher que alguma vez conheci. És mais do que mereço e, se voltares, vou passar o resto da minha vida a compensar-te. Encontraremos uma forma de pôr todo este horror para trás das costas e serei o melhor homem do mundo para ti. Por favor, volta para mim, Amy.
Apenas por um segundo, coloca a almofada do seu indicador na covinha do queixo, o nosso velho código secreto, aquele que tínhamos criado para jurar que não nos íamos enganar um ao outro — o vestido ficava realmente bem, o artigo era realmente sólido. Estou a ser absolutamente, cem por cento sincero contigo neste momento — vou olhar por ti e não vou falhar.
Desi inclina-se à minha frente para me tapar a vista do ecrã e agarra no Sancerre:
— Mais vinho, querida? — pergunta.
— Chiu!
Ele para o programa.
— Amy, tu és uma mulher de bom coração. Eu sei que és sensível a... súplicas. Mas tudo o que ele está a dizer é mentira.
Nick está a dizer exatamente aquilo que eu quero ouvir. Finalmente.
Desi movimenta-se de forma a ficar a olhar para mim de frente, tapando-me completamente a visão.
— Nick está a representar. Ele quer mostrar-se um homem bom e arrependido. Reconheço que está a fazer um trabalho espetacular. Mas não é real; nem sequer mencionou o facto de te espancar e violar. Não sei que tipo de ascendente é que esse tipo tem sobre ti. Deve ser uma coisa do tipo síndrome de Estocolmo...
— Eu sei — replico. Sei exatamente o que devo dizer a Desi. — Tens razão. Tens toda a razão. Há muito tempo que não me sentia assim tão segura, Desi, mas continuo... Vejo-o e... eu estou a lutar contra isso, mas ele magoou-me... durante anos.
— Talvez não devêssemos ver mais — diz ele, enrolando-me o cabelo e aproximando-se demasiado.
— Não, deixa estar ligado. Tenho de enfrentar isto. Contigo. Consigo fazê-lo contigo. — Ponho a minha mão na dele. Agora cala-me essa boca.
Só quero que Amy volte para casa, para eu poder passar o resto da vida a compensá-la, a tratá-la como ela merece.
Nick perdoa-me — Eu enganei-te, tu enganaste-me, vamos fazer as pazes. E se o código for verdadeiro? Nick quer-me de volta. Nick quer-me de volta, para me poder tratar bem. Para poder passar o resto da vida a tratar-me como deve ser. Soa fantasticamente bem. Podíamos voltar para Nova Iorque. As vendas dos livros da Incrível Amy dispararam desde o meu desaparecimento — três gerações de leitores lembraram-se do quanto gostavam de mim. Os meus pais gananciosos, estúpidos e irresponsáveis podem finalmente pagar-me o dinheiro do meu fundo. Com juros.
Porque eu quero voltar à minha antiga vida. Ou à minha antiga vida com o meu antigo dinheiro e o meu novo Nick. Nick que me vai amar, honrar e obedecer. Talvez tenha aprendido a lição. Talvez passe a ser como era antes. Sim, porque eu tenho andado a sonhar acordada — presa na minha cabana dos montes Ozark, presa na mansão de Desi, tenho muito tempo para sonhar acordada, e aquilo com que tenho sonhado é com Nick dos primeiros tempos. Pensei que iria sonhar com Nick a ser sodomizado na prisão, mas ultimamente isso não tem acontecido. Penso naqueles primeiros tempos, quando nos deitávamos juntinhos, carne nua sobre algodão fresco, e ele se limitava a olhar para mim, com um dedo a percorrer-me o maxilar, do queixo à orelha, fazendo-me contorcer com aquelas ligeiras cócegas no meu lóbulo, e depois através de todas as curvas da concha do meu ouvido até à raiz dos cabelos, e depois apossava-se de um caracol, como fez daquela primeira vez em que nos beijámos, desenrolava-o até à ponta e puxava-o duas vezes, com suavidade, como se estivesse a tocar uma campainha. E dizia: «És melhor do que qualquer livro de histórias, és melhor do que qualquer coisa que qualquer pessoa pudesse inventar.»
Nick prendia-me à terra. Nick não era como Desi, que me trazia coisas que eu queria (tulipas, vinho) para me obrigar a fazer as coisas que ele queria (amá-lo). Nick só queria que eu fosse feliz, só isso, muito puro. Talvez tenha confundido isso com preguiça. Só quero que sejas feliz, Amy. Quantas vezes é que ele disse isso e eu entendi assim: Só quero que sejas feliz, Amy, porque isso dá-me menos trabalho. Mas talvez tenha sido injusta. Bem, pelo menos fiquei confusa. Nunca tinha amado ninguém que não tivesse uma agenda. Portanto, como é que poderia saber?
É mesmo verdade. Foi preciso esta situação horrível para nós percebermos isto: eu e Nick encaixamos bem um no outro. Eu sou um bocadinho de mais e ele é um bocadinho de menos. Eu sou um espinheiro eriçado devido ao excesso de atenção dos meus pais, ele é um homem com um milhão de pequenos ferimentos provocados pelas estocadas paternas, e os meus espinhos encaixam perfeitamente neles.
Preciso de voltar para ele.